‘A maternidade só pode ser tratada como experiência de plenitude e felicidade’, critica psicanalista

“Que tipo de mãe eu sou se não tenho paciência com meus filhos?”

Por Amanda Mont’Alvão Veloso, do  

“Como é possível que eu não queira estar com meus filhos?”

“Que espécie de mulher eu sou se a maternidade me faz tão infeliz?”

Perguntas impensáveis para algumas mães, realidade confidenciada de outras. Um grande tabu cerca a maternidade real, de modo que, em nossa cultura, ela esteja grudada a um ideal de perfeição e santidade.

Não à toa, a maternidade é vivida com culpa, angústia e sofrimento por muitas mulheres.

Os questionamentos do começo desta reportagem são trazidos pela psicanalista e pós-doutora em Psicologia Clínica Marcia Neder em seu recente livro Os Filhos da Mãe(Leya/Casa da Palavra, 2016).

As perguntas exemplificam a angústia de mulheres que escolheram ter filhos em uma cultura em que a maternidade é tida como a única experiência capaz de fazer a mulher se sentir completa e feminina. E tais angústias costumam ser apenas compartilhadas nos consultórios dos terapeutas e psicanalistas. Ou faladas por meio da arte.

“A infantolatria (como chamo o culto à criança) é exatamente essa mistificação da mãe, a sua idealização, isto é, a imposição de um ideal no qual a mãe é uma santa, uma devota que passaria sua vida na adoração do seu pequeno deus”, a autora explica ao HuffPost Brasil.

O patrulhamento das atitudes de cada mãe nas redes sociais deixa explícita essa expectativa de perfeição.

Em fevereiro deste ano, uma mãe deu um depoimento no Facebook sobre a experiência dela de maternidade e a descreveu como dolorosa e cansativa. “Quero deixar bem claro que amo meu filho, mas odeio ser mãe”, ela diz, em um trecho. Ela recebeu milhares de comentários de reprovação e seu perfil foi denunciado para o Facebook e, em seguida, bloqueado.

Outras versões do julgamento dizem respeito à melhor maneira de ser mãe. “Foi parto humanizado?” “Foi cesárea?” “Amamentou até quantos anos?” “Com quantos anos foi para a creche?” “Dorme na sua cama?” e “Come açúcar?” podem ser verdadeiros bombardeios disfarçados de conversa amena.

“Só podemos mostrar e falar da maternidade como uma experiência de plenitude e felicidade. Raiva dos filhos, impaciência e outros sentimentos menos ‘nobres’ são inconcebíveis”, escreve Neder em seu livro.

Partindo de uma cuidadosa pesquisa histórica e psicanalítica, mesclada à sua própria experiência como mãe de dois filhos e a depoimentos de outras mulheres, a autora situa o momento em que a criança se tornou o centro da família e foi colocada em um pedestal.

A partir do final do século 18 e início do século 19, a família, que era organizada pela autoridade do pai, começa a sofrer uma grande transformação ao se centrar, cada vez mais, na criança – e no amor da criança, explica.

“A maternidade, que não tinha valor algum na sociedade, nessa época se torna a atividade mais valorizada para uma mulher. A criança tornou-se um pequeno deus idolatrado e são muitas as consequências desta infantolatria para os pais e para os filhos.”

Segundo a psicanalista, o despotismo infantil acaba atingindo a própria criança, que não fica bem ao perceber que consegue controlar aqueles que deveriam cuidar dela.

“Esse poder mergulha a criança numa angústia porque a deixa à deriva em seus próprios impulsos, que ela sozinha não consegue controlar. É o que ocorre quando ela sai correndo para atravessar uma rua e não sente que há um adulto que a contenha.”

Colocar as crianças no pedestal é um movimento da cultura ocidental, e não a decisão individual de certos pais e certas mães. Tirar os filhos do pedestal, no dia a dia, significa ir contra nossa cultura, que considera normal e obrigatório que a criança ocupe o centro da família, pondera Neder.

De acordo com a autora, uma atitude importante, e que pode funcionar como um norte para os pais, é que o adulto seja um adulto, pois é de um adulto que a criança precisa.

“Não estou falando de alguém ‘severo’, ‘carrancudo’, ‘mal-humorado’, ‘ditador’, ‘carrasco’, ‘que não brinca’. Nada de adjetivar: trata-se apenas de um adulto, de alguém que pensa além do aqui e agora, que consegue imaginar as consequências não só para ele, mas também para a criança, das escolhas que está fazendo.”

Só podemos mostrar e falar da maternidade como uma experiência de plenitude e felicidade. Raiva dos filhos, impaciência e outros sentimentos menos ‘nobres’ são inconcebíveis

Os filhos também são dos pais

O título do livro, Os Filhos da Mãe, é uma referência à nossa cultura que, há séculos, identificou a mulher, a mãe, como o adulto que cuida e educa a criança.

“Da mulher espera-se que tenha filhos. E não basta tê-los: é obrigatório amá-los acima de tudo e de todos, sob pena de ser excluída da espécie humana”, escreve Neder em seu recente lançamento.

Um dos resultados dessa cultura é uma visível exclusão ou minimização dos pais na criação dos filhos, inclusive quando os próprios homens se excluem desse rico processo. Os motivos são vários, afirma a psicanalista:

“O primeiro de todos a ser mencionado é o mito de que os filhos são da mãe e de que a maternidade é a condição da feminilidade, enquanto a masculinidade seria a agressividade (a conquista, o combate) e o poder. Há pelo menos dois milênios tem sido assim.”

