Marias que venceram na vida

Marias que venceram na vida: uma análise da ascensão da mulher negra via escolarização em Salvador, BA

Edilene Machado Pereira
Doutoranda em Antropologia _ PUC-SP
Educadora do Projeto Apoio
E-mail: [email protected]

RESUMO: Este trabalho teve por objetivo compreender a trajetória de sucesso acadêmico e profissional de mulheres negras residentes na cidade de Salvador, BA, enfatizando o significado político do ser mulher negra em uma sociedade desigual no que diz respeito ao acesso deste segmento aos espaços de poder. A pesquisa se insere no campo das relações raciais, perpassando por relações de gênero e processos de constituição de identidade e subjetividade da mulher negra. Situa-se no campo da produção intelectual-ativista, indo além do discurso denuncista de discriminações variadas. O foco central foi dar visibilidade aos processos positivos de lutas e conquistas, bem como o significado político de ser mulher negra em uma sociedade marcadamente desigual no acesso deste grupo social aos espaços de poder.

PALAVRAS-CHAVES: Gênero; Raça; Trajetória de Sucesso.

This work aims to understand the life trajectory of resident black women in the city of Salvador/Ba. It emphasizes the politics of blackness and gender within the context of black women political struggle for equality. The research is situated within the theoretical framework of critical race theory and black gender studies, as well as encompassing the process of identity formation and subjectivity. Moving beyond the fatalistic discourses of black oppression, the central focus of this work is to give visibility to the black women struggle for respect and political affirmation. In a society marked by the unequal access of women of African descent to spaces of power and privilege, they have opened spaces and Affirmed their political identily as constitutive strategies for surviral.

 

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Introdução

Revista África e Africanidades – Ano 2 – n. 8, fev. 2010 – ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com
Este estudo retrata a trajetória da mulher negra que está se inserindo no mercado de trabalho pela elevada escolaridade. Foram investigados mecanismos de exclusão, gestados e perpetuados ao longo da história da população negra em nossa sociedade buscando expor como tais fatores influenciaram a construção das identidades sócio-raciais dessas mulheres e, ao mesmo tempo, como conseguiram superar obstáculos, enfrentando o racismo e a discriminação de gênero e raça.

Partimos da hipótese de que, embora a educação superior permita a essa mulher certa ascensão social, profissional, o curso universitário por si só não é o suficiente para a eliminação do racismo que as mulheres negras mesmo ocupando cargos qualificados no mercado de trabalho, continuam a ser alvo.

Os estudos sobre mobilidade social dos negros no Brasil, como o clássico “Discriminação e desigualdade racial no Brasil” (Hasenbalg -1979), mostram que os negros brasileiros enfrentam maiores barreiras que os brancos em todas as áreas, sejam elas educacionais ou profissionais.

A mulher negra e sua jornada

Entre os séculos XV e XIX, foram traficados da África para o Brasil, aproximadamente quatro milhões de homens e mulheres, para exercer inúmeras atividades, na lavoura, pecuária, extração mineral e vegetal (SHUMACHER, 2007, p.39). As mulheres escravizadas, particularmente, tiveram presença ativa em vários setores, seja na produção do açúcar, na manufatura e nas casas grandes onde executavam todo o tipo de serviço doméstico. Inclusive, utilizaram as habilidades culinárias, aperfeiçoadas nas cozinhas das casas grandes, para produzir quitutes que comercializavam em prol do sustento de sua família alforriada. Esse era o lugar da mulher negra trabalhadora. Todo lugar onde houve um escravizado, houve uma mulher negra vendendo nas ruas, em trabalho informal:

O destaque da presença negra no comércio concentrava-se nas mulheres que eram chamadas de negras de tabuleiro. Elas infernizavam autoridades de aquém e de além-mar. Todos os rios de tintas despejados na legislação persecutória e punitiva não foram capazes de diminuir o seu ânimo (…) pelo Brasil afora. (BERNARDO, 2003, p. 40).

Após a Lei Áurea, as mulheres negras aproveitaram brechas no mercado de trabalho livre que se formava, conseguindo assim melhores oportunidades de trabalho que seus parceiros. Continuaram a serem ótimas comerciantes, amas, lavadeiras, cozinheiras; em São Paulo, chegaram a ser também operárias das primeiras fábricas no início do processo de industrialização. (BERNARDO 2003, p.44).

