Quando eu tinha 22 anos, deixei meu namorado, com quem tinha ficado por quatro anos. Nós dois crescemos juntos no interior dos Estados Unidos; íamos às mesmas festas, tínhamos os mesmos amigos, etc. O rompimento foi sofrido. Meus amigos se dividiram e tomaram o partido dele ou meu, algo que eu deveria ter imaginado que pudesse acontecer, mas não tinha.
Do Brasil Post
Acabei me apaixonando antes da hora e demais pelo homem com quem me casaria pouco depois. O sentimento que tínhamos um pelo outro era genuíno, mas cada um de nós carregava bagagem pesada, o que acabou prejudicando nosso relacionamento, e não tínhamos a menor maturidade para lidar com isso de maneira construtiva.
Ficamos noivos em pouquíssimo tempo e planejamos nos casar em poucos meses. Em um ano, eu tinha passado de viver com um homem-menino que eu achava que amava, mas com quem nunca senti vontade de me casar, a estar casada com um homem que era totalmente diferente de inúmeras maneiras.
O fato de eu de repente querer tanto me casar me pegou de surpresa. A questão de filhos não chegou a ser discutida, mas achei que haveria bastante tempo para fazer isso mais tarde.
Então eu engravidei.
Vou explicar um pouco sobre minha origem. Sou a filha mais velha, e a única filha mulher, de uma família muito religiosa. Vivíamos numa região muito religiosa, muito conservadora e quase inteiramente povoada por brancos, no centro do país. A única coisa que eu ouvia no rádio com mais frequência que rock clássico ou música country eram talk shows conservadores.
Como a maioria das famílias de classe trabalhadora de uma cidade pequena do interior, minha família não tinha muito dinheiro, mas tínhamos muita religião protestante e muito orgulho baseado em nossa ética de trabalho. Receber caridade ligada a Jesus era aceitável; benefícios do governo, não. As pessoas que não ganham o suficiente precisam trabalhar mais. A América real. Acho que já deu para você visualizar o contexto.
Engravidar sem estar casada era muito sério e altamente vergonhoso. Apesar de eu ter me rebelado contra minha educação cristã conservadora e ter transado muito antes de me casar, sempre fui paranoica em relação à possibilidade de engravidar.
Faltavam oito semanas para meu casamento quando percebi que eu não menstruava havia mais de seis semanas. Eu era jovem, trabalhava num emprego mal pago e não tinha convênio médico. Podia conseguir anticoncepcionais numa clínica local, mas não era fácil chegar lá devido ao meu horário de trabalho, sem falar na vergonha enorme que eu sentia em pedir alguma coisa de graça. Tomávamos grande cuidado para sempre usar camisinha, mas, ao que parece, meu marido conseguia me engravidar mesmo estando do outro lado da rua.
Duas listras escuras apareceram no teste de gravidez assim que minha urina entrou em contato com a tira. Numa reação que me chocou até o âmago, a primeira coisa que passou por minha cabeça – eu, para quem abortar era homicídio – foi “menina, você não pode ter um bebê. Faça um aborto.” Pensei isso sem pânico nem medo, mas de modo muito pragmático.
Eu era uma garota inteligente e desajeitada, boa na escola mas fraca nos esportes. Dividia meus giz de cera com todo o mundo, mesmo o garoto de nariz ranhento e calças de moletom esquisitas, aquele com quem ninguém mais falava. Eu não fazia a menor ideia de nada que era visto como maneiro ou divertido.
Não entendia que tudo que eu gostava não era cool ou divertido, até ser tarde demais e todos meus colegas já terem percebido que eu estava totalmente por fora.
Acho que não preciso explicar mais porque o discurso do conservadorismo de direita, do tipo “sempre fazemos o que é certo, não importa a situação”, me parecia certo, mesmo quando eu era muito jovem. E não faltavam adultos dispostos a fazer discursos para uma criança (ou na presença de uma criança) contra a intromissão do governo nas nossas vidas, contra os homossexuais, o aborto e tudo mais que havia de mau e errado neste mundo.
Adolescente, eu topava com aquele discurso social conservador, e então, como toda adolescente que acha que sabe tudo, eu fazia os saltos de lógica necessários para que meu sistema de crenças funcionasse para mim. Depois de passar uns dez anos ouvindo e acreditando em tudo que Rush Limbaugh (radialista de direita extrema) dizia, eu sabia racionalizar como ninguém e mudar tudo de contexto. A atitude que eu tinha em relação à ingerência do governo na vida dos cidadãos, do tipo “rejeite o sistema e mande o homem à m….”, incluía a rejeição do que eu via como sendo construtos sociais arbitrários.
A ideia do sexo me deixava entediada e enojada, mas, ao mesmo tempo, eu era adolescente e tinha interesse tipicamente adolescente pelo sexo. E, em algum lugar nesse meio, eu estava confusa com meu senso distorcido de responsabilidade pessoal.
