Luto que marcou a vida de Maria é transformado em luta

Artigo produzido por Redação de Geledés

Com uma trajetória marcada por situação análoga à escravidão e perdas familiares, Maria dá a volta ao se tornar uma líder comunitária na Cidade de Tiradentes 

No mesmo ano, em 2018, Maria Aparecida Adriano, de 62 anos, sofreu dois grandes baques: perdeu o companheiro, com quem viveu por 20 anos, e a sua mãe ‘espiritual’. A mãe biológica morreu em sua adolescência. Essas mortes recentes fizeram com que ela entrasse em estado de depressão profunda. Mas Maria, como contou à reportagem da série Retratos da Pandemia, transformou suas dores do luto em luta nos duros tempos de pandemia da covid -19.  

Maria decidiu ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade que vivem na região de Cidade Tiradentes, no Estado de São Paulo, onde mora. Ao lado do babalorixá e liderança negra Jair Tí Odé, mais conhecido como Pai Jair, ela passou a distribuir sopas, leites, cestas básicas, máscaras, roupas e cobertores àqueles que precisam.  

“Algumas pessoas nos diziam que não tinham nada para dar aos filhos pequenos, porque estavam desempregadas há muito tempo. Muitos choravam ao receber as doações e diziam que aquilo valia ouro”, relata.  

As ações ocorrem semanalmente. No entanto, nem todas as famílias conseguem pegar as doações no dia programado. Maria anota o contato destas famílias e as avisa assim que recebe os alimentos.  

“Na pandemia, o governo e as empresas se uniram para fazer as doações, mas essas pessoas sempre viveram nessa situação de vulnerabilidade. A pandemia só deixou mais claro o quanto elas estão indefesas”, reflete.  

Maria conta que aprendeu o ato de solidariedade com a mãe, que sempre lhe dizia que o que era dela deveria ser dividido com o próximo. Este é um princípio que ela leva por toda a vida e que agora a faz sonhar em expandir as ações solidárias.   

Percalços 

Nascida no distrito de Casa Verde, na Zona Norte de São Paulo, Maria, com a morte da mãe biológica, passou a viver a partir dos 12 anos de idade em situação análoga à escravidão. Por quatro anos, até completar 16, ficou sob o controle da família onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica.  

Maria, que viveu situação análoga à escravidão, hoje é líder comunitária

A mãe faleceu aos 39 anos, em decorrência da diabetes. Maria se recorda que ela tinha o costume de comer açúcar puro e também urinava excessivamente. Por ter procurado ajuda médica tardiamente, a urina já havia se misturado ao sangue, e um ano depois de seu diagnóstico, morreu.  

Antes de falecer, ela contou à filha sobre a existência de um irmão que Maria nunca conheceu. A mãe teve a criança na adolescência, aos 14 anos, e como seu pai não a deixou cuidar do bebê, ele foi adotado ainda na maternidade. “Se fosse hoje em dia, a gente poderia descobrir. Não sei se está vivo e ele é bem mais velho que eu. Gostaria que ele soubesse que a minha mãe se importava com ele”, diz. 

Quando a mãe ainda era viva, os patrões tratavam Maria como se fosse parte da família e por conta do amor que eles demonstravam, a mãe declarou que queria que ela ficasse com eles após sua morte. 

Mas tudo mudou repentinamente. Assim que passou a viver na casa da família, Maria passou a fazer os serviços domésticos da casa sem receber um único salário. Com a morte da mãe, ela deixou de ganhar brinquedos e roupas. “Eu era ameaçada o tempo todo para que não contasse a minha situação a ninguém e por isso não podia ter amizade com ninguém da escola”.  

Um episódio marcante foi o dia em que havia sido selecionada para integrar o time de vôlei no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de São Paulo (CPOR/SP). O que era um motivo de felicidade se tornou razão de profunda tristeza: ela foi impedida de jogar pela dona da casa. Não passou muito tempo até que a mulher também a impedisse de frequentar a escola. “Você não vai hoje. Você não acabou de fazer isso (o trabalho de casa)”, dizia. 

O quarto de Maria ficava em cima da garagem da casa. Após acabar o serviço, Maria não podia lavar as suas roupas no horário da noite para não gastar energia e seu banho era restrito a apenas cinco minutos, caso o contrário, a luz seria desligada. 

Em outra situação, ela recorda que um dos filhos da “patroa acusou-a de ter batido nele. Pela primeira vez, aos 15 anos, ela apanhou no rosto. Depois desse episódio, as agressões se tornaram frequentes e por qualquer motivo.  

“Um dia, eu subi pro meu quarto e comecei a tomar vários remédios, porque eu queria morrer. Eu pedi muita ajuda para Nossa Senhora Aparecida e os orixás. Se a minha mãe me amava tanto, porque ela não me levava?”, conta com lágrimas no rosto.  

Maria ainda relembra que no próprio velório da mãe foi impedida de vivenciar o luto, já que a “patroa” lhe disse para segurar o choro. “Até hoje, eu choro pra dentro. Eu vejo que esse bloqueio foi colocado em mim”. 

Maria foi resgatada por uma vizinha aos 16 anos e passou a trabalhar na casa dela. Com essa família, ela permaneceu por dois anos. Depois trabalhou com outra família por mais dez anos.  

Sua vida mudou em 1992, quando conheceu o Pai Jair na Cidade Tiradentes. Através da religião do candomblé, Maria passou a compreender mais sobre suas vivências.  

Posteriormente, na sede Ilê Axé Omo Odé, instituição criada pelo Pai Jair, ela começou a trabalhar como professora de alfabetização.Em 2010, decidiu voltar a estudar. Ao descobrir o Geledés- Instituto da Mulher Negra, ela participou do curso das Promotoras Legais Populares (PLPs)​ e também teve acesso a uma psicóloga para fazer terapia.  

Após o curso, Maria começou a incentivar outras mulheres negras a se capacitarem. Foi assim que conseguiu, por exemplo, transformar a vida de uma de suas estudantes de alfabetização, ao indicá-la para o curso de Camareira, Hotelaria e Hospitalar, também promovido pelo Geledés. “Ela não saia de casa e só frequentava as aulas. Em um dos dias de aula no hotel, a aluna conseguiu arrumar a cama e aquilo foi emocionante. Até o professor se emocionou ao ver o quanto ela chorou”, lembra.  

Os trabalhos sociais a fortaleceram. No entanto, a sensação de luto que a deixou desamparada no início de sua vida retornou com grande força em 2018. No dia 24 de julho daquele ano, morreu a mãe do Pai Jair, que Maria considerava como sua mãe “espiritual”.  

No mesmo ano, em novembro, seu marido, de 82 anos, faleceu de infarto. “Ele foi o meu companheiro por 20 anos. Apesar de não ser da religião (candomblé), era estudioso e falava que uma doença pior que a dengue iria mudar as nossas vidas. Ele também dizia que não estaria aqui para ver tudo. Hoje eu penso, se ele estivesse vivo, ele iria sobreviver à covid-19?”, indaga. Apesar de todas as cicatrizes do passado, Maria não esmorece frente as lutas e hoje é uma liderança comunitária na Cidade de Tiradentes. 

+ sobre o tema

para lembrar

Famosos lamentam a morte de Gésio Amadeu: ”O Brasil amou você”

Morreu na tarde desta quarta-feira (5), aos 73 anos,...

Justiça Federal suspende provas do Enem no Amazonas

A Justiça Federal do Amazonas suspendeu a realização da...

No ritmo atual, Brasil só conseguirá vacinar 70% da população em 2024

Se o Brasil mantiver o atual ritmo de vacinação,...

População de rua no Brasil cresceu quase 10 vezes na última década, aponta Ipea

A população em situação de rua no Brasil aumentou 935,31% nos últimos dez anos, segundo levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) com base em...

Saúde mental dos idosos ainda sofre os impactos da pandemia

Após anos de enfrentamento da pandemia da Covid-19, torna-se evidente que os idosos estão entre os grupos mais afetados em termos de saúde mental. A melhoria das...

Jurema Werneck recomenda livro com visão de mulher negra diante da pandemia

Segundo a ativista, pode-se encontrar também no livro, Negra percepção sobre mim e nós na pandemia, um conjunto de cicatrizes individuais, adquiridas na pandemia...
-+=