Mia Couto: As três irmãs

Tela do pintor angolado Abias Ukuma

Eram três: Gilda, Flornela e Evelina. Filhas do viúvo Rosaldo que, desde que a mulher falecera, se isolara tanto e tão longe que as moças se esqueceram até do sotaque de outros pensamentos. O fruto se sabe maduro pela mão de quem o apanha. Pois, as irmãs nem deram conta do seu crescer: virgens, sem amores nem paixões.

Por Mia Couto

O destino que Rosaldo semeara nelas: o serem filhas exclusivas e definitivas. Assim postas e não expostas, as meninas dele seriam sempre e para sempre. Suas três filhas, cada uma feita para um socorro: saudade, frio e fome.

Olhemos as meninas, uma por uma, espreitemos o seu silencioso e adiado ser.

Mia Couto: As três irmãs
Mia Couto: As três irmãs

Gilda, a rimeira

Gilda, a mais velha, sabia rimar. O pai deu contorno ao futuro: a moça seria poetisa. Mais ela versejava, menos a vida nela versava. Esse era o cálculo de Rosaldo: quem assim sabe rimar, ordena o mundo como um jardineiro. E os jardineiros impedem a brava natureza de ser bravia, nos protegem dos impuros matos.

Todas as tardes, Gilda trazia para o jardim um volumoso dicionário. O gesto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o seu sentar-se era educado: só o vestido suspirava. Molhava o dedo sapudo para folhear o grande livro. Aquele dedo não requebrava, como se dela não recebesse nervo. Era um dedo sem sexo: só com nexo. Em voz alta, consoava as tônicas: Sol, bemol, anzol…

De quando em quando, uma brisa desarrumava os arbustos. E o coração de Gilda se despenteava. Mas logo ela se compunha e, de novo, caligrafava. Contudo, a rima não gerava poema. Ao contrário, cumpria a função de afastar a poesia, essa que morava onde havia coração. Enquanto bordava versos, a mais velha das três irmãs não notava como o mundo fosforecia em seu redor. Sem saber, Gilda estava cometendo suicídio. Se nunca chegou ao fim, foi por falta de adequada rima.

Flornela: a receitista

A do meio, Flornela, se gastava em culinárias ocupações. No escuro úmido da cozinha, ela copiava as velhas receitas, uma a uma. Redigia palavra por palavra, devagar, como quem põe flores em caixão. Depois, se erguia lenta, limpava as mãos suadas e acertava panelas e fogo. Dobrada sobre o forno como a parteira se anicha ante o mistério do nascer.

Por vezes, seus seios se agitavam, seus olhos taquicardíacos traindo acometimentos de sonhos. E até, de quando em quando, o esboço de vim cantar lhe surgia. Mas ela apagava a voz como quem baixa o fogo, embargando a labaredazinha que, sob o tacho, se insinuava.

Os fumos da cozinha já se tinham pegado aos olhos, brumecido seu coração de moça. Se um dia ela dedicasse seu peito seria a um cheiro, cumprindo uma engordurada receita.

Evelina: a bordadeira

Na varanda, ia bordando Evelina, a mais nova. Seus olhos eram assim de nascença ou tinham clareado de tanto bordar? Certa vez, ela se riu e foi tão tardio, que se corrigiu como se alma estrangeira à boca lhe tivesse aflorado. Lhe doía se lhe dissessem ser bonita. Mas não diziam. Porque além do pai, só por ali havia as irmãs. E, a essas, era interdito falar de beleza. As irmãs faziam ponto final. Ela, em seu ponto, não tinha fim.

Dizem que bordava aves como se, no tecido, ela transferisse o seu calcado voo. Recurvada, porém, Evelina, nunca olhava o céu. Mas isso não era o pior. Grave era ela nunca ter sido olhada pelo céu.
Às vezes, de intenção, ela se picava. Ficava a ver a gota engravidar no dedo. Depois, quando o vermelho se excedia, escorrediço, ela nem injuriava. Aquele sangue, fora do corpo, era o seu desvairo, o convocar da amorosa mácula.

Em ocasiões, outras, sobre o pano pingavam cristalindas tristezas. Chorava a morte da mãe? Não. Evelina chorava a sua própria morte.

Três por todas e todas por nenhum.

Mas eis: uma súbita vez, passou por ali um formoso jovem. E foi como se a terra tivesse batido à porta de suas vidas. Tremeu a agulha de Evelina, queimou-se o guisado de Flornela, desrimou-se o coração de Gilda.

No tecido, no texto, na panela, as irmãs não mais encontraram espelho. Sucedeu foi um salto na casa, um assalto no peito. As jovens banharam-se, pentearam-se, aromaram-se. Água, pente, perfume: vinganças contra o tudo que não viveram. Gilda rimou “vida” com “nudez”, Flornela condimentou afrodisiacamente, Evelina transparentou o vestido. Ardores querem-se aplacados, amores querem-se deitados. E preparava-se o desfecho do adiado destino.

Logo-logo, as irmãs notaram o olhar toldado do pai. Rosaldo não tirava atenção do intruso. Não, ele não levaria as suas meninas! Onde quer que o jovem vagueasse, o velho pai se aduncava, em pouso rapineiro. Até que, certa noite, Rosaldo seguiu o moço até à frondosa figueira. Seu passo firme fez estremecer as donzelas: não havia sombra na dúvida, o pai decidira pôr cobro à aparição. Cortar o mal e a raiz.

As três irmãs correram, furtivas, entre as penumbras e seguiram a cena a visível distância. E viram e ouviram. Rosaldo se achegando ao visitante e lhe apertando os engasganetes. A voz rouca, afogada no borbulhar do sangue:

– Você, não se meta com minhas filhas!

O moço, encachoado, rosto a meia haste. E ante o terror das filhas, o braço ríspido de Rosaldo puxou o corpo do jovem. Mas eis que o mundo desaba em visão. E os dois homens se beijaram, terna e eternamente. Estrelas e espantos brilharam nos olhos das três irmãs, nas mãos que se apertaram em secreta congