Madam C.J Walker e os cabelos crespos : de tetos oprimidos a reinveções de si.

“ Fazer as pazes conosco parece-se, penso para comigo, com fazer as pazes com a nossa ascendência, como se estarmos bem na nossa pele adviesse do apaziguamento de termos uma família. Separam-se então as forças — à estética o que é da estética, à moral o que é da moral — para no instante seguinte nos depararmos com a maneira como tal separação de forças não pode ter lugar.”
(Djamila Almeida , Esse Cabelo , 2017)

Por Allyne Andrade e Silva, enviado para o Portal Geledés

 

Elenco Yabá: Mulheres Negras (Foto: Nathália dos Anjos)

Ontem, assisti de uma tacada só a minissérie do Netflix da Madame CJ Walker. O seriado conta a brilhante história de CJ Walker e entremeia temas como colorismo, machismo, lesbofobia, solidão da mulher negra, racismo, ética no empreendedorismo, alcoolismo, liberdade. A série me trouxe algumas reflexões e desejos de provocações.

A primeira provocação é a importância de nós mesmos contarmos nossas histórias. A história é protagonizada por mulheres negras tanto na frente quanto por trás das câmeras,. Kasi Lemmons, de “Harriet” dirige três episódios e DeMane Davis dirige um. O roteiro é assinado por Nicole Jefferson Asher em parceria com A’Lelia Bundles , jornalista, importante biógrafa de Madam C.J. Walker e sua tataraneta. Além disso, traz um time de peso de diretores, produtores como LeBron James, Maverick Carter, Janine Sherman Barrois, Kasi Lemmons, TODOS NEGROS. Jamais entregariam uma história tão cara para a comunidade negra para pessoas que não fazem parte dessa mesma comunidade. Usando uma frase que eu adoro, de Adirley Queirós “ Sobre nossa história fabulamos nós mesmos”.

A segunda reflexão é sobre cabelos crespos, cor de pele e a pressão estética sobre nós. Curioso observar que a experiência sobre o cabelo é algo que atravessa nossa experiência pela diáspora, que nos incomoda e movimenta aqui e acolá.

Madam C.J. Walker foi de lavadeira a empreendedora da indústria dos cosméticos, tornando-se a primeira mulher bilionária dos Estados Unidos. Foi generosa doadora para instituições negras e a sua indústria subsistiu até 1981.

A história de seu envolvimento com cosméticos, começa quando a protagonista é afetada por uma doença no couro cabeludo comum às negras da época por diversos fatores, entre eles a falta de produtos adequados, ela é socorrida por Addie Monroe , mulher de cabeleira cacheada que cria um cosmético para cabelo afro.

A Addie Monroe, da vida real que não era uma vilã e teve sua fórmula copiada por Madame C.J Walker, chama Annie Malone e foi considerada pioneira na indústria de beleza afro-americana, de acordo com o Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana. Ela inventou uma linha de produtos para o cabelo chamada Poro no final do século XIX e início do século XX, que fazia várias coisas diferentes, como melhorar a saúde do couro cabeludo, promover o crescimento e alisamento do cabelo. Também criou Poro College em 1917, um complexo que incluía o escritório de sua empresa e um centro de treinamento, bem como instalações para atividades cívicas, funções religiosas e sociais. Também ficou milionária e também foi generosa doadora. Outra história maravilhosa de se conhecer!

O que me chamou atenção mesmo foi o fato das duas mulheres tanto Madam C J Walker quanto a Annie Malone na vida real terem ambas enriquecido com produtos para cabelos para mulheres negras. Sabemos que, desde mais tenra idade, o cabelo é uma questão para meninas negras e permanece uma questão para mulheres negras. O cabelo é um dos primeiros símbolos de opressão estética para nós. Em março desse ano, todos assistimos a um vídeo onde uma cabeleireira de nome Shabria aparece consolando a menina negra Ariyonna, de apenas quatro anos, depois de ouvi-la dizer que era feia. No Brasil, temos também relatos de Sandri Sá e de Ana Paula Xongani contando histórias sobre suas filhas, meninas negras. Muitas de nós já tivemos nosso cabelo comparado a palha de aço e sofremos desde cedo a opressão , inclusive no ambiente escolar, em relação a isso.

Não é a toa que nós, mulheres negras, movimentamos milhões com essa indústria de cosméticos para cabelos: são influenciadoras digitais com canais inteiros dedicados a cabelos crespos, a laces (perucas), a tranças, produtos e mais produtos e muitas profissionais nesse mercado. No Brasil, inclusive, temos quase um século depois nossa versão de Madam C J Walker com a Zica, proprietária do Beleza Natural, que um século depois fez fama e fortuna prometendo crescimento e cachos perfeitos para cabelos crespos.

Eu mesma, me lembro, de esperar ansiosamente fazer 07 anos que era a idade em que minha família permitia que a gente abandonasse os penteados mais infantis e pudesse alisar o cabelo. Para os meninos de nossa família, a regra era raspar o cabelo para parecer limpo e bem cuidado. Muitas de nós fomos cobaias de procedimentos capilares nem sempre saudáveis, em busca do liso perfeito, do cacho perfeito e comigo não foi diferente. Dos 07 aos 18 anos quando parei de alisar fui de babosa, abacate, alisamento, henê, cabelo modelado com bobes, touca , piastra baiana com óleo de coco ( a piastra é avô da chapinha), permanente afro, relaxamento, escova progressiva.. Me lembro até hoje quando decidi parar de alisar o cabelo, depois de passar um ano observando atentamente minhas companheiras de cabelo natural e deixá-lo, finalmente, em paz. A transição não foi brincadeira e depois que cortei, ficava me olhando no espelho e acariciando meu cabelo para me acostumar com sua sua textura natural. Tive medo de sofrer discriminação no mercado de trabalho. No fim, foi uma libertação para mim.