Entretanto, por sofrerem dupla discriminação, de raça e de gênero, foram-lhes negados direitos sociais básicos como a escolarização. Assim, enquanto as mulheres brancas entraram no mercado de trabalho já escolarizadas, as mulheres negras, mesmo sempre tendo trabalhado, não contaram com o benefício da escolarização.

Se em nenhum momento foi permitido aos escravizados africanos o acesso à instrução formal, tampouco a abolição foi acompanhada por políticas públicas destinadas a integrar os negros libertos à sociedade brasileira, o que contribuiu para reforçar as desigualdades entre a população negra e branca. Assim, os negros que representaram a maior força produtiva no cenário brasileiro permaneceram à margem da sociedade.

Atualmente, uma parte das mulheres negras, por meio da escolarização vem gradativamente rompendo a barreira da raça, conseguindo ascender profissional e socialmente. O estudo em níveis mais elevados tem lhe possibilitado alcançar postos que outrora lhes eram inacessíveis, gerando assim, outra condição profissional, identitária e de vida.
A luta do negro para alcançar a ascensão social envolveu anos de busca de valorização dos elementos étnicos, combate à desigualdade e um grande esforço para sentir-se valorizado numa sociedade onde ainda é vitima de estigmas negativos, o que muitas vezes o levou a abandonar suas origens dissociando-se do seu grupo racial e até do seu grupo familiar para não tornar-se um indivíduo estereotipado. Apesar dessa luta, ainda falta muito a se conquistar, pois: “as pessoas negras têm maiores problemas do que grande parte das outras minorias étnicas […]” (SANSONE, 2002).

Devido a isso algumas particularidades demarcam a fronteira entre as estratégias de ascensão dos negros e dos demais grupos étnicos. Com efeito, a ascensão social da mulher negra tem se concretizado por meio de estratégias individuais.

A ascensão social dos negros não pode ser analisada seguindo a mesma lógica da ascensão das minorias étnicas. Essas minorias usam estratégias comuns de ajuda mútua e de solidariedade étnica que no caso dos negros não extrapolam o limite familiar (FIGUEIREDO, 2002 p.53).

Metodologia

A metodologia utilizada desenvolveu-se em três etapas: num primeiro momento, foi efetuada uma consulta à bibliografia com o objetivo de compreender aspectos da discriminação racial e das questões de gênero no Brasil e obter subsídios para a análise do objeto a ser investigado. Na etapa da coleta de dados, foi lançado mão de entrevistas semi-estruturadas e histórias de vida de 20 mulheres residentes em Salvador, escolhidas para o estudo. A escolha das entrevistadas deu-se com base nas seguintes características: serem negras; terem entre 30 e 55 anos de idade; serem as primeiras de suas famílias a ingressar na Universidade e estarem vivendo um processo de ascensão social. Na terceira etapa foram analisados os dados.

No procedimento metodológico utilizou-se a abordagem comparativa para demonstrar os pontos comuns dos recursos utilizados por essas mulheres em suas trajetórias individuais e educacionais e não meramente os pontos comuns entre as próprias.

Mulheres Vencedoras

Existem semelhanças nas trajetórias dessas mulheres no que se refere a infância e escolarização, mesmo tendo escolhido áreas profissionais distintas e serem vitoriosas nas mesmas, havendo também em comum a certeza que precisavam estudar muito para mudar e alcançar seus objetivos.

A maioria estudou em escola publica desde o ensino fundamental e as que estudaram durante um período em escola particular o fizeram graças a bolsas de estudo, o que mostra um sistema educacional extremamente desigual, principalmente nas regiões com maior concentração de negros.

Em geral, são oriundas de famílias com baixa escolaridade e renda de um a dois salários mínimos:
[…] Meu pai não completou o segundo grau, e minha mãe estudou até a 3a série do primeiro grau. (Rita, promotora. 50 anos).

[…] Então, nasci em Dias D’Avila minha família… Éramos dez filhos de meu pai e minha mãe, dos dez, nove irmãos teve um filho que minha mãe criava porque achava poucos os nove, três mulheres e sete homens, sou encostada a mais velha, Lene. Meu pai é quase analfabeto e minha mãe tem o fundamental, não tiveram condições de estudar… (Maria, Socióloga 35 anos).

[…] Nasci em um interior bastante pobre, fomos morar longe da cidade. Então aquele velho habito de aglomerados negros de tomarem conta dos filhos daqueles que morreram ou abandonaram e meu pai foi criado por um tio dele família negra, ele aprendeu a ler no núcleo familiar, o tio dele ia buscar em feira um professor para alfabetizá-lo ele e os primos todos negros pagavam o professores porque naquele tempo não tinha escola para criança negra, não tem hoje, imagine naquele tempo para alfabetizar…(Graça, Contadora 50 anos).

[…] Família pobre, todo mundo tem que se virar pra trabalhar, minha mãe é assim, ela costurava e meu pai tinha uma serralharia de porta, de ferro estas coisas e minha mãe costurava, mas minha mãe sempre foi assim, esse lado assim, ela sempre pensou muito na educação dos filhos tanto foi que ela colocou os cinco na universidade, então,eu já estudava em um dos melhores colégios de Salvador que era Anfrisia Tiago, ela costurava 24 horas pra pagar a escola que a gente estudava… (Selma, Bioquímica 52 anos).

[…] Minha avô fazia marmita pra fora, era baiana de acarajé essas coisas todas. Então eu frequentava assim a escola de branco, a rua de branco, a casa de branco e eu estava fazendo parte daquele contexto por acaso, não tinha livro para estudar. Então sempre foi assim, eles sempre fizeram sacrifício para me manter porque queriam me dar uma educação melhor do que eles tinham por eu ter uma vida melhor do que as que eles tinham …(Gisana, Nutricionista 41 anos).

Sempre tiveram que trabalhar seja para ajudar na manutenção da família, conciliando assim trabalho e estudo. Cerca de 95% trabalhava de dia e estudava à noite:

[…] Meus pais fomos morar longe da cidade, um pedaço de terra desse meu pai fez seu barraco e outras pessoas fizeram e eu cresci nesses 5 metros quadrados de terras, que era o limite das fazendas desapropriadas. Ai eu passei minha infância de luta e trabalho… depois, contra vontade de meus pais vim para Salvador, para estudar e trabalhar. Morei na periferia… (Graça).

[…] quando eu fui para o Colégio Duque de Caxias eu já estudava a noite eu era adolescente e trabalhava para ajudar na casa, morava numa casa de um vasinho só, contabilidade no Carneiro Ribeiro, depôs me casei mas antes de casar trabalhei muito, éramos pobres.. Eu trabalhava tomava conta de casa e estudava, estudava de noite, trabalhava de dia e ai no fim de semana era que eu cuidava da casa… (Mirna).

[…] Esperava meu filho dormir, numa casinha, a gente morava lá no IAPI. Deixava ela dormir e ia estudar. (Lúcia, Enfermeira 50 anos).

As entrevistadas também mostram que a persistência para vencer, apesar de demorarem mais tempo para concluir os estudos, tem sido sua estratégia para superar os obstáculos, reafirmando a pesquisa de Figueiredo (2002). Que faz um estudo sobre os profissionais liberais negros de Salvador, examinando conjuntamente o fenômeno das novas identidades sociais e a mobilidade social negra soteropolitana. A formação de uma classe média negra e a convivência desses no mundo dos brancos.

Para essas mulheres entrevistadas, continuar os estudos, terminar o ensino médio e entrar na universidade era uma aspiração quase impossível, levando-se em conta que para alcançarem esse objetivo de se integrarem na sociedade de classes (Fernandes, 1965), teriam que enfrentar o preconceito, racial, sexual e econômico. Seu destino era cuidar da família e ajudar nas despesas. Estudar e ter um título era para os brancos, e os filhos dos brancos.

Porém, essas mulheres não se acomodaram a esse “destino”. Pelo contrário, se dedicaram aos estudos procurando sempre estar entre as melhores alunas e aproveitar todas as oportunidades para ascender socialmente, se distanciando do passado familiar. Nessa trajetória, conseguiram o que parecia “impossível”, ou seja, passar no vestibular, e muitas delas ingressar em universidades públicas. Entrar na universidade foi para elas uma vitória grandiosa:

[…] E ai eu fiz vestibular para enfermagem eu queria ser enfermeira. Ai eu fiz vestibular na UFBA e na UEFS passei nas duas. Tive esse privilégio. Toda a minha vida foi assim. O curso na UFBA não foi uma coisa fácil. Dentro daquela universidade nos somos extremamente discriminados. Somos poucos… (Lúcia, Enfermeira 50 anos).

[…] O ingresso na faculdade de direito foi um momento importantíssimo na minha vida como mulher e negra, apesar das discriminações sofridas… (Rita, Promotora 50 anos).

[…] O ingresso na faculdade foi um momento fantástico, importantíssimo na minha vida, era a única mulher negra na minha sala de aula do curso de medicina. E a formatura, a cerimônia de formatura, o último dia de aula, que eu me lembro que eu olhei para trás e disse: “Gente, acabou essa fase”. Quer dizer, “eu consegui chegar até aqui”. E eu passei a ter consciência, até mesmo porque a gente fica meio anestesiada… (Luisa, Médica 35 anos).

Nessa trajetória, o incentivo da família, foi fundamental:

[…] Meu pai sempre me incentivou nos estudos, para ele essa era a porta de crescimento econômico, social e profissional, para uma mulher negra, pagou os meus estudo na Universidade Católica como motorista, quando não pode mais eu consegui o crédito educativo…(Rita, Promotora 50 anos).

[…] Meu pai, sempre incentivando a estudar, pra ter um padrão de vida melhor e pra ter uma… Cada um procurar seu caminho, ele ficou desempregado e ai começou a. (Geila, Arquiteta 38 anos).

[…] e ai meu pai sempre dizia que a gente tinha que estudar muito para passar em um concurso público, ser um funcionário público, pois era a chance que nos tínhamos de sair do sistema de discriminação. Não tinha livro então eu ia para biblioteca e copiava o assunto. Eu cheguei a Salvador em 1973 e em 1978 eu conclui meu segundo grau. Fiz o concurso público para a fazenda… (Graça, Contadora 50 anos).

[…] Então a gente cresceu ouvindo que era importante estudar, estudar, estudar sempre. De todos os problemas que a gente tinha, a única coisa que não se admitia era faltar aula, era a única coisa. Meu pai visualizou pra gente como única oportunidade de crescimento social e profissional a educação. De todos os problemas que a gente tinha, a única coisa que não se admitia era faltar aula, era a única coisa, o estudo é fundamental. Então meu pai sempre pensou nisso pra gente… (Luisa, médica 35 anos).

Os atos discriminatórios que sofrem no ambiente de trabalho, de forma velada ou aberta, questionando sua capacidade profissional são ainda freqüentes, e exigem por parte dessas mulheres a construção diária de uma consciência critica contra esses mecanismos utilizados para bloquear sua ascensão profissional:

[…] Eles tratava com muita cordialidade, mas é como eu te falei, é ali dentro. Uma vez ou outra que a gente saia, mas é muito dentro da empresa. Fora de lá você não faz parte desse mundo, você não faz parte desse universo. É sempre você com a sensação de que você é um ET dentro desses universos. Tem muito disso (Luisa, Médica 35 anos).

[…] São várias farmacêuticas, somos cinco na equipe. A relação de coleguismo é o seguinte: tem aquela relação de trabalho… Eu sei que eu sou uma pessoa que sempre me impus. E aí eu via algumas resistências para aceitar minha liderança, minhas determinações, por eu ser mulher e negra, sei que me respeitam, ali dentro, lá fora é diferente… (Telma, Farmacêutica 33 anos).

[…] Fui sócia de um laboratório, só que minha sócia era assim, ela era mais clara do que eu, mulata. Mas ela era assim, depois que fui descobrir depois de muito tempo com ela, eu descobri que ela era muito racista e eu negra sócia dela, todo mundo que chegava ao laboratório, ela nunca me apresentava como sócia dela foi uma fase muito difícil… (Selma, Bioquímica 52 anos).