Tudo isso, somado à ideia tola e totalmente ingênua de que “tudo acontece por uma razão”, me levava ao reforço adolescente daquilo que sempre me ensinaram sobre o aborto: não apenas era assassinato, como era sinal de preguiça e irresponsabilidade. E, para a América trabalhadora do interior, esses são os dois maiores pecados que existem.
Com o tempo, foi ficando mais difícil fazer malabarismos lógicos. E isso me levou a rever meu pensamento em profundidade. Acabei tendo dificuldade em áreas inesperadas de minha vida. As pessoas me surpreendiam de maneiras boas e ruins. Aconteceu o 11 de setembro. Depois a guerra do Iraque. E depois todo o resto que o Partido Republicano fez depois de 2001.
Em 2003, quando um amigo meu do colégio foi morto no Iraque, decidi que eu não tinha nada em comum com o Partido Republicano tal como era. A lógica absolutista que me parecia fazer muito sentido quando eu tinha 12 anos agora parecia impossível, em um mundo tão cheio de circunstâncias fora de nosso controle.
Mesmo assim, porém, aquela ideia de que “todo o mundo merece a chance de viver” com a qual fui criada não me abandonava. Ela estava profundamente ligada à minha identidade sexual e minha identidade como mulher. Eu tinha mudado de ideia em relação aos direitos dos gays, à guerra e muitas questões de igualdade de gêneros, mas ainda me mantinha firme com a ideia de que todas as gestações precisam ser levadas até o final, sempre, porque essa é a coisa certa a fazer. Eu me convenci de que, desde que sempre usasse proteção quando fizesse sexo, nunca teria que enfrentar uma gravidez não intencional.
Até o dia em que me vi sentada na privada, segurando uma tira de plástico molhada de urina.
Saindo do banheiro, voltei para minha cama. Meu marido sabia que eu ia fazer o teste.
“E aí?”, ele indagou.
“Deu positivo.”
“Vamos dormir mais um pouco”, ele sugeriu.
Me pareceu uma ótima ideia.
Acordamos algumas horas mais tarde. E achei que minha cabeça deveria estar a mil, em vista do que eu queria fazer. Eu devia estar enfrentando algum tipo de conflito moral. Estava com o homem que amava e com quem planejava passar o resto de minha vida. As coisas estavam difíceis para nós naquele momento, mas estávamos apenas começando a vida a dois. Toda família trabalhadora começa a vida sem dinheiro. A gente daria um jeito. O destino me estava dando de bandeja um propósito na vida. Então por que a única ideia que me vinha à cabeça quando eu pensava em meu futuro era um “não”? Um “não” calmo, mas muito firme.
Eu estava preparada para ouvir meu marido começar a falar no futuro cheio de responsabilidade que eu achava que devia estar imaginando. Mas ele não falou disso.
“O que você quer fazer?”, me perguntou.
Eu estava completamente despreparada para a pergunta. O que eu queria fazer? Será que eu tinha uma opção? Se não tivéssemos o bebê, as pessoas descobririam e então todos me odiariam. Eu disse isso a ele.
“Isso é ridículo. Não é da conta de mais ninguém. Se você quiser ter o nenê, vamos ter. Mas se não quiser, não precisamos ter.”
Passamos os dias seguintes dando desculpas para faltar ao trabalho e comendo comida de delivery cara e pouco saudável. Tentamos conversar sobre nossa situação, mas as conversas rapidamente se limitavam a algumas poucas opções. Fazer um aborto. Ter o bebê. Ter o bebê e dá-lo para adoção.
Fiquei esperando por aquele senso de dever que eu imaginava que sentiria, depois de passar a vida ouvindo frases como “a gravidez é consequência de ter feito sexo; se você não está preparada para ter um bebê, não deve fazer sexo”, ou “tantas pessoas querem filhos e não podem ter. As mulheres que abortam deviam ter seu filho e dá-lo a essas pessoas, em vez de ser egoístas e matar o bebê”. Esperei a chegada de uma onda de ansiedade ou sofrimento por estar grávida e não querer virar mãe. Esperei para ter a sensação de que o destino estava intervindo em minha vida.
No mundo em que eu cresci, era muito importante honrar o modo como você foi criada e as ideias com que foi educada. Eu tinha rejeitado a religião e a política, ainda se esperava que eu permanecesse fiel às ideias que me tinham sido ensinadas sobre família e responsabilidade.
Mesmo que eu não quisesse o bebê, com certeza poderia dar um presente incrível a alguém que não podia ter aquilo que me tinha sido dado. Resolvi que eu precisava de alguns conhecimentos e opiniões não vindas de alguém para quem Rush Limbaugh faz o trabalho do Senhor. Eu não sabia quase nada sobre o aspecto prático e biológico de um aborto e não sabia nada sobre a adoção de bebês.
