Ao tornar-se noiva do príncipe Harry, Meghan Markle reacendeu o debate sobre identidade racial – cujo conceito é diferente nos EUA e no Brasil. Entenda!
Meghan Markle: desde que noivou com o príncipe Harry, ela está no centro do debate racial (Reprodução e Christopher Furlong/Staff/Getty Images)
Desde que o príncipe Harry e a atriz americana Meghan Markle oficializaram o noivado, em 27 de novembro, os dois são o assunto do momento ao redor do mundo. Isso porque a chegada de Meghan à família real representa uma quebra de paradigmas. Além de ser estrangeira e divorciada, ela também traz miscigenação racial à realeza.
Enquanto muita gente comemora a novidade, outros destilam racismo e também há quem não compreenda como uma mulher de traços finos e pele clara pode ser considerada negra. Filha de mãe negra e pai branco, na verdade Meghan se identifica como birracial, mas poderia se declarar negra se assim preferisse. Barack Obama, por exemplo, é filho de mãe branca e pai negro, mas se declara negro e não birracial.
A questão da identidade racial é algo que dá pano para manga e cujo conceito é diferente nos Estados Unidos e no Brasil. Isso acontece, pois esses dois países implementaram políticas de racismo estrutural muito distintas no período pós-abolição da escravatura.
Enquanto os EUA adotaram a segregação prevista por lei, aqui no Brasil criou-se uma política pró-miscigenação – cujo intuito era “embranquecer” o país. E isso muda tudo quando o assunto é autodeclaração racial e também impacta na maneira como os mestiços são lidos pela sociedade.
Para entender melhor esse assunto tão rico e significativo, conversamos com a pesquisadora Daniela Gomes, que é especialista no assunto. Jornalista, militante do movimento negro e mestra em Estudos Culturais, há quatro anos ela mora nos Estados Unidos, onde faz doutorado em Estudos Africanos e da Diáspora Africana, pela Universidade do Texas.
Nos EUA, Meghan é lida como negra, mas no Brasil provavelmente não seria – e a explicação para isso tem tudo a ver com história (El País/Reprodução)
Nos EUA: segregação racial e a “regra da uma única gota”
“Nos Estados Unidos, desde a época da escravidão já haviam leis de não-miscigenação, mas os estupros de mulheres indígenas e africanas fez com que houvesse miscigenação, mesmo que os casamentos interraciais fossem ilegais”, diz Daniela. Aqui no Brasil essa proibição nunca existiu.
Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o volume de escravos foi muito grande e ambas as nações estipularam políticas racistas após a abolição da escravatura. Acontece que essas políticas eram extremamente diferentes entre si.
Nos EUA, o governo optou por segregar negros e brancos, através de uma série de leis. Dessa forma, haviam espaços muito bem delimitados para separar os brancos das raças consideradas inferiores – em especial negros e indígenas.
Aí criou-se a “regra da uma única gota”, que estipulava que apenas brancos sem qualquer outro tipo de ascendência poderiam frequentar os espaços destinados aos brancos. Ou seja, se a sua aparência (fenótipo) fosse caucasiana, mas algum dos seus ascendentes fosse negro, você seria considerada negra mesmo assim.
“Uma pessoa negra – mesmo que fosse socialmente lida como branca – se fosse pega se passando por branca poderia ser presa e morta”. As leis de segregação não existem mais, só que isso ainda está muito presente na cultura americana. Por isso, Meghan Markle – cuja mãe é negra – é lida como negra nos EUA.
Daniela explica que esse conceito da uma única gota ainda é forte nos Estados Unidos, mas as coisas estão mudando. “Aqui nos EUA a ideia de caldeirão cultural e de multiculturalismo ainda não é tão forte como no Brasil, mas isso já tem se tornado um pensamento na nação”. Com isso, cada vez mais americanos têm se declarado multirraciais ou birraciais.
