Médicos da família relatam entraves para uma formação em saúde com viés popular

Supervisor do programa Mais Médicos e médica da família contam suas trajetórias e analisam a medicina brasileira

Por José Coutinho Júnior Do Brasil de Fato

O perfil dos médicos brasileiros é majoritariamente elitizado, apontam dados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) de 2013 e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). Essa é uma das características que impõe desafios à prática médica no Brasil, analisam especialistas. É comum profissionais de classe alta escolherem formações fora da área social, que é menos lucrativa do que as especializações médicas em alta no mercado.

Há médicos, no entanto, que fogem desse perfil e optam por trilhar o caminho da Saúde da Família e da medicina que atende às necessidades da maioria dos brasileiros. O Brasil de Fato conversou com a médica da família Joana Carvalho e com o supervisor do Programa Mais Médicos, Renato Pena. Eles revelam aspectos da formação em Medicina, além de avaliar os desafios da atenção básica no país.

Joana, de 29 anos, entrou na faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2005. Ela conta que esta foi a primeira turma a ter alunos vindos da políticas de cotas. Por ter estudado em escola privada, ela não teve direito à política, mas, naquele ano, dos 120 que ingressaram no curso, cerca de dez eram estudantes negros.

“Eram poucos negros, até por ser o primeiro ano da implantação da política, então o seu impacto ainda não era grande. Depois de alguns anos o perfil da faculdade mudou um pouco”, avaliou. A Bahia é o estado brasileiro que tem maior população que se autodeclarou preta (17,1%), segundo dados de 2013 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Outros 59,2% se disseram pardos.

A médica participou do diretório acadêmico desde o início da faculdade, tendo a questão das cotas e do racismo sempre como pauta dos debates. “De uma forma explícita, não tinha um discurso claro de professores ou de estudantes de se colocarem contra as cotas. Mas sempre tinha o discurso velado, uma certa expectativa de que esses estudantes não conseguissem ir bem e acompanhar o curso”, avaliou.

A formação de Joana não teve foco na área social. “A formação que tive, e que os médicos têm no geral, é voltada para ver o que tem retorno financeiro maior e essas especialidades têm retorno maior do que as ligadas a atividades clínicas e públicas”, apontou.

Ela conta que o interesse pela área social da Medicina não se deu por causa do curso. “Eu tive contato com Medicina de Família por outras vias. Fiz um estágio que tinha essa questão mais consolidada, fui para os congressos da especialidade por iniciativas minhas. O currículo médico hoje tem pouco contato com a atenção primária à saúde, que é a estratégia de Saúde da Família”, contou.

Joana explica que o médico da família incorpora outros determinantes, além do biológico, para diagnosticar o processo de adoecimento, realizar o trato com os pacientes e a prática como médico.

“Esse olhar para a saúde fugia da visão biológica e medicalizante, que os médicos são treinados a ter, me atraiu. A Saúde da Família tem uma discussão ampliada, de conseguir aplicar os determinantes sociais da saúde de forma mais clara, incorporando isso na sua avaliação enquanto clínico. Na medicina tradicional isso geralmente fica em segundo plano; a Saúde da Família coloca em primeiro”, explicou.

Depois de se formar, a médica baiana foi para o Rio de Janeiro, onde fez a residência e se especializou na área de Saúde da Família. Hoje, ela trabalha em uma unidade de saúde no bairro do Catete, zona sul da capital fluminense, e, além de fazer atendimentos, é responsável pela formação de residentes e estagiários.

O atendimento dos médicos da família, segundo Joana, é mais humanizado. Além de fazer visitas domiciliares, para entender a realidade dos pacientes, a equipe está no lugar onde a pessoa mora e leva isso em conta.

“A gente tem um olhar para o território que atendemos, queremos criar relações que causem impacto naquele território. Atendemos escolas, unidades de saúde e temos uma prática de saúde que reflete essa realidade, entendendo de uma forma mais completa como é a vivência dessa pessoa, onde ela mora, como é a vizinhança, e tudo isso é fundamental no cuidado da saúde, das possibilidades que a pessoa vai ter na hora de se cuidar”, explicou.

Renato

Renato Penha, 27 anos, também entrou na faculdade em 2005. Ele conta que o viés social que ele desenvolveu na Medicina também se deu fora das experiências do próprio curso, por meio do movimento estudantil e de projetos de extensão.

“Durante o curso, fui tendo muito contato com o projeto de extensão universitária e educação popular. Por volta do segundo ano, comecei a participar de atividades do movimento estudantil e de extensão que envolviam comunidades ribeirinhas, em assentamentos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], e participei de discussões sobre educação popular no Brasil”, relatou.

O contato com os movimentos sociais continuou presente durante a residência. Renato fez estágio em Cuba, onde conheceu o sistema de saúde do país. “Mas todo esse interesse na área social surgiu [mais por causa] dessas atividades extracurriculares, do que por conta do curso. O currículo da universidade tem pouco a oferecer nesse sentido”, avaliou.

Depois que se formou, Renato foi trabalhar no interior do Pará, na cidade de Paragolinas, que tem 100 mil habitantes. “No interior, me deparei com outras realidades, muito distintas das capitais. Depois fui fazer a residência de família em Porto Alegre. É um local de formação conhecido no Brasil, um dos primeiros programas do país”, apontou.

Após se especializar, Renato se mudou para o Rio de Janeiro para fazer mestrado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e foi convidado a supervisionar uma equipe do Programa Mais Médicos.

“Por causa desse perfil de eu ter contato com movimentos sociais e ser médico de família, me convidaram para fazer a recepção desses médicos. Eu tinha que dar aulas, orientar como funciona nosso sistema de saúde público e as condutas clínicas no Brasil. Um tempo depois me convidaram para ser supervisor”, explicou.

Ele avalia que o Mais Médicos é um programa que começa a democratizar a medicina no Brasil. “Hoje nosso desafio é justamente entender a desigualdade social que a gente tem no Brasil e lutar para ter um país mais justo, defender avanços que foram permitidos com o SUS [Sistema Único de Saúde] e o Mais Médicos, e refletir as posturas que as entidades médicas tem em geral ao programa e à regulação do setor privado”, avaliou.

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