Sócrates foi um jogador talentoso, no panteão dos melhores do mundo e um cidadão que deu orgulho não apenas aos corinthianos ao liderar o movimento contra cartolas dentro do clube Corinthians, a Democracia Corinthiana, mas a todos os brasileiros que lutam pela democracia, ao fazer parte pela luta de redemocratização no país, na campanha Diretas Já. Sócrates chegou a ser fichado pelo DEOPS por sua militância e combate à ditadura militar. Soube conciliar o futebol e as exigências de um curso de medicina e fundou em Ribeirão, na cidade onde se formou em medicina, a FMRP-USP.
Por Maria Frô no, Revista Fórum
Por tudo isso, Sócratres deve estar se revirando no túmulo. Uma personalidade com a sua trajetória não merecia compartilhá-la com bárbaros misóginos, racistas, e estimuladores da violência. Matérias da grande mídia como a de O Globo, minora muito a gravidade das denúncias de vítimas de violência de estupro na Faculdade de Medicina USP- Ribeirão Preto. As letras racistas, misóginas e que incitam o estupro são apenas um fio da gravidade das denúncias que vão de estupros praticados pelos alunos da faculdade de medicina, humilhação física e psicológica e coação das vítimas para que silenciem.
A USP está obrigada a dar respostas concretas à sociedade. Racismo é crime, estupro é crime e como tal devem ser tratados. Mas faz tempo que a direção da USP, da reitoria aos diretores de suas faculdades não tem compromisso algum com a transparência e responsabilidade de dar justificativas à sociedade. Se a resposta não vier de dentro da USP que venha de fora. O Ministério Público, que brigou tanto para ter poder de polícia, que aja como Ministério Público em defesa dos cidadãos: que investigue as denúncias e leve a julgamento os responsáveis. Quem sabe a Justiça classista considere que ao menos meninas ricas e bem nascidas não mereçam ser estupradas. Ou será que mulher não vale nada mesmo e tudo bem formar turmas de Roger Abdelmassih?
Estupros e lei do silêncio: a opressão machista na Faculdade de Medicina da USP
Por Laura Capriglione, em seu blog
13/11/2014
Reportagem da excelente Tatiana Merlino e de Igor Ojeda para o site Ponte Jornalismo mostra como uma rotina de estupros, humilhações, violências sexuais diversas, castigos fisicos,machismo, racismo e discriminação social instalou-se em uma das escolas mais disputadas do vestibular da Fuvest, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Ressalte-se que se trata de escola gratuita, sustentada pelos impostos recolhidos no Estado de São Paulo, e que deveria formar os profissionais mais ciosos do cuidado com a vida humana, os médicos.
Investigação do Ministério Público sobre oito denúncias de estupro (de calouros e calouras) cometidas nos últimos anos mostra, entretanto, que a primeira lição aprendida pelos ingressantes na Faculdade de Medicina é: respeite a lei do silêncio. Se agredido, não denuncie. Se presenciar uma agressão, cale-se.
Pois aos futuros médicos tem-se ensinado o modus operandi do corporativismo mais cruel: o que acoberta criminosos para, supostamente, proteger o bom nome da categoria e, no meio dela, sua elite: os egressos da Faculdade de Medicina da USP.
“Muitas das garotas têm menos de 20 anos. A maior parte delas é branca, de família de classe A ou B. Estão felizes por realizar um sonho. Apreensivas pelos desafios que enfrentarão nos anos seguintes. Assustadas com o novo ambiente e os rostos desconhecidos.
São reunidas em círculo. Em volta, outro círculo, de garotos igualmente brancos, igualmente nascidos em famílias ricas ou de classe média alta. Mas são mais velhos [veteranos]. Intimidadores. Ordenam que todas gritem “bu”. Elas obedecem:
– Bu! Bu! Bu! Bu! Bu! Bu!
Um coro alto de vozes masculinas, a dos garotos em volta das garotas, abafa as vozes femininas e ressoa pelo ambiente:
– Buceta! Buceta! Buceta eu como a seco! No cu eu passo cuspe! Medicina é só na USP!”
