– Não precisa se preocupar tanto porque não vai muito longe, afinal, você é de cor.
Com esta frase um professor disse a Alba Christina Bomfim Souza – professora de regência e prática de orquestra na Universidade Federal do Piauí – que ela não precisava cuidar tanto em aprimorar a técnica para tocar o violoncelo, mas com a batuta nas mãos ela hoje rege orquestras pelo mundo e mais que isso, rege a própria vida estabelecendo novos paradigmas e provando que lugar de mulher também é na frente da sinfônica. Alba passou em primeiro lugar no concurso que a fez professora da Universidade do Piauí e em terceiro para outro concurso para a Universidade Federal do Pará.
por Eliana Alves dos Santos Cruz via Guest Post para o Portal Geledés
– O Piauí me chamou primeiro. Engraçado que mesmo tendo sido a primeira colocada no concurso, muita gente não conseguia enxergar a minha competência técnica. Eu digo que a gente não tem que matar um leão por dia, mas um leão a cada turno! . A regência é uma área muito peculiar dentro da música. É um cargo político e também diplomático porque o regente acaba sendo uma espécie de porta voz da orquestra. Assim que cheguei percebi que se eu quisesse avançar teria que vir para o exterior. Mas esses obstáculos me impulsionaram a buscar novas oportunidades.
Alba era a caçulinha de quatro irmãs, que comigo e minha irmã formava o grupo de seis meninas negras amigas desde o início dos anos 80. Ela cresceu e hoje tem um currículo que, como se diz no popular, “bota-pra-quebrar”. Bacharel em Direção (2001) pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, licenciada (1995) e mestre (2009) em Música pela Universidade de Brasília. Venceu o Concurso Internacional de Jovens Regentes de Orquestra Eleazar de Carvalho de 2009, realizado em Fortaleza, integrou o naipe de violoncelos da Sinfónica Jovem do Estado de São Paulo, Filarmônica do Rio de Janeiro, Sinfônica Nacional, Sinfônica Brasileira e Jovem e Camerata do Conservatório Brasileiro de Música.
Atualmente ela está em Portugal, na Universidade de Aveiro sob a orientação do Maestro Antônio Vassalo Lourenço, em plena produção para concluir seu doutorado, do qual sairá PHD em 2018, em Direção de Orquestra. Ela falou desta área ainda muito pouco explorada pelas mulheres e principalmente pelas mulheres negras no Brasil.
– No início eu sofri bastante. A gente sabe que no Brasil o preconceito é velado e o mundo da música é muito fechado e restrito. Ainda é um universo muito masculino, então a descrença comigo vinha de duas frentes, ou seja, por eu ser negra e por ser mulher. Se hoje estou aqui professora que leciona no nordeste, com mestrado, fazendo um doutorado diferenciado do qual vou sair PHD é porque estou “furando” um esquema pesadíssimo.
O regente de uma orquestra – assim nos condicionou o imaginário coletivo – é um homem branco, maduro e com uma história, muitas vezes que atravessou gerações, na música clássica. Mas Alba vai imprimindo sua marca sem se importar com os rótulos. O som profundo e emocionante do violoncelo abriu as portas da carreira para a menina carioca, filha de militar que foi morar em Brasília e estudava piano na escola da quadra. Depois de anos na escolinha, incentivada pela mãe se inscreveu e foi sorteada para cursar o Centro de Educação Profissional – Escola de Música de Brasília.
– Eu achava que não tinha “lastro” para música. Meus pais sempre incentivaram a mim e as minhas irmãs a estudar música, então eu tinha base sim. Éramos uma família como muitas de classe média, que embora tenha algumas coisas, faltam outras e não tínhamos condição de ter um piano em casa. Somos quatro filhas! Eu estudava piano na escola da quadra. Quando entrei para a Escola de Música de Brasília, passei por todos os instrumentos e lá pelos 14 anos escolhi o violoncelo. Foi quando comecei a praticar a forma correta de me posicionar no instrumento que o professor disse aquilo. Mais tarde eu me tornei colega dele como professora da mesma escola e descobri que ele teve palavras depreciativas com muitas outras meninas. Uma porque era negra, outra porque ele achava que era bonita demais, outra porque era gordinha… Então é algo que vai além da questão étnica. Tem um machismo enorme no meio – contou.
Em Aveiro, Alba está pesquisando como a orquestra conquista sua plateia. Como ela capta a atenção, e aí entram estudos de comunicação e marketing; como atua na formação do público, o que está relacionado com a área de educação; e como arrebata no momento da exibição, entrando assim no terreno das artes cênicas.
– Essa é a minha pesquisa, minha produção intelectual. Cada vez mais teremos tudo junto, tudo integrado, ou seja, teatro, música, fotografia… Várias expressões artísticas num mesmo espetáculo. A minha produção prática são as diversas obras que estamos executando para estudar cada aspecto desses. Temos trabalhos voltados para crianças, para idosos, para as famílias. Executamos também musicais da Broadway, músicas populares. Não se trata apenas de um repertório europeu ocidental clássico. Como pesquisadora eu digo que música popular, especificamente a nossa música popular brasileira é um enorme desafio. O que ela já foi, o que é e o que pode vir a ser. Temos ritmos e sons muito sofisticados. Sim, o samba, a bossa nova e muitas outras coisas que temos são sofisticadas!
O Brasil é o objetivo de Alba Christina. Seus planos são retornar para casa assim que concluir o trabalho em Portugal. Quer replicar o que aprendeu e ajudar a formar outras artistas.
– Na música você encontra o discurso do limite de idade, da hereditariedade e outros mitos. Comparados aos europeus, nós começamos realmente mais tarde a iniciação musical por todas as questões sociais e históricas que já sabemos. Para quem está no meio às oportunidades aparecem, mas como entrar? Como estar no meio? Entre os vários amigos que começaram comigo conto nos dedos quantos continuaram. Me sinto realizada pela questão da superação, mas agora que estou aqui, me pergunto como vou mais longe e como vou multiplicar a minha experiência, repassar tudo o que aprendi e estou aprendendo. Tenho que ser multiplicadora. A equipe da orquestra aqui é super pequena e consegue muito, ou seja, posso replicar essa estrutura em Teresina ou em qualquer lugar pequeno como Sobradinho (cidade satélite de Brasília), obviamente respeitando as diferenças locais. Essa é a função da arte. É ir a todos os lugares e levar novos significados – explicou.
Apesar dos obstáculos, das desconfianças, julgamentos e rótulos, Alba incentiva a todos os que pensam um dia trilhar um caminho parecido ao seu.
– Acredite e trabalhe para concretizar, pois você tem uma história belíssima a ser contada. Não fique apenas nos sonhos, arregace as mangas para fazer acontecer, pois estamos vencendo e esse é um caminho sem volta. Olhamos para trás e para os preconceitos sofridos para não esquecer que isso existe e que está em nosso caminho, na nossa história, mas não podemos deixar que nos paralisem. Esse é maior legado que quero deixar para os meus sobrinhos, para as nossas crianças.
Silêncio na plateia, pois o espetáculo vai começar!