Filha de mãe negra e pai branco, Meghan se declara birracial, mas poderia se declarar negra se quisesse (Chris Jackson/Staff/Getty Images)
No Brasil: “importação” de europeus e a política de embranquecimento da população
“Com o fim da escravidão, Brasil e Estados Unidos tomaram rumos bem diferentes. Aqui no Brasil, a miscigenação foi usada como forma de tentar acabar com a negritude no país. Fomos o último país a abolir a escravatura e a população negra era maioria naquela época. Aí o Brasil passou a importar europeus e asiáticos. O governo e os intelectuais da época acreditavam que em 100 anos não existiriam mais negros no Brasil, pois a miscigenação faria a negritude acabar”, explica Daniela.
É por isso que, aqui no Brasil, uma pessoa como Meghan não é lida como negra e acaba sendo chamada de “morena”. “O Oracy Nogueira, na década de 1950, chamou isso de ‘preconceito de marca vs. preconceito de origem’”.
Aos poucos, essa noção de identidade racial calcada no ideal de embranquecimento está se modificando no Brasil. Daniela explica que, nos anos 1970, o censo brasileiro detectou cerca de 150 matizes de cor segundo a autodeclaração dos indivíduos. “Caramelo, bombom, chocolate etc. Essas matizes eram utilizadas, pois as pessoas não queria se afirmar como negras”.
Hoje em dia, os cidadãos precisam escolher entre preto, pardo, branco, amarelo e vermelho. Com isso, pessoas que se autodeclaram pretas e pardas são consideradas negras e, atualmente, estima-se que 54% da população brasileira seja composta por negros. Além desses novos critérios do IBGE, muita gente também passou a se sentir à vontade para declarar-se negro por conta do fortalecimento do movimento negro, que trabalha em prol da valorização da raça africana.
Outro ponto muito significativo desse movimento de miscigenação como ferramenta de embranquecimento é o fato de que, com ele, criou-se no Brasil o mito da democracia racial. Isso porque, como a miscigenação tornou-se marca registrada do povo brasileiro, foi disseminada a noção de que não há racismo no Brasil – já que somos todos frutos de uma mistura de raças. Isso, de fato, não deixa de ser verdade, mas o racismo segue sendo muito presente na nossa sociedade, pois é o fenótipo (aparência) que cria privilégios e não necessariamente o genótipo (o conjunto de genes).
(Medioimages/Photodisc/Thinkstock)
O peso do colorismo
Para Daniela, quando uma pessoa negra de pele clara assume a sua negritude, isso é uma vitória histórica, pois significa que essa pessoa se nega a pensar que sua raça foi “purificada” no processo de miscigenação. Só que isso também abre uma outra discussão muito importante: dentro da população negra quem tem pele escura ainda sofre mais preconceito do que quem tem pele clara. O nome disso é colorismo.
“A gente vai ter aquelas pessoas que mesmo tendo mãe negra, pai negro ou avós negros, ela não vai ter fenótipo negro. Ela vai ser lida na sociedade como uma pessoa branca e não vai enfrentar agressões racistas. Então essa pessoa pode se considerar negra? Essa é a pergunta que o movimento negro tem feito”.
Nessa polêmica também existe outro fator determinante: o do direito às chamadas ações afirmativas em prol da população negra – como as cotas em universidades, por exemplo. “Muitas pessoas que não são negras nem tem traços de negritude tem se declarado negras para conseguir acesso às ações afirmativas. Essas pessoas tem usado a justificativa de que têm um ancestral negro. O que a gente tem tentado mostrar é que esse é um mau uso das ações afirmativas, porque se você tem traços caucasianos, ainda que a sua mãe, a sua avó ou bisavó seja negra, no dia a dia você é lido como branco e não vai sofrer os impactos do racismo”.
Quando o assunto é raça e miscigenação ainda não existem respostas fáceis. Isso porque, infelizmente, a discriminação segue sendo muito grande – mesmo quando se dá de maneira velada. Não é vitimismo e não é algo inventado pelos movimentos sociais. E é por isso que revisitar o contexto histórico e ver como ele reverbera nos dias de hoje é algo importantíssimo para que a gente reflita sobre o racismo e trabalhe para combatê-lo.