Temos exemplos na literatura, em outros locais da diáspora, que trazem na relação da mulher negra com o cabelo como elementos importantes da trajetórias das personagens. Lembrei-me a, de pronto, de duas obras literárias Esse Cabelo : A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras (2015), de Djamilia Pereira de Almeida(angolana-portuguesa) e Americanah (2014) de Chimamanda Ngozi Adichie (nigeriana) onde a relação relação entre as personagens e cabelo é utilizada para ilustrar a relação das personagens consigo mesma, e seus processos de desconstrução e reformulação de sua identidade, de negociação constante com o cabelo representando as etapas de negociação consigo e com o mundo.

A personagem de Djamila Pereira diz” . Nada haveria a dizer de um cabelo que não fosse um problema. Dizer alguma coisa consiste em trazer à superfície aquilo de que, por ser segunda natureza, não nos apercebemos.”

Em Americanah, Ifemelu começa sua história pegando um trem para trançar seus cabelos nos Estados Unidos. Em uma digressão , a personagem lembra se sua infância :

Ifemelu tinha crescido à sombra do cabelo de sua mãe. Era preto retinto, tão grosso que sugava dois frascos de relaxante no salão, tão cheio que tinha de passar duas horas sob o secador e, quando finalmente era libertado dos bobes rosa, saltava, livre e vasto, cascateando pelas costas como uma celebração. Seu pai dizia que era uma coroa de glória. “É seu cabelo de verdade?”, perguntavam estranhos, esticando o braço para tocá-lo com reverência. Outros indagavam “Você é jamaicana?” como se apenas o sangue estrangeiro pudesse explicar cabelos tão abundantes que não rareavam nas têmporas. Durante toda a infância, Ifemelu muitas vezes olhava no espelho e puxava seu cabelo, esticava os cachinhos, desejando que ficasse como o da mãe; mas ele permaneceu crespo e crescia com relutância; as cabeleireiras que o trançavam diziam que os fios cortavam que nem faca. (p. 49 – )

Mais tarde, já adulta narra um episódio em que decide alisar o cabelo:

Meu cabelo cheio e incrível ia dar certo se eu estivesse fazendo uma entrevista para ser backing vocal numa banda de jazz, mas preciso parecer profissional nessa entrevista, e profissional quer dizer liso, mas se for encaracolado, que seja um cabelo encaracolado de gente branca, cachos suaves ou, na pior das hipóteses, cachinhos espirais, mas nunca crespo. (ADICHIE, 2014, p. 222 )

Tanto na minha trajetória pessoal, que compartilhar brevemente, como no seriado e nos livros narrados o cabelo é uma alegoria de representação de nossos processos pessoais de acomodação e resistência diante das tensões sofridas pelo racismo e de construção ( ou não) de nossa identidade e auto-estima.

Não estou aqui para recomendar a ninguém que cabelo deve usar, nem a que procedimentos nos devemos submeter para ter o cabelo que desejamos. Apenas mesmo para (tentar) provocar uma reflexão coletiva sobre porquê cabelo é assim tão importante para nós, para muitas quase uma fixação.

Lembrei-me de um outro texto que, ,de vez em quando, releio de Alice Walker, “ Cabelo oprimido é um teto para o cérebro” onde ela diz:

“ … ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.

Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. O problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à Terra.!”

Eu a parafraseio, para dizer que a neurose com o cabelo ( e não o cuidado, repito) é a pedra que nos prende ao racismo. Se a neurose, é a pedra, o cuidado e amor aos nossos cabelos pode ser o desatar de nó para alimentar e ressignificar para nos libertar de pressões estéticas alheias a nós(respeitem meus cabelos, brancos!, o Chico César já cantou ) a nós.

Somos todas conhecedoras da simbologia que envolve nosso trato com nossos cabelos, o ritual de uma criança que se senta entre as pernas de sua mais velha para ter os cabelos trançados, a amizade que criamos com nossas cabeleireiras que com as mãos sobre nosso ori vão participar de importantes processos de afirmação das nossas identidades, preparação para eventos e do que há de comum entre nós. Portanto, nosso cabelo é também dessa composição sagrada que é nossa identidade. Sobre isso, Nilma Lino Gomes , nos ensina:

A manipulação do cabelo do negro e da negra, nessa perspectiva, pode ser vista como continuidade de elementos culturais africanos ressignificados no Brasil. Parafraseando Munanga (2000, p. 99), quando este autor escreve a respeito da arte afro-brasileira, podemos dizer que descobrir a africanidade presente ou escondida na manipulação do cabelo do negro e da negra da atualidade, e nos penteados por eles realizados, constitui uma das preocupações primordiais para a definição da força histórica e cultural desse segmento étnico/racial.

Voltando ao seriado, me alegrou notar que o processo de manipulação de nossos cabelos foi responsável pela ascensão no século passado de alguém igual a mim. Que o nosso cabelo não seja teto para nosso cérebro, e que nossa mente se se abra para experiências múltiplas , inclusive capilares, e que não seja pedra que nos impede de voar e nos aterra em racismo. Desatemos esses nós.

 

Allyne Andrade e Silva é Advogada, ativista do movimento de mulheres negras e de direitos humanos e ensaísta nas horas vagas.

Leia também:

Minissérie da Netflix irá contar história da primeira milionária negra nos EUA


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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