Este texto é uma adaptação de um capítulo originalmente intitulado “Meninas e meninos na escola”, de autoria de Cinthia Torres Toledo, Fábio Hoffmann Pereira e Adriano Souza Senkevics, publicado no Caderno de Debates do NAAPA (2016), da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
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Gênero é uma ferramenta potencialmente útil para compreender as relações sociais e de que forma desigualdades, hierarquias e opressões permeiam a experiência dos sujeitos. Contudo, em razão de campanhas mal-intencionadas, o conceito de gênero tem sido apresentado sob a falácia da“ideologia de gênero”, entendido como um elemento doutrinador. Isso é, de fato, exatamente o oposto de seu verdadeiro papel: emancipar sujeitos que se percebam em um emaranhado de relações de poder que limitam nossas possibilidades e horizontes de vida. Este texto nada mais do que é uma tentativa de reforçar esse aspecto, contextualizando o conceito de gênero no debate educacional.
No passado, o acesso das mulheres à educação formal era bem mais restrito ou, quando não, inexistente. Essa situação perdurou por um longo período da história brasileira e só começou a ser revertida com a expansão do acesso à educação em meados do século passado. Embora as mulheres tenham conquistado o direito à educação em 1827, esse acesso se dava de maneira segregada, em que, entre as poucas mulheres que tinham a oportunidade de estudar, a maioria frequentava modalidades vocacionais de ensino, voltadas à formação de “boas mães” e “boas esposas”, e não propriamente a uma educação orientada ao exercício da cidadania e ao mercado de trabalho. Em paralelo a isso, as condições de vida da população, a divisão sexual do trabalho e as poucas oportunidades de emprego em um Brasil ainda rural eram fatores que desestimulavam um eventual prolongamento da escolarização.
Escola Normal da Praça (São Paulo), no final do século XIX: exemplo de antigo modelo educacional brasileiro, caracterizado pela separação física e curricular entre os sexos. (Reprodução/
Esse quadro começou a ser revertido quando, por volta da metade do século XX, a construção massiva de escolas passou a elevar substancialmente o acesso das camadas populares à educação. Ao mesmo tempo em que se levantavam prédios para atender à crescente demanda educacional, derrubavam-se barreiras legais que restringiam o percurso educacional de determinados grupos. Exemplo disso é a reforma educacional de 1961, que, ao tornar equivalentes os diplomas de ensino médio, permitiu que inúmeras mulheres que haviam concluído a chamada “escola normal” pudessem continuar seus estudos em nível superior. Não demorou muito para que as mulheres passassem a apresentar taxas de escolaridade superiores às dos homens. Trocando em miúdos, ao romper obstáculos e conduzir a população a uma situação mais igualitária no campo dos direitos sociais, um efeito inesperado aconteceu: a luta por igualdade acabou por produzir uma diferença.
Isso equivale a dizer que as mulheres foram as principais beneficiárias da democratização do acesso à educação, de tal modo que o século passado assistiu à chamada “reversão das desigualdades de gênero”, quando nos referimos aos indicadores de acesso e progresso ao longo do percurso educacional, em que a população do sexo feminino passou a galgar melhores posições, na contramão de sua histórica exclusão. A título de ilustração, dados do Censo Demográfico de 2010 apontaram que, entre a população de 15 a 29 anos, 3,6% dos homens eram analfabetos, contra 1,9% das mulheres. Em decorrência das trajetórias escolares mais acidentadas para os rapazes, 42,4% dos homens entre 15 e 17 anos frequentavam, naquele mesmo ano, o ensino médio regular, comparado a 52,2% das mulheres dessa mesma faixa etária. Como se pode esperar, essas desigualdades se acumulam ao longo do percurso escolar dos estudantes, de forma que as mulheres representam cerca de 60% dos concluintes da educação superior no Brasil, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2014.
Na atualidade, as desigualdades de gênero pesam, em seu conjunto, a favor das meninas. No entanto, fortes discrepância por nível socieconômico e cor/raça marcam as oportunidades educacionais no Brasil. (Reprodução/
Constatar essas disparidades numéricas não significa afirmar que não existam obstáculos pelos quais as meninas são obrigadas a atravessar em suas vidas. Não podemos esquecer que a violência de homens contra mulheres, o sexismo, e outros problemas sociais afetam a vida das garotas dentro e fora da escola. Ainda considerando indicadores educacionais, de acordo com o estudo Estatísticas de Gênero: uma análise dos resultados do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2014), apesar da presença majoritária das mulheres no ensino superior, elas também estão em maior proporção em cursos de Educação (83%) e Humanidades e Artes (74,2%), as duas áreas com os menores rendimentos médios (R$ 1.810,50 e 2.223,90, respectivamente). Portanto, podemos dizer que há áreas de conhecimento com predomínio de matrículas de homens, cujas profissões são masculinizadas e muitas vezes associadas a remunerações mais altas, além de maiores possibilidades de acessar cargos de prestígio e postos de poder.
