Mecanismo criado segue protocolo contra maus-tratos da ONU.
Maria Clara de Sena quer reduzir casos de violação dos direitos humanos.
por Vitor Tavares no G1 PE
Antes de ser tornar a primeira transexual do mundo a assumir um cargo em um Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, órgão que atua em parceria com a ONU, a pernambucana Maria Clara de Sena, 36 anos, se deparou, em sua trajetória de luta pelos direitos humanos e do grupo LGBT, com situações que mexiam diretamente com sua condição enquanto mulher trans.
Em presídios masculinos do Grande Recife, identificou que homossexuais eram estuprados rotineiramente, noite e dia, e transexuais e travestis que eram detidas tinham seus cabelos cortados antes de entrar nas prisões, ferindo a identidade de gênero. ‘Formada’ em movimentos da sociedade civil organizada, hoje Maria Clara, negra de cabelo afro e com 1,92 metros de altura, tem sua rotina dividida entre reuniões e visitas a unidades prisionais de Pernambuco, a fim de combater maus-tratos e torturas a qualquer pessoa que esteja em situação de privação de liberdade.
A história de vida de Maria Clara acabou fortalecendo sua identidade e a vontade de fazer com que nenhum ser humano tenha seus direitos violados – no Brasil, a tortura é tipificada como crime na lei 9.455, de 1997. Ainda criança, a pernambucana sofria os primeiros traumas dentro de casa, na cidade de Camaragibe, no Grande Recife. Sem se identificar e nem se comportar como um menino, aos 6 anos tem memória de ser repreendida violentamente pelos pais e pelos colegas do colégio. “Eu não conseguia entender o que tinha de errado ou o que acontecia comigo, apenas apanhava sem saber, com eles falando que eu tinha problema mental. Então, eu fui crescendo e, ao invés de criar minhas relações sociais, fui internalizando, não conversava nem me comunicava com ninguém”, contou ao G1 em meio à agenda cheia do trabalho.
Após fazer um curso de decoração de ambientes, conseguiu o primeiro emprego em uma loja do Recife. Mas não estava feliz. Tinha que se portar como homem gay, quando, na verdade, sentia que aquele não era seu universo. Diante de uma proposta de emprego, foi embora para João Pessoa (PB), a 120 quilômetros da capital pernambucana, para ficar longe da vida de repressão. Começou sua transformação com apoio de travestis que conheceu, deixando o cabelo crescer, fazendo cirurgias plásticas para implantação de silicone e tomando hormônios femininos. O que ela não esperava era que o emprego prometido não se concretizou. Com fome e sem dinheiro sequer para voltar para casa em Camaragibe, a saída encontrada pela pernambucana foi a prostituição.
Maria Clara relutou e, nos dois primeiros dias trabalhando na rua, não conseguiu entrar em nenhum carro que a abordava. Foi quando a situação chegou ao limite, inclusive com repressão de outras garotas de programa, que resolveu atender o primeiro cliente. “Eu via aquelas meninas cheirosas, arrumadas, muito distante do que eu era antes. E o primeiro homem que conheci foi tudo de bom que eu imaginava e nunca tinha vivido. Me tratou com o pronome feminino e me deu até boa noite. Eu fui buscar a mulher que sabia que havia em mim. Posso dizer que a rua foi que me deu minha identidade de gênero”, contou. Nas ruas de João Pessoa, a pernambucana ficou por quatro anos. Estava com dinheiro, mas sentia falta dos laços familiares.
Durante todo o tempo em que esteve na Paraíba, a família de Maria Clara não sabia da transformação pela qual ela estava passando. Quando voltou para casa, o momento de choque e, novamente, de repressão logo foi se transformando na vontade de buscar algo mais. Através do projeto Mercador Ilusões, que atendia travestis, transexuais e pessoas em situações de risco, a pernambucana se envolveu na luta pelos direitos humanos até se tornar membro do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura. “Esse projeto dava R$ 30 por mês para as pessoas participarem das rodas de conversa. Mas para mim se tornou R$ 30 mil, porque me empoderou como mulher trans. Eu sabia, ali, que não queria ser e nem era homem, gay ou mulher, mas uma mulher trans”. Hoje, o nome “Maria Clara” já está naturalizado em toda a família.
Para ir ao trabalho, Maria Clara vai nos trinques. Cabelo arrumado, maquiagem, bijuterias e roupas combinando, de preferência vestido ou saia. “A gente quer se afastar de tudo que representa o masculino. Então, se hoje a mulher moderna às vezes até deixa um pouco de lado a vaidade por conta da rotina de trabalho, é algo que não posso fazer. Não gostamos nem de usar calças, por exemplo”, contou. Na rua, ela chama os olhares para si, principalmente por conta da altura. “Antes, eu achava que estavam me recriminando. Hoje, como tenho o poder sobre mim, acho que é pela minha beleza. E sigo assim, sem me importar”, completou a pernambucana.
Combate à tortura
Em Pernambuco, estado onde a superlotação carcerária é a maior do Brasil, problemas relacionados a maus tratos e torturas dentro de unidades prisionais não são novidades. O estado foi o segundo do país a implantar Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, em março de 2015, depois do Rio de Janeiro. O órgão está ligado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e conta atualmente com cinco profissionais de várias áreas de atuação.
Os mecanismos criados pelo mundo, em países como Panamá, Colômbia, Argentina e Chile, seguem o Protocolo Facultativo à Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da Organização das Nações Unidas (ONU). Ele foi ratificado em 2007 pelo governo brasileiro, que já criou o mecanismo federal. Cada estado fica responsável em criar o seu mecanismo local.
A seleção em Pernambuco foi convocada por edital e envolveu análise de currículo, redação e entrevista. A presença de Maria Clara no grupo, de acordo com a secretária-executiva de Direitos Humanos de Pernambuco, Laura Gomes, fortalece a representação de minorias como o grupo LGBT. “São pessoas que estão mais vulneráveis dentre todos aqueles que já são vulneráveis nesses ambientes. Ela tem nos orgulhado muito, profissional com dignidade, muito zelo pela profissão. E, além do grupo LGBT, ela olha por todas as pessoas”, disse.
A convivência com as colegas de trabalho, todas mulheres, é a melhor possível. “A gente tem muito orgulho de ter Maria Clara como nossa companheira de trabalho. Justamente porque é importante a gente trabalhar com a multidisciplinaridade, para o fortalecer o nosso mecanismo, com cada um trazendo um pouco do seu conhecimento e sua bagagem. São olhares que agregam muito”, contou a doutoranda em direitos humanos Maria Ligia Koike. Também compõem o grupo a advogada popular Mariana Santa Cruz, além de Camila Santana, que atua em questões ligadas à educação popular e reforma agrária, e Simone Figueiredo, com histórico de atuação nas unidades prisionais.
Na prática, o mecanismo faz visitas constantes em locais como presídios e hospitais psiquiátricos, e elabora relatórios. Em seguida, encaminha os documentos para órgãos públicos responsáveis. “A gente recebe denúncias ou é provocado e vamos atuar nesse combate aos maus tratos e tortura. E também acompanhamos para ver se as ações que recomendamos no relatório estão sendo feitas para cobrar do poder público”, disse Mariana Santa Cruz. O órgão pode ainda requisitar instauração de procedimento criminal e fazer banco de dados. Segundo a lei 14.863, de 2012, a função do mecanismo é “erradicar e prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes”.
O mecanismo recebe denúncias da sociedade civil sobre casos relacionados à tortura e maus tratos em ambientes de privação de liberdade através do telefone 3183-3161 ou do e-mail [email protected].