Mesmo com matrícula, jovem negro pode perder vaga na USP

Enviado por / FontePor Bianca Santana, do UOL

São louváveis – ainda que tardios – os esforços da USP (Universidade de São Paulo) para aumentar o ingresso e a permanência de estudantes negros em cursos de graduação e pós-graduação. Cotas raciais, estratégias para apoiar a permanência e a criação da recente Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento são ações concretas para corrigir desigualdades.

Mas, além do macro, das grandes decisões e criação de políticas, é necessário cuidar dos processos burocráticos e administrativos para que, no micro, no caso a caso, na vida escolar de cada estudante, o acolhimento e a garantia de educação sejam premissas. Os processos burocráticos consolidados historicamente na universidade não podem ser barreira de acesso à educação para jovens negras, negros e pobres.

Yakíni Liberto Alves de Souza, jovem negro de 19 anos, da zona leste de São Paulo, oriundo da escola pública, foi aprovado no curso de engenharia de alimentos. Yakíni se dedicou à escola, apesar das constantes mensagens objetivas e subjetivas de que não era bem-vindo.

Do total de adolescentes e jovens que saem do ensino médio, 71,7% são meninos negros, e não temos tido a coragem de enfrentar coletivamente o fato de que, no momento da evasão escolar, esses meninos ficam ainda mais vulneráveis ao crime organizado, ao alcoolismo, às drogas, à morte prematura. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil.

As barreiras raciais e sociais que Yakíni encontrou ao longo da vida impedem a maior parte dos jovens negros de chegar ao vestibular. Yakíni, com o apoio de sua família, amigos e movimentos sociais, não apenas desviou dos riscos, como ativamente sonhou e planejou um futuro universitário, em um curso de engenharia, dos mais inacessíveis a meninos como ele. As barreiras da evasão escolar, da conclusão do ensino médio e do vestibular foram ultrapassadas por mérito pessoal e enorme investimento comunitário.

Aprovado em primeira chamada na Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo, em Pirassununga, com Yakíni devidamente matriculado, com número USP em mãos, família e amigos organizaram uma vaquinha e assumiram dívidas para alugar e mobiliar uma kitnet para o estudante.

No último 8 de março, enquanto o STF julgava o perfilamento racial de pessoas presas, considerando a imensa desproporção nas abordagens policiais de jovens e homens negros, Yakíni tentava fazer a confirmação de sua matrícula, conforme orientação do manual da Fuvest. Sem crédito no celular e com dificuldade de acesso à internet pelas chuvas na Baixada Santista, onde havia ido visitar a avó, Yakíni voltou a São Paulo às 16h05, cinco minutos depois do prazo estabelecido, e conseguiu acessar a internet.

Às 16h26 recebeu um e-mail da Central de Matrículas da USP informando que “a sua não participação na Etapa de Confirmação Virtual da Matrícula acarretou em sua desclassificação do concurso e consequente perda de vaga”.

Apesar da importância dos processos administrativos, há imensa desproporcionalidade no direito de acesso à educação frente o atraso na confirmação de uma matrícula já feita. Se o que se busca dentro das universidades de fato é a inclusão, também é preciso cuidar para que a burocracia não impeça que o acolhimento e a garantia de educação sejam premissas. Esta não pode ser a barreira para excluir jovens negros da USP.

A inclusão racial e social envolve lidar com as diferenças que esse processo traz para a universidade como um todo. Embora seja fundamental criar uma institucionalidade para as ações afirmativas como uma pró-reitoria de inclusão e pertencimento, algo que poucas instituições fizeram, é também crucial ter mecanismos de acolhimento – não de mais exclusão – para as dificuldades estruturais. Inclusão não é apenas reservar vagas, é mudar a cultura institucional da exclusão.


Bianca Santana (Foto: Caroline Lima)

*Bianca Santana é jornalista, cientista social e pesquisadora, além de autora de ‘Quando Me Descobri Negra‘ e Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro”.

Nota da edição

Ao UOL, a Pró-Reitoria de Graduação informou que a etapa de confirmação virtual de matrícula é obrigatória e que quem não a faz, infelizmente, perde a vaga. “A Pró-Reitoria de Graduação lamenta o fato de o estudante não ter podido confirmar sua matrícula, mas zela pela preservação dos princípios de isonomia e impessoalidade que devem reger o processo”, diz trecho da nota.

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