O que a Marcha das Mulheres Negras propõe é grandioso: reunir mulheres negras, respeitando suas especificidades e diversidade em torno de uma pauta comum. Despidas de nossas correntes ideológicas; superando as diferenças geracionais, religiosas, partidárias, o que sobra? Sobra o que somos essencialmente. Antes de tudo: mulheres negras.
A Marcha das Mulheres Negras propõe um retorno à unicidade da luta negra. Na realidade, ela só cumpre verdadeiramente seu papel quando sua construção consegue superar a segmentação por vertentes, entidades e grupos tão comuns no movimento social (negro, de mulheres, etc.) que muitas vezes nos enfraquece.
Antes mesmo do dia 18 de novembro, pelo menos aqui no Estado de São Paulo, a Marcha já deixa esse legado de ter reunido diferentes mulheres, organizadas ou não, que há tempos (ou nunca) sentaram juntas em torno de um objetivo em comum.
Somos jovens, quilombolas, cotistas, feministas, cristãs, lésbicas, militantes partidárias, mulheres trans, anarquistas, bissexuais, idosas, representantes de povos tradicionais de matriz africana, trabalhadoras domésticas, sem-terra, periféricas, imigrantes e refugiadas, rurais, mães, autônomas…
A marcha criou a partir de sua mobilização, oportunidade de diálogo real entre mulheres negras, com o fortalecimento mútuo das pautas. Ou seja, permite uma construção a partir do que nos une, não o que nos separa.
Enquanto ativista do movimento de mulheres negras, para mim, esse é o principal ponto que dá sentido à marcha. Essas articulações sedimentadas neste momento trarão frutos imensuráveis para as próximas gerações de mulheres negras.
Ao localizar historicamente o que significa ter uma marcha nacional de mulheres negras na trajetória percorrida pelas nossas ancestrais, pelas nossas mais velhas em solo brasileiro, encontramos outro ponto que dá sentido à marcha que está inserida neste contexto histórico de resistência feminina negra que rememora Aqualtune, Acotirene, LuisaMahin, Dandara, Maria Firmino dos Reis, Carolina de Jesus, Maria Brandão dos Reis, Antonieta de Barros, Lélia Gonzales, Beatriz Nascimento, Laudelina Campos, Theresa Santos, e tantas outras que aqui chegaram e nasceram. Dar visibilidade a essa luta histórica é fundamental para munir as novas gerações de ferramentaspara o combate ao privilégio branco que estrutura a sociedade racista que vivemos.
Por fim, a Marcha das Mulheres Negras só faz sentido se nos colocarmos enquanto força política. A marcha é reivindicatória de nossos direitos e começamos pelo primordial: queremos viver.
Os recentes dados divulgados pelo Mapa da Violência revelaram o que nós já sabíamos. As mulheres negras não fogem à lógica do genocídio do povo negro que ceifa a vida dos nossos jovens. O feminicídio no Brasil também tem cor. Houve um aumento de 54% de assassinatos de mulheres negras.
A cada 1 hora e 50 minutos uma mulher negra morre. Temos três vezes mais chance de sermos estupradas do que mulheres brancas, somos as maiores vítimas de violência doméstica, as que mais padecem por conta da criminalização do aborto, sem falar na violência simbólica cotidiana, alimentada por uma mídia racista que invisibiliza a participação na sociedade de mulheres negras, indígenas, lésbicas e transexuais.
Somos 49 milhões de mulheres negras no Brasil, que a exemplo dos índices da mortalidade, temos o protagonismo negativo de encabeçar os piores índices de direitos humanos em todas as áreas: saúde, emprego, moradia, acesso à educação, etc…
Ao incorporar todas essas pautas, o evento da marcha coloca em evidencia o racismo e sexismo vivido cotidianamente por mulheres negras e demonstra que estamos nos fortalecendo politicamente.
Exigimos publicamente dos governos municipais, estaduais e federal reparação às mulheres negras em defesa de uma sociedade justa e igualitária. Onde as diferenças não se tornem fatores de desigualdade.
Eu acredito na Marcha das Mulheres Negras, no protagonismo negro. Nas minhas irmãs praticantes da filosofia ubuntu, do asè. Agora é a nossa vez. Nos próximos dias delegação de todo Brasil vão se deslocar rumo à capital federal, onde marcharemos demonstrando nossa força política e de mobilização.Vamos enegreceràs ruas de Brasília, lugar dominado pela masculinidade branca. Por enquanto.Não vão nos calar. Tendo em mente, como nos traz Audre Lorde, “que não esperavam que sobrevivêssemos”.
Sobre nossas bandeiras de luta, convido a todas as pessoas a lerem nosso manifesto, a carta de princípios e um breve recorte da luta das mulheres negras no Brasil.
Finalizo com um poema, porque a palavra cria, òrolagbara, a palavra tem poder. Gratidão por esse espaço!
“Somos humildes sim, entre os nossos irmãos e irmãs
A eles ubuntu, nosso àse.
Mas no hostil do mundo
Erguemos nossonariz de negra
Coluna ereta,cabeçacoroada
Porque eles fingem ignorar que viemos de uma linhagem de rainhas
Somos um povo sobrevivente
Nossoori brilha e nos protege das hienas
As mulheresnegrasestão em marcha, anunciamos
Quando uma sobe, leva a outra
Somos terra sagrada e fértil
Somos fortes por falta de escolha
Estamos em marcha
Estamos só começando…”
*Juliana Gonçalves é jornalista, ativista da luta antirracista, representante do CEERT no Núcleo Impulsor do Estado de SP da Marcha das Mulheres Negras.