[…] Na faculdade de Farmácia, eu era uma negra entre vários brancos. Você contava de dedo um ou outro também negro, então, não eram muitos negros. Eram, no máximo, três na turma toda. É aquela coisa assim, colega da faculdade, estudar junto, não-sei-quê. Mas saía do portão da faculdade, acabou a relação. Você não era chamado para nada. Eu lembro que quando eu ia na casa de uma amiga estudar ou fazer alguma coisa assim, tinha sempre aquela apresentação: “Essa aqui é minha colega da faculdade”. Como se estivesse dando uma justificativa para você estar lá. O sentimento é exatamente esse: justificando porque estar com você, negra… (Telma, Farmacêutica 33 anos).

[…] Na faculdade de Farmácia e Bioquímica eram duas negras ou três. Na minha sala de aula, eu era a exceção do Ensino Médio também no colégio particular… (Selma, Bioquímica 52 anos).

[…] Na graduação você encontra negros, na pós, cadê o negro? Você faz a prova de inglês é eliminatória, ai já exclui. Foi uma alegria imensa passar na Graduação e depois na pós onde o funil é bem menor, é um sentimento de vitória… (Gisana, Nutricionista 41 anos).

[…] a universidade me tirou da condição de miserável e me colocou como elite. Uma mudança, assim, radical, porque a partir do momento que eu entrei… que eu comecei a ensinar e que eu entrei no Aliança, aí mudou radicalmente. Porque a renda da nossa família é muito baixa. (Graça, Contadora 50 anos).

Portanto, além da problemática de gênero, tiveram e têm que enfrentar a questão racial dentro do gênero, e do padrão estético que as excluem de determinados cargos e empresas. Conseguiram, entretanto vencer essas barreiras, superando as adversidades e a marginalidade que suas mães e antepassadas sofreram e que muitas ainda sofrem. A sua ascensão social com a entrada em um mercado de trabalho restrito para as mesmas por sua vez, contribuiu para a elevação da sua auto-estima.

Enfrentar dificuldades econômicas, de moradia, foi muito difícil, entretanto, olhar para trás e perceber o quanto caminharam ao se inserirem em uma classe que por nascimento “não lhes pertencia”, ao terem a possibilidade de escolher o local onde morar é para essas mulheres uma trajetória de sucesso.

Distanciadas do universo de origem, do seu referencial familiar, aprendem a valorizar cada conquista. Passaram por experiências de luta como negras e pobres em uma sociedade racista e estão vencendo o sofrimento e a luta pela vida digna:

[…] Enfim, ter uma vida razoável uma vida. Eu, uma mulher negra, pobre que nasci no interior, na situação que eu estou lhe dizendo, de todas as minhas amigas que eu conheci lá no interior e que eu conheci na luta aqui em Salvador, nenhuma delas conseguiu o que eu consegui. Cinco delas ganham o salário mínimo e uma que eu conheci no escritório de contabilidade hoje é empregada domestica. As minhas colegas de infância, até mesmo as branquinhas continuam lá no interior, casadas, cheias de filhos… (Graça, Contadora 50 anos)

[…] Eu fui morar em Sussuarana, que eu juntei com uma prima minha e a gente comprou um pedacinho de terreno lá. Então eu aluguei um quarto, continuei morando de aluguel, e fui levantando um cômodo nesse pedacinho de terra que a gente tinha comprado. Então eu fiz um quarto e um banheiro e morei lá, que era um quarto e um banheiro mesmo, por seis anos. Era numa invasão. Era uma invasão nova, ali na estrada das Barreiras, porque é colada em Sussuarana. Era uma invasão que tinha e, assim, você comprava, mas você não tinha documento, você não tinha nada Até que eu passei na faculdade e dois anos depois que eu passei fui morar na residência universitária convocava a mudança. (Telma, Farmacêutica 33 anos)