O brincar de boneca é um claro indicativo dessa situação: é muito mais comum entre meninas e desencorajado entre meninos.

“Brincar de boneca seria um monopólio das meninas porque, desde que nascem, começam a ser apresentadas ao modelo feminino que é a mãe: É a mulher que cuida de um bebê, que cuida de uma criança, que educa. Ela brinca de casinha e limpa a casa, faz a comida.”

Segundo a psicanalista, não se trata proibir a brincadeira entre meninas, mas sim, embaralhar essas fronteiras.

“Incluir o menino na mesma função cuidadora já é começar a incluir o homem na criação dos filhos e, inclusive, levá-lo a pensar se vai querer ter filhos, sabedor, agora, de que será parte da educação deles.”

A tal falta de limites

No livro anterior de Neder, Déspotas Mirins: O Poder nas Novas Famílias, a autora argumenta que as crianças estão sem limites porque os adultos deslocaram o poder do pai e do adulto, instituindo uma pedocracia.

São as rotineiras cenas de crianças mandando na família, decidindo desde as horas de sono dos pais, as compras do supermercado e o espaço na cama do casal.

“É grande a transformação que [a infantolatria] impõe à vida do casal, e não é casual o alto índice de separações que se seguem ao nascimento dos filhos”, alerta Neder no livro Os Filhos da Mãe.

Incluir o menino na mesma função cuidadora já é começar a incluir o homem na criação dos filhos

Porém, na hora de definir se a criança deve sair ou não da cama dos pais, Neder critica veementemente a tentativa de alguns profissionais de estabelecer normas, proibindo a situação. Para ela, são necessárias fagulhas que provoquem a reflexão e viabilizem escolhas.

“Uma destas fagulhas seria perguntar qual o espaço que sobra para a vida do casal quando isso acontece? E se já não há casal, que espaço sobra para a vida da mãe nessas circunstâncias?”

O atual arranjo cultural certamente afeta a educação e, por consequência, a tolerância a frustrações e a noção de limites que a criança terá. Mas Neder é enfática: ao contrário do que comumente se diz, educar não é simplesmente dizer ‘não’.

“Pesquisei a história da educação e esta ideia simplista, tão aceita sem discussão e repetida à exaustão empobrece a educação. Educar é muito, mas muito mais do que dizer ‘não’.”

Quando o filho ou a filha se recusa a comer, os pais frequentemente se veem diante de um desafio. A psicanalista destaca que não há uma fórmula, ainda mais que são vários os motivos para a criança recusar a comida e, portanto, cada um demanda uma atitude diferente.

“Ela pode estar muito envolvida com uma brincadeira, com os amigos, com o ambiente; ou pode estar com muita raiva de você e já saber que é exatamente por aí que ela consegue te levar a sair do controle (e, portanto, que ela consegue tomar o controle sobre você e sobre a situação) ou pode estar com ciúmes do irmão e tentando concentrar sobre si toda a atenção.”

Se a criança estiver medindo força, desafiando os pais a perder o controle e, assim, ela se sentir dona da situação, entrar nesse jogo pode ser o paraíso para o filho ou a filha.

“Nesse caso, tirar a comida do foco, recusando-se a entrar no jogo, talvez possa surpreendê-la e desarmá-la completamente. E você a terá feito comer mostrando, na prática, que é você que está no controle da situação sem, no entanto, fazer com que ela se sinta humilhada por sua rendição.”

Maternidade sem culpa

Raiva, impaciência, individualidade, expectativa de gratidão, medo de perder a carreira e os sonhos, arrependimento e o desejo de ficar sozinha são sentimentos geralmente “proibidos” para uma mãe em uma cultura que a vê como devota.

“A mulher, mais do que o homem, está proibida de confessar que não ama a criança – e que não ama a sua criança mais do que a si mesma. Essa idealização tranca a sete chaves os sentimentos ambivalentes que atravessam todas as nossas relações”, Neder explica no livro.

Dar à luz é natural para uma mulher, mas ser mãe é bem diferente e implica construção.

“Sem o conhecimento que a História nos dá de que esse ideal [mistificação da mãe] surgiu num determinado momento da cultura ocidental, nós ficamos apenas com a ideia de que esse vínculo santificado é “naturalmente” dado, já que é a mãe que dá à luz e que tem o leite que amamenta a cria.”

Neder explica que não se trata de uma opção consciente: a mulher se submete sem consciência a esse mito da perfeição, assim como a tantas outras ordens que recebedela mesma.

“Porque o mito não está lá fora: está dentro de cada um de nós, que nos tornamos quem somos porque, desde que nascemos, vamos nos identificando com os modelos que a cultura nos oferece. Isso dito de uma maneira geral, porque a experiência singular é muito mais rica do que isso. É preciso considerar a relação com a mãe: por exemplo, a filha que se sentiu muito malcuidada, preterida (mesmo que por ciúme) pela mãe, pode exigir de si o máximo da perfeição para mostrar para a mãe que, como mãe, ela é muito melhor. Veja como uma ‘simples’ rivalidade com a mãe pode empurrar a mulher por esse caminho da perfeição. Porque a cultura pode exigir, mas caberá a cada mulher escolher se vai ou não realizar esse imperativo.”

 

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