Ao lado disso, as desigualdades socioeconômicas e raciais são marcantes na educação brasileira, atravessando a experiência de meninos e meninas que assume contornos diferentes de acordo com sua cor/raça e classe social. Para ilustrar, segundo o Censo Demográfico de 2010, entre os jovens de 15 a 17 anos da região Sudeste, a taxa líquida de matrícula das meninas brancas era de 64,4%, dos meninos brancos 57,9%, das meninas negras 52,8% e dos meninos negros, 43,2%. A partir desses dados, podemos perceber que, enquanto as meninas apresentam indicadores educacionais superiores aos dos meninos de seu mesmo grupo de cor/raça, as meninas negras ainda apresentam indicadores inferiores aos dos meninos brancos. Já a diferença dos indicadores das meninas brancas para o dos meninos negros é ainda mais gritante, chegando a 21,2 pontos percentuais. Assim, quando pensamos em meninas e meninos, devemos considerar que esses grupos não são homogêneos, envolvendo desigualdades e diferenças também entre os meninos e entre as meninas.
conceito de gênero é potencialmente útil para desvelar relações de poder entre os sexos, onde antes prevaleceria uma compreensão lúdica sobre as “diferenças”. (Foto: SME/SP)
Compreender fenômenos complexos como as desigualdades educacionais entre homens e mulheres não é tarefa simples. Para abordá-los, é necessário lançar mão de conceitos que iluminem tais problemáticas e articulem formas de compreendê-las, esmiuçá-las e, evidentemente, de propor estratégicas de superação. Aqui, nosso foco reside sobre o conceito de gênero.
Apesar de existirem diferentes definições do conceito de gênero e formas de entendê-lo, a depender das autoras/es que escolhermos, podemos pensar em gênero como uma estrutura material e simbólica de organização social. Essa estrutura está organizada em pares dicotômicos, em que cada um dos termos pode ser socialmente considerado feminino e masculino, tratados como polos opostos e excludentes. Configurando a partir dessa oposição, essa estrutura desvela que não meras diferenças entre os polos, senão que nessas polarizações existe também uma hierarquia em que aquilo que é socialmente considerado masculino tende a ser considerado superior do ponto de vista social.
Tomemos como exemplo os termos “emoção” e “razão”. A razão é uma característica considerada masculina e valorizada em nossa sociedade, em nossas relações de trabalho e até mesmo em nossas relações pessoais. Quem nunca ouviu a expressão: “é preciso agir de acordo com a razão”? Ou mesmo: “você é um homem ou um saco de batata?”, utilizada para dizer aos meninos que eles devem ser fortes, racionais e não demonstrarem suas emoções, entendidas negativamente como fraquezas? Não à toa, em nosso vocabulário, encontramos diversas expressões nas quais aquilo que é considerado feminino, ou “de mulher”, é entendido como inferior (“mulherzinha”, por exemplo).
Considerando essas oposições, também podemos entender gênero como um conjunto de processos sociais, históricos e culturais por trás da construção social do sexo. Afirmamos que as distinções de gênero são um forte componente da vida social em sociedades como a brasileira ou, de modo geral, em nações latino-americanas e ocidentais. Por meio dele, desde antes do nosso nascimento somos definidos como pertencentes ao sexo masculino ou ao sexo feminino. Essa divisão, por sua vez, é a base para inúmeros processos que nos conduzem a diferenciações e à construção de uma identidade de gênero: a escolha das cores do enxoval, os nomes e pronomes, os brinquedos e atividades de lazer, as carreiras profissionais com as quais nos envolvemos, as perspectivas de relacionamento afetivo e sexual, as expectativas para o futuro etc.
O processo de socialização de gênero depende da atuação de inúmeras instituições. Na imagem, vê-se uma estudante de costas que, pelo seus adereços (pulseira, prendedor de cabelo etc.), nos sugere a expressão de certa identidade de gênero. (Foto: Ed Viggiani/Agência Estado)
Em todos esses processos, há várias instituições envolvidas: a família, a mídia, a linguagem, a religião, entre outras. Por ser ampla e contínua, asocialização de gênero é um processo que marca a vida de todas e todos e se dá justamente nos diversos encontros que acontecem entre nós e outros indivíduos, grupos e instituições. Mesmo se não pararmos para pensar nesses aspectos, estamos constantemente expressando o que consideramos como feminino ou masculino, bem como o que esperamos de mulheres e homens na sociedade. Crescendo em meio a essas relações, os sujeitos são levados a se construir como meninas ou meninos, dentro de uma sociedade que geralmente considera apenas os gêneros feminino e masculino como possibilidades.
É claro que esse processo não é unívoco. Pensemos, por um momento, nos meninos e meninas transexuais – aqueles/as que assumem uma identidade de gênero diferente do sexo designado em seu nascimento. Estes são o exemplo mais visível de como os processos que vimos discutindo até então não acontecem de forma passiva, em que a sociedade alocaria sobre os sujeitos um conjunto de expectativas pré-fabricadas. Mesmo entre crianças cisgêneras – aquelas que assumem uma identidade de gênero em concordância com o sexo designado em seu nascimento – podemos enxergar processos de recusas e contradições. Quem nunca conheceu uma garota que não fosse classificada como “moleca”? Ou um menino visto pelos adultos como “efeminado”? Há várias formas de “ser menina” e “ser menino”, de tal modo que essas expressões podem estar até mesmo em disputa, quando um jeito de se apresentar como menina ou como menino implica certa tensão ou conflito com outras expressões.
Encerramos este texto, assim, deixando essas indicações de como trabalhar com o conceito de gênero para desvelar relações de poder entre mulheres e homens, meninas e meninos, cis ou trans, em toda sua diversidade. Para quem pretende se aprofundar no tema, recomendamos a leitura do capítulo original (clique aqui), com exemplos de trabalhos de campo e maior desenvolvimento do tema. E que gênero seja entendido em suas potencialidades para que possamos compreender melhor a sociedade e a nós mesmos.