Maria da Penha: “Ainda temos uma Justiça machista”

Maria da Penha Maia Fernandes tem 71 anos, boa parte deles dedicados à punição de um homem. Do ex-marido, com quem viveu por sete anos e teve três filhos, ela evita até o nome. Chama apenas de “meu agressor”.

Por Dayanne Sousa

Uma das maiores personagens da luta pelos direitos da mulher, Maria da Penha dá nome à lei que protege contra a violência doméstica e que, domingo (7), completará cinco anos em vigor.

Em entrevista a Terra Magazine, ela hoje olha com orgulho aqueles anos. Ainda assim, vê mulheres enfrentando as mesmas dificuldades que ela, em 1983. A Justiça, diz, ainda tem muito a percorrer para dar segurança de verdade às mulheres.

“Quem não conhece a Justiça, pensa que o Poder Judiciário é justo”. Simples assim. E reclama de autoridades que, pelo Brasil, ainda cedem a “uma cultura machista”.

– A conduta de juízes e desembargadores está ligada à cultura. Eles se criaram e se educaram numa cultura machista. O homem pode tudo e a mulher não pode nada. Ainda hoje é assim, mas isso tem que ser mudado.

Sancionada em 2006, a Lei nº11.340 dá uma série de garantias. Diz, por exemplo, que cabe ao poder público permitir que a mulher não tenha mais que morar com o agressor. Há exatos 28 anos, quando o então marido – o engenheiro Marco Antonio Heredia Viveros, natural da Colômbia – tentou matá-la, Maria da Penha teve que voltar a viver com ele depois de ser tratada no hospital. Foi agredida novamente. “Fiquei em cárcere privado”, conta. Da primeira vez, recebeu tiros enquanto dormia e ficou paraplégica. Foi quando o ex tentou eletrocutá-la empurrando a cadeira de rodas para o chuveiro.

Hoje, diz, a história se repete:

– A mulher tem vontade de sair daquela vida de violência. Muitas vezes ela tem a informação, mas não tem onde denunciar no seu município.

Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com dados de 2009 mostra que apenas 559 municípios brasileiros possuem os chamados Centros de Referência para mulheres em situação de violência. Isso representa apenas 10% do total de cidades brasileiras. Estes centros oferecem assistência psicológica e atendimento jurídico para vítimas de violência doméstica.

– O que a gente percebe é que apenas nas grandes cidades, com algumas exceções, claro, é que a lei está implementada. Ainda falta muito – opina Maria da Penha.

Leia a entrevista.

Terra Magazine – Algum dia você imaginou que daria tanto seu tempo a uma causa social como a da violência contra a mulher?

Esse resultado foi fruto de muita luta pra questão de punir meu agressor. Ele continuava utilizando recursos, até mesmo fora do prazo, que contribuíram para a quase prescrição do crime. Ele só foi preso por conta da pressão internacional. Faltando três anos para o crime prescrever, eu tive contato com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos). Houve uma decisão contrária ao Brasil e só assim mudaram as leis do país.

O que aconteceu naquele dia, em 1983?

Eu estava dormindo, acordei com um tiro. Não vi quem atirou. Mas depois foi descoberto que ele tinha sido o autor dessa tentativa de homicídio. O julgamento demorou oito anos. Ele foi condenado, mas saiu da prisão por conta de recursos. O segundo julgamento demorou mais quatro anos. Novamente, condenado. Foi nesse intervalo entre um julgamento e outro que eu fui atrás pra provar que não fazia sentido uma pessoa que cometeu um crime como esse estar em liberdade.

Com o tempo, é possível imaginar que você tenha ganhado forças pra lutar contra isso. Mas, naquele primeiro momento…

Eu não criei forças pra lutar. Não existia nada que favorecesse a mulher. Pra se ter uma ideia, só em 1985 foi criada a primeira Delegacia da Mulher. Não existia essa visibilidade. Não existia um aparato legal. Se você quisesse sair de casa, perdia até o direito de voltar.

E como conseguiu a separação definitiva?

Depois de quase assassinada, fiquei quatro meses no hospital e, quando saí, fiquei em cárcere privado. Só então eu pedi a separação de corpos e consegui sair da companhia dele. Voltei a morar com meus pais. O comportamento dele (ex-marido) mudou depois que ele conseguiu ser naturalizado brasileiro. Para ser naturalizado, ele contou com o casamento e os filhos. No momento em que ele conseguiu, mudou a maneira de ser.

De 1983 pra 2006, quando foi criada a lei, são muitos anos. O que te fez insistir?

Eu me sentia muito mal. Não sabia como responder para meus amigos e familiares. Quem não conhece a Justiça, pensa que o Poder Judiciário é justo. Mas existem juízes e juízes. Desembargadores e desembargadores. A conduta deles está muito ligada à cultura. Eles se criaram e se educaram numa cultura machista. O homem pode tudo e a mulher não pode nada. Ainda hoje é assim, mas isso tem que ser mudado.

Nunca mais casou depois?

E você acha que dá tempo? (Risos). A causa é muito abrangente.

Isso não te faz sentir arrependimento?

Não, porque eu acho que isso é uma coisa muito importante. Quando eu comecei a tomar conhecimento do que é a violência de gênero, vi que era uma coisa aberrante. Nossos descendentes precisam ter um futuro com a garantia da não-violência.

Você ainda encontra, hoje em dia, muitas mulheres que te procuram, que vêm te cumprimentar?

Em todo lugar onde eu vou. Sempre tem alguém querendo contar alguma coisa. Isso é muito importante, saber que você está ajudando.

Cinco anos depois, muita coisa mudou?

O que a gente percebe é que apenas nas grandes cidades – com algumas exceções, claro – é que a lei está implementada. Ainda falta muito. As cidades pequenas ainda não têm estrutura de atendimento.

A história ainda se repete?

Claro. A mulher tem vontade de sair daquela vida de violência. Muitas vezes ela tem a informação, mas não tem onde denunciar no seu município.

Você tem três netos, ainda crianças. O que diria para as duas meninas se tivesse que deixar uma mensagem pra elas agora?

Que elas não permitam que nenhum homem as maltrate.

Fonte: Terra

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