(Tatiana Merlino e Igor Ojeda, em reportagem publicada no dia 11/11)
O grito de guerra infame integra uma das primeiras atividades do trote na faculdade. A barbárie evolui para a apalpação, a forçação de barra por um beijo, dedos e línguas, calcinhas arrancadas, chegando aos estupros e violações. Tudo isso tendo como combustível hectolitros de álcool, energizantes e drogas de todos os tipos, consumidos abertamente em “festas tradicionais” promovidas por entidades igualmente tradicionais da USP, como a Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz.
A situação só veio a público graças à coragem de um grupo de jovens que ousou romper o medíocre, covarde e criminoso pacto de silêncio.
Na quarta-feira (12/11), como se tivesse sido colhida de surpresa pelas denúncias, a direção da Faculdade de Medicina anunciou a criação de um centro de direitos humanos para dar assistência jurídica e psicológica às “vítimas de agressões sexuais, machismo, racismo e homofobia”.
E prometeu que o centro “estará atuando em até 40 dias”.
Como se o desespero e a sede de Justiça das vítimas pudesse esperar!
Falemos às claras: a faculdade está jogando para a torcida. Todas as vítimas contaram que denunciaram as violências sofridas aos diversos órgãos da faculdade. Todas relataram que esta esteve sempre mais preocupada em abafar os casos do que em apurá-los e punir os responsáveis.
A verdade é que, com o escândalo armado pelos denunciantes, a hierarquia universitária teve de tomar uma medida. Mas, como dizia a raposa da República Velha, fez isso “nem tão devagar que parecesse afronta, nem tão depressa que parecesse medo!”.
A Faculdade de Medicina da USP já teve dias muito melhores.
Fundada por Arnaldo Vieira de Carvalho, foi a primeira escola pública de nível superior de São Paulo a permitir explicitamente em seu regulamento o ingresso de mulheres.
Outra política de inclusão que mostra como estava muito à frente de seu tempo: a Faculdade de Medicina tinha, na sua fundação, alunos cotistas. Dez por cento das vagas destinavam-se à matrícula de estudantes pobres. (Hoje a faculdade não tem nenhum cotista, como, aliás, acontece em toda a USP.)
Na foto amarelada da primeira turma de formandos, de 1918, veem-se duas jovens pioneiras, Delia Ferraz e Odette Nora, fotografadas entre 36 homens. Não há registros de mulheres na segunda turma e, durante muitos anos, a presença feminina ainda foi bastante minoritária.
Isso mudou. O anuário estatístico da USP de 2013 mostra que as mulheres já são mais da metade (52,2%) de todos os alunos da graduação. Os homens ocupam 48% das vagas.
As mulheres passaram no hiperconcorrido vestibular e entraram no território marcadamente masculino. A cultura da diversidade, entretanto, ainda não conseguiu furar o bloqueio do machismo lá entrincheirado.
Não resta dúvida de que a inação da hierarquia universitária ajudou os predadores em sua carreira de violências. Enquanto várias alunas, homossexuais e pessoas mais pobres eram humilhadas, boa parte dos professores (62% dos quais são homens) preferiu enfiar a cabeça em um buraco a tomar alguma atitude.
A categoria médica ja teve entre seus quadros gente tão inspiradora quanto o cardiologista Euryclides de Jesus Zerbini (pioneiro dos transplantes) e Luiz Hildebrando Pereira da Silva (pesquisador e médico sanitarista). Já criou um dos maiores sistemas públicos de Saúde do Mundo, por intermédio do SUS, que universalizou o atendimento médico, financiado com recursos da União, dos Estados e dos Municípios.
Agora, tem de se haver com o vexame de ter acobertado denúncias gravíssimas de estupros, cometidos por uma minoria que mancha a reputação da Casa de Arnaldo.
Roger Abdelmassih fazendo escola?
Laura Capriglione, 54, é jornalista. Nasceu em São Paulo e cursou Física e Ciências Sociais na USP. Trabalhou como repórter especial do jornal “Folha de S.Paulo” entre 2004 e 2013. Dirigiu o Notícias Populares (SP), foi diretora de novos projetos na Editora Abril e trabalhou na revista “Veja”. Conquistou o Prêmio Esso de Reportagem 1994, com a matéria “Mulher, a grande mudança no Brasil”, em parceria com Dorrit Harazim e Laura Greenhalgh. Foi editora-executiva da revista até 2000.