Você matou Jandira

No dia 26 de agosto, Jandira Magdalena dos Santos Cruz saiu de casa para interromper uma gestação em uma clínica clandestina. Pagou R$4,5 mil pelo procedimento. Nunca mais voltou. Seu corpo foi encontrado esta semana, carbonizado e com marcas de tiros. Ela deixa duas filhas, de 9 e 12 anos.

Essa história teria um desfecho completamente diferente se tivesse se passado em 61 outros países que não o Brasil. Jandira teria feito o aborto em um hospital, com um ginecologista credenciado em vez de um bandido, e voltado para casa no mesmo dia. Suas duas filhas ainda teriam mãe e Jandira poderia escolher ser mãe novamente, quando quisesse e pudesse. Infelizmente, Jandira teve o azar de nascer no Brasil, onde as leis julgam mais importante obrigá-la a gestar o óvulo fecundado que carregava em seu útero do que viver para ser mãe das filhas que ela escolheu parir.

Sabe quem matou Jandira? Você. Você que defende que a lei continue como está, afinal abortar, na sua concepção pessoal, é “errado”. Você, hipócrita, que transa como quase todo mundo, sabe que os métodos contraceptivos não são 100% eficazes e ainda assim julga as mulheres que abortam por “não se cuidarem”. Você, religioso, que acha que a lei a ser aplicada a todos tem de seguir os dogmas da sua religião, que não é de todos. Você, machista, que acha que obrigar uma mulher a ter um filho é uma boa forma de punição por “não ser santa”(e você é?). Você, político oportunista, que jura de pés juntos que não vai mexer na legislação sobre aborto, porque conseguir votos de religiosos que não entendem o que é Estado laico é mais importante do que poupar a vida das Jandiras. Você, eleitor sem noção, que acha que controlar os úteros das mulheres e os ânus dos gays é a questão mais importante no país hoje.

Não foi você quem puxou o gatilho, não foi você quem ateou fogo no corpo de Jandira. Mas é você o responsável pela manutenção da lei que a matou e vai matar outras. Numa suposta defesa da vida, você assassina mulheres. Por sua causa, o Estado brasileiro está careca de saber que cerca de 1 milhão de mulheres abortam ilegalmente todos os anos e uma mulher morre a cada dois dias devido a um aborto inseguro, mas deixa essas mulheres à mercê dos criminosos. Quantas Jandiras mais você vai matar, achando que a lei como está é que impede a morte?

Jandira tinha 27 anos, como eu. Não planejo ter filhos agora. Não quero, não posso. Por motivos financeiros, emocionais e burocráticos, um filho agora seria um baita problema. Atrapalharia meu relacionamento, minha carreira, meus planos e minha juventude. Vamos parar com a hipocrisia de que filho é sempre uma bênção, uma alegria, um presente? Não é. Se fosse, ninguém ia querer abortar nesse mundo. Ao saber que eu e Jandira tínhamos a mesma idade, não consigo parar de pensar que ela poderia ser eu. Jandira poderia ser eu, caso aquelas pílulas do dia seguinte não tivessem funcionado.

Eu sou uma pessoa que “se cuida”. Tomo anticoncepcional desde os 15 anos por causa de ovários policísticos e uso camisinha. Bem, isso não quer dizer nada, afinal a legislação sobre o aborto não tem (ou pelo menos não deveria ter) a função de dar puxão de orelha em quem deixa de usar métodos contraceptivos. Lei de aborto não é Papai Noel nem Supernanny, para punir quem se comporta mal. Se você acha que é pra isso que as leis servem, volte mil casas e redescubra o que é civilidade. Mas voltando: mesmo eu, que uso pílula religiosamente e gosto de bala com papel, já tive que tomar a pílula do dia seguinte duas vezes. A primeira vez há quatro anos, no Brasil, porque estava tomando antibióticos que podiam alterar o funcionamento do anticoncepcional e bobeei, não usei camisinha. Imagina se eu tivesse tido um filho do Zé Ruela com quem ficava naquela época? Não teria feito mestrado, não teria viajado, não teria conhecido o amor da minha vida (se me permitem a pieguice).

A segunda vez foi este ano, morando na Holanda. Meu anticoncepcional desde os 15, Diane, foi proibido recentemente em diversos países por matar pessoas de trombose. Me assustei e quis trocar. O médico disse que era melhor fazer uma pausa entre uma pílula e outra. Justo nesta pausa, a camisinha ficou presa dentro de mim depois de uma transa. Se a pílula do dia seguinte não tivesse funcionado há quatro anos, eu teria escolhido o aborto e poderia não estar aqui para escrever este texto. Se a pílula do dia seguinte não tivesse funcionado este ano, o que aconteceria? Nada que eu não quisesse. Eu teria autonomia para decidir o que seria da minha vida dali para frente. O Estado iria garantir que, qualquer que fosse minha escolha, ela seria levada a termo da forma mais segura e saudável. Pois, para o Estado holandês, eu sou uma pessoa, não uma chocadeira.

Assim como eu tenho meus motivos para não querer filhos agora, Jandira também tinha os seus. E tão importantes eram esses motivos para ela que, sozinha, confiou seu corpo a um grupo de desconhecidos para que fizessem nele um procedimento ilegal. Pense, por favor, no tamanho desta decisão. Abortar é uma decisão difícil em qualquer circunstância. Não é um piquenique no parque: você tem de receber uma máquina aspiradora no útero ou tomar um remédio que vai fazê-la sangrar por horas. E depois ainda fazer curetagem. Isso sem contar a dimensão ética desta escolha: terminar uma vida em potencial não é uma decisão fácil para ninguém, nunca. Decidir abortar nas condições que o Brasil oferece, então, com todos os riscos, é ainda mais difícil. Portanto, antes de julgar as mulheres que abortam, coloque-se no lugar delas. Tenha empatia. Que situações lhe deixariam tão desesperado a ponto de arriscar sua vida? E por que essas mulheres precisam arriscar suas vidas? Elas não precisam. 61 países nos mostram que pode ser diferente. Que os filhos podem ser planejados. Que as crianças podem vir ao mundo nos braços de gente que quer recebê-las e tem condições de criá-las.

Que atire a primeira pedra em Jandira a mulher que nunca comemorou, com alívio, a chegada da menstruação. Atire a primeira pedra em Jandira quem nunca viu a camisinha rasgar. Atire a primeira pedra em Jandira quem nunca esqueceu de tomar a pílula ou atrasou algumas horinhas. Atire a primeira pedra quem nunca transou sem camisinha com o namorado porque “ah, já estamos juntos há um tempo, rola uma confiança”. Atire a primeria pedra quem nunca fez sexo casual, meio bêbado, e não se lembra direito se se protegeu ou não. Atire a primeira pedra quem não transa, ponto. Você, homem ou mulher com vida sexual ativa e que não quer ter filhos agora, responda com sinceridade: você conseguiria viver em completa abstinência apenas para não correr o risco de engravidar (alguém)? Não? Pois é. Então aquela pedra que você ia jogar na Geni, digo, na Jandira, pode guardar.

Você não precisa ser pessoalmente a favor do aborto para ser a favor da descriminalização. É contra o aborto? Sua religião não permite? Não faça. Mas não deixe que a lei deixe desamparadas as pessoas que querem e/ou precisam fazê-lo. Dia 28 de setembro é dia da luta pela descriminalização do aborto. Luta com a gente. Para que não haja mais nenhuma Jandira.

 

Fonte: Brasil Post 

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