[…] Na graduação foi muito difícil porque eu trabalhava no Hospital à noite ganhava muito pouco pra sobreviver em Salvador, então quando vim pra Salvador acho que eu já estava no 4o semestre da Faculdade foi quando realmente surgiu… Já dava pra conciliar estágio, no 3o semestre eu já comecei, mas eu ainda nem morava em Salvador, comecei a estagiar aqui, mas aí no semestre seguinte consegui alugar uma casinha muito pequena, muito precária na Santa Mônica que eu vim primeiro morar com uma colega aí ela me ajudou a arrumar essa casinha, e aí comecei a morar aqui sozinha com o salário do HGC com ajuda de custo do estágio dava pra ir pagando o aluguel… (Maria, Socióloga 35 anos)

Os depoimentos mostram quão dolorida e conflituosa foi a construção da identidade profissional e social das mulheres entrevistadas. Como já constatado por Gomes (1995), em sua pesquisa com mulheres negras, professoras universitárias que mesmo ultrapassando as diversas barreiras que lhes dificultam o acesso a escolarização e inserção no mercado de trabalho, continuam alvo de preconceitos, atitudes discriminatórias de intolerância sexista e racista.
Entretanto, a despeito dessas dificuldades essas mulheres não se deixaram abater, pelo contrário, serviram de estímulo para a busca de auto valorização e de uma trajetória de vida vitoriosa. As suas histórias mostram que nem sempre ocorre o apontado por Costa (2003), ou seja, de que o negro encarna o corpo, os ideais e o ego do sujeito branco e ao mesmo tempo recusa, nega e anula a presença do corpo negro. Essas personagens da historia racial brasileira demonstraram consciência de seu papel como pioneiras e, ao mesmo tempo, herdeiras da força de suas antepassadas e precursoras de uma nova geração de vencedoras.

Elas representam as mulheres negras soteropolitanas, suas lutas e conquistas. Estão deixando para as próximas gerações um legado de persistência e de coragem, contribuindo assim para a construção de uma identidade positiva dos negros. O caminho percorrido foi árduo, trazendo à lembrança os obstáculos enfrentados por nossas antepassadas, as primeiras a trilharem essa estrada de discriminação e vitória.

A ascensão dessas mulheres negras vem, aos poucos, gerando mudanças no quadro nacional de exclusão social, educacional e profissional. Superando as dificuldades raciais, econômicas e de gênero, vencendo as adversidades, tornando-se bem escolarizadas e grandes profissionais em suas respectivas áreas, elas pautam uma nova versão da história das mulheres negras no Brasil.

Considerações Finais

A pesquisa mostrou que pouca coisa mudou em relação à segregação racial não institucionalizada, ainda existente no mercado de trabalho brasileiro.

Na incorporação ao mercado de trabalho, as negras sofrem maiores sanções em relação a sua aparência física, seus traços fenotípicos, demonstrando que o gênero e a raça fazem bastante diferença na construção da auto-imagem da população não branca. O que “para um gênero e etnia pode ser uma vivência e um percurso de afirmação de uma auto-imagem, para outra etnia e gênero pode ser um percurso traumático deformador” (GOMES,1995:18).

Notou-se, entretanto que as mulheres negras estão conseguindo vencer as barreiras, utilizando-se do aperfeiçoamento educacional para, assim, inserir-se no mercado profissional mais elevado. Confirmou-se, portanto a hipótese suscitada no levantamento teórico de que a inclusão da mulher afro descendente no mercado de trabalho, antes exclusivo das brancas, seria possível graças ao elevado grau de escolarização das mesmas.

Autorizada a citação e/ou reprodução deste texto, desde que não seja para fins comerciais e que seja mencionada a referência que segue. Favor alterar a data para o dia em que acessou-o:

PEREIRA, Edilene Machado. Marias que venceram na vida: uma análise da ascensão da mulher negra via escolarização em Salvador, BA. Revista África e Africanidades, Rio de Janeiro, ano 2, n. 8, fev. 2010. Disponível em: . Acesso em: 31 jan. 2010.

 

 

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Revista África e Africanidades – Ano 2 – n. 8, fev. 2010 – ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com
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Revista África e Africanidades – Ano 2 – n. 8, fev. 2010 – ISSN 1983-2354 www.africaeafricanidades.com

 

 

 

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Fonte: Africa & Africanidades

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