Naquela época, a Internet não era como é hoje. Mesmo assim, não foi muito difícil encontrar informações básicas sobre o procedimento. Depois de sentir que já tinha conhecimentos objetivos sobre o procedimento, procurei as páginas na rede dedicadas a mensagens contra o aborto e as li com cuidado, à procura de algo que talvez me levasse a sentir alguma coisa que não fosse aquele “não tenha esse bebê!”.
Achei os artigos emocionalmente coercivos. Em muitos casos, falavam da vontade de Deus e de prestar serviço a Deus através de uma vida vivida com moralidade. Eu não acreditava mais em Deus do modo como era representado pelo cristianismo, e o dever moral evocado naquelas páginas me soava muito como os sofismas usados por extremistas cristãos para justificar a guerra no Iraque ou discriminar contra os gays.
Os argumentos apresentados sobre os supostos efeitos negativos do aborto para a saúde (câncer de mama, esterilidade, etc.) me pareciam fracos. Pesquisei mais e descobri que esses argumentos eram infundados. Muitos dos estudos que vinculavam o aborto a repercussões negativas para a saúde eram feitos por clínicas médicas declaradamente antiaborto, com perfis de pesquisa dúbios e táticas de reportagem também questionáveis. Parecia que, tirando a moral religiosa da equação, não havia uma razão forte para não fazer aborto, se a pessoa não quisesse estar grávida.
Em seguida, pesquisei a adoção, novamente querendo sentir algum tipo de compulsão para fazer o que seria moral e decente, de acordo com a educação que recebi. Em muitos casos minhas pesquisas me levaram a centros de atendimento a grávidas em crise. Depois de perceber que suas mensagens de apoio e acolhida eram fundamentadas numa posição constantemente antiaborto (além de um discurso sexista rígido), não senti mais vontade de tratar com nenhum deles.
As outras alternativas envolveriam viajar muito, coisa que seria difícil para mim devido a problemas de dinheiro e a dificuldade de me afastar do trabalho. Quanto mais refleti, mais assustadora me parecia a ideia de passar quase um ano numa situação medicamente vulnerável.
Eu tinha 23 anos. Estava prestes a me casar. Se eu continuasse grávida, a gravidez não estaria evidente no dia do casamento, mas todas minhas fotos de casamento me mostrariam grávida de um filho que nem eu, nem meu marido íamos criar.
Na cidade pequena onde eu vivia, não seria possível esconder a gravidez de minha família e meus amigos. Será que queria realmente ter que ficar explicando a todo o mundo que eu estava grávida, sim, mas não ia ficar com o bebê?
Eu não tinha dinheiro nem convênio médico. Conseguiria receber assistência do Medicaid com a gravidez, mas, e se ficasse com algum problema de saúde posterior, como diabetes? E se essa gravidez prejudicasse meu corpo de alguma maneira que dificultasse ou impossibilitasse uma gravidez mais para frente? Optar por uma coisa que poderia colocar em risco uma parte tão grande do resto de minha vida me parecia tolice pura e simples.
Eu tinha feito minha lição de casa. Tinha analisado as opções. Podia estar grávida de modo inesperado, mas não havia razão que eu pudesse encontrar para deixar que essa gravidez definisse o resto de minha vida. Eu não queria me tornar mãe nos próximos nove meses, e, se não tomasse uma atitude, seria isso que ia acontecer. Interromper a gravidez era simplesmente a melhor opção, não apenas para meu eu atual, mas também para qualquer futuro que pudesse visualizar.
Meu marido ouviu minhas conclusões com atenção. Ele me explicou que a perspectiva de ser pai o tinha emocionado, mas que também ele sentia que aquele não era o momento certo para termos um filho. Ele me garantiu que entendia e respeitava minha decisão. Fiquei quase espantada com seu apoio imediato e incondicional. Se eu já não estivesse planejando nosso casamento, teria me casado com ele ali mesmo, naquele momento.
Nas semanas seguintes, tomamos as providências necessárias. A história de minha ida à clínica poderia ser contada em outro artigo. Só vou dizer agora que tive uma experiência de modo geral positiva e que fui tratada com respeito e compaixão.
Meu marido e eu estamos casados há oito anos. Já tivemos nossa devida dose de brigas e momentos difíceis, mas minha decisão de interromper aquela gravidez em momento algum foi usada para fazer alguma chantagem emocional. Nunca segurei um bebê no colo ou vi meu marido segurar um bebê no colo e senti remorsos pelo que escolhi fazer.
Por essa razão, vou ser o mais ativa possível e erguer minha voz para defender que todas as mulheres tenham o direito e os meios necessários para tomar a decisão que acharem melhor em relação à sua fertilidade, independentemente de suas circunstâncias.