A maldição do homem gentil

Algumas mulheres já me disseram que sou um homem gentil. Curiosamente, todas disserem isso antes de me deixar. De modo que comecei a acreditar que ser gentil era um defeito. Nadja, minha namorada, recentemente andou jogando esta conversa de novo para o meu lado e pensei: mais uma que se vai.

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Foi em um restaurante. O restaurante era condecorado, ela estava linda, com um vestido novo. Havia um clima festivo no ar e eu me sentia bem. No entanto, percebi que no decorrer do jantar o clima começou a pesar. Ela, de repente, ficou implicante, disse que queria ir embora e me apunhalou: “Você é gentil, mas não presta atenção”.

Gelei. Lá vinha a história macabra da gentileza. “O que você quer dizer com isso, gentil? Não sou gentil, não”, defendi-me prontamente. “Você é, sim, não me venha com essa”, afirmou, como se me acusasse de ter devorado todo o chocolate da despensa. “Só que é gentil como os porteiros são, como manobristas são. É uma gentileza impessoal, asséptica.”

Já tinha visto aquele filme. Era um filme sem legendas, falado em turco. Que diabos aquela mulher estava tentando me dizer? Nadja não brinca em serviço, seu recado era sério e eu não conseguia entender patavina. Ela detonou a bomba: “Hoje é nosso aniversário de namoro. Hoje, exatamente hoje. Te disse isso na semana passada”.

Ela disse? Ela disse. Me senti miserável. Todos os anos era a mesma coisa. Ela me avisava um pouco antes e eu me esquecia logo depois. Por que eu vivia cometendo esse ato falho? “É seu pavor com compromissos”, explicou-me didaticamente. “Você esqueceu a data e acha que não namora comigo há anos. “Ah! Meus Deus, lá vinha ela trazendo Freud para sentar conosco. Freud. Aqui. NÃO!, Nadja.

Este ano, tenho de admitir, ela vinha fazendo um trabalho de marketing já há alguns dias para evitar frustrações. Mostrou-me o vestido novo, falou-me deste restaurante… Meus Deus, como fui estúpido! Como pude esquecer e deixar-me flagrar nesse erro anual? “Nadja, por que você faz isso comigo?”, perguntei. “Por que você faz com que eu me sinta miserável?” Ela encarou-me com os olhos marejados, levantou as sobrancelhas em um último arroubo de orgulho e devolveu: “Por que você faz eu me sentir uma romântica ridícula e frustrada?”

Tenho medo pânico de mulher frustrada. Ela é capaz de destruir tudo num raio de 100 quilômetros só com a amargura que carrega no coração. Não quero amar uma mulher frustrada, não quero me sentir incompetente o tempo todo.

Por que é tão importante que eu me lembre de uma data? Por que, afinal, ao abrir os olhos naquela manhã tão ilustre, ela apenas não me estalou um beijo e disse “Benzinho, é nosso aniversário”, em vez de me armar uma emboscada – na qual caio todos os anos? Lembrei-me de Felix, um velho amigo, que diz que as mulheres sentem um prazer perverso em fazer de mártires nos martirizando.

E por que, finalmente, tenho de executar a fantasia romântica dela como ela quer? Para mim, aquele dia, fosse ele 12, 14 ou 31 de setembro, tinha todos os ingredientes para ficar gravado em nossa memória como uma noite inesquecível. Falhei em algum ponto do roteiro que ela tinha escrito, mas eu queria continuar no filme, não ia largar o papel.

“Quer saber, Nadja?”, falei como que tomado por um novo espírito. “Você não vai acabar com a minha noite, de maneira alguma.” O espírito era de Humphrey Bogart. Freud tinha saído sem pagar a parte dele. Levantei o braço, fiz um gesto magnânimo: “Garçom, uma Veuve Clicquot”. Durão. Decidido.

Nadja me olhou com um brilho novo nos olhos. Sorriu. Pegou na minha mão. “O que vamos comemorar?”, perguntou. “Nadja”, respondi triunfante. Rimos muito do trocadilho infame. Foi uma noite e tanto. Acho que Nadja aprendeu uma lição aqui com o Humphrey Bogart, e eu… bem, eu aprendi a nunca dar lições a ninguém regadas a champanhe francês. Mas é o preço que se paga quando se quer ser gentil.

 

 

Fonte: DCM

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