Meritocracia é discurso para manter a desigualdade social e racial, revela historiador

O historiador e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Sidney Chalhoub (foto), que também é docente do Departamento de História da Universidade de Harvard (EUA), nocauteou o discurso meritocrático, além de mostrar o que ele realmente pretende: manter e reproduzir a desigualdade social e racial.

Do Carta Campinas

Foto: Antonio Scarpinetti

Chalhoub também lembrou que o Brasil, veja que incrível, já teve adoção de política de ação afirmativa para brancos europeus e seus descendentes, durante a imigração do final do século XIX. O historiador concedeu entrevista esclarecedora ao jornalista Manuel Alves Filho do Jornal da Unicamp, após a polêmica causada pela aprovação de cotas étnico-raciais na Unicamp.

Na entrevista, Chalhoub expõe como se esconde sob o manto da meritocracia o desejo da reprodução eterna da desigualdade, assim como um pensamento escravocrata. Para entender isso, o professor questiona a ideia da meritocracia como um valor abstrato universal, que justifique a existência de alguma medida comum da aptidão e de inteligência da humanidade.”Fica parecendo que a meritocracia partiu de uma definição abstrata, excluída das circunstâncias sociais e materiais de vida das pessoas”, diz.

Na universidade, diz o historiador, não é possível que todos os candidatos entrem em competição pelas vagas como se tivesse havido uma igualdade ideal de oportunidadeentre eles. “Não se pode fazer com que o aluno negro, pobre e que estudou numa escola pública localizada na periferia de Campinas concorra em igualdade de condições numa prova padronizada com alunos cujos pais cursaram universidade, têm alto poder aquisitivo e tem alto acesso ao capital simbólico. É preciso que a universidade busque equilibrar essa disputa“, afirma.

Desse modo, continua o professor, quando há reserva de vagas para negros e pessoas de baixa renda, a competição se dá entre eles, entre iguais. Então, não há exclusão do mérito. É uma maneira de ter o mérito qualificado pelas condições sociais e econômicas dos candidatos, e não uma competição que exclui alguns segmentos da sociedade desde sempre. “A ideia da meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar”, explicou.

Veja outras explicações do professor que anulam completamente o falso discurso meritocrático:

“A partir das experiências das universidades estaduais e federais, houve o entendimento de que a diversidade do corpo discente contribui para a qualidade acadêmica e para a produção de conhecimento nas universidades. Os que têm medo das cotas são os setores que têm tido acesso às universidades públicas e gratuitas como uma prerrogativa sua, de muitas décadas. São pessoas que vão a escolas particulares porque têm maior poder aquisitivo e que defendem a exclusividade de acesso à universidade pública, gratuita e de qualidade. Esta é uma distorção grande na sociedade brasileira”

“A resistência às cotas é mais barulhenta que generalizada. O país convive bem com a ideia das cotas. O engajamento dos estudantes da Unicamp em geral mostra a receptividade à ideia. As pesquisas de opinião mostram que a maior parte da população brasileira é favorável às políticas de ação afirmativa e o próprio Supremo Tribunal Federal aprovou por unanimidade a necessidade dessas políticas para combater o racismo e as consequências dele na sociedade brasileira”.

“O tema está longe de ser uma originalidade brasileira. As melhores universidades do mundo, aquelas que a própria Unicamp utiliza como referência para qualificar suas atividades, adotam a diversidade no ingresso dos estudantes há bastante tempo. Harvard, Yale e Columbia, para ficar em três exemplos, adotam políticas agressivas de promoção da diversidade do corpo discente. Não fazer isso deixaria a Unicamp na contramão da história.”

” Enquanto a universidade existe como prerrogativa de uma mesma classe social, de uma mesma raça e dos mesmos setores, ela não se abre ao tipo de questionamento e de tensões que são criativas, oriundas da necessidade da convivência de grupos sociais e raciais com perspectivas diferentes.”

“Na prática, todas as pesquisas existentes demonstram claramente que o desempenho dos estudantes cotistas é igual ou superior ao desempenho dos não cotistas nas universidades estaduais e federais que adotaram esse tipo de política afirmativa. Isso é fácil de entender.”

Ao contrário da propaganda maldosa que se faz, a adoção de cotas não tem nada a ver com a exclusão do mérito. Tem a ver com a utilização de critérios de seleção que promovam a competição entre estudantes que tiveram oportunidades educacionais semelhantes até o momento em que se candidatam ao ingresso na universidade. Dessa forma, os estudantes negros e indígenas que serão selecionados representarão uma fração dos que postularam uma vaga na universidade. Serão, portanto, os melhores entre eles.”

“A universidade evidentemente tem o desafio de lidar com eventuais dificuldades que existam entre os estudantes de modo geral. Tanto as dificuldades de origem socioeconômica quanto as acadêmicas e pedagógicas”.

“Esses novos sujeitos que ingressam na universidade representam um deslocamento importante de negros, indígenas e populações pobres, que são objeto de estudos da academia, mas que raramente têm a oportunidade de se tornarem sujeitos do conhecimento. Isso também é uma experiência fundamental e epistemológica. Isso descentraliza o conhecimento e permite que perspectivas diferentes passem a fazer parte do cenário das universidades.”

“Um contingente formado por 750 mil africanos foi trazido ao Brasil ilegalmente, em condições desumanas. Esses negros foram escravizados e seus descendentes também. Além disso, a formação da grande propriedade cafeicultora ocorreu através de invasão das terras. Trabalho e terras foram obtidos pela classe dominante ao arrepio da lei. Portanto, a reparação é uma questão que deve ser levada a sério”.

“No caso de São Paulo, também se adotou políticas afirmativas em favor de imigrantes. No final do Século XIX, foram adotadas políticas para subsidiar a imigração de europeus brancos, italianos inicialmente. A vinda desses imigrantes era subsidiada pelo tesouro da Província de São Paulo e depois pelo Estado de São Paulo, o que favoreceu a adaptação dessas pessoas ao país. Tratou-se de uma política de inclusão social que jamais existiu para a população negra até recentemente. Portanto, já houve no Brasil a adoção de política de ação afirmativa para brancos europeus e seus descendentes. Dessa maneira, não há nada demais que se veja como reparação as políticas de cotas para negros e indígenas.”

“No caso da população negra, quando houve uma aceleração no processo de emancipação escrava, nas duas últimas décadas da escravidão, ocorreu uma mudança na lei eleitoral, em 1881, que proibiu o voto de analfabetos, o que não existia antes. Isso, numa situação em que não havia escola primária para negros. Devido à falta de acesso à instrução, nas primeiras décadas após a emancipação, a população negra ficou excluída da política formal.”

“Esse foi outro movimento importante de desvantagem dessa população na luta por direitos na história do país. Eu entendo que as pessoas esbravejem quando perdem privilégios. Mas as razões históricas, sociais e filosóficas em favor das cotas justificam plenamente a medida. Não há futuro possível com esse perfil de desigualdade se reproduzindo ao longo do tempo. É uma missão de todos superar essa desigualdade.”

“A escravidão foi, insisto, a pedra de toque da formação do Estado nacional. A corrupção é capilar na sociedade brasileira e essa capilaridade esteve ligada à própria escravidão no Século XIX.” (Veja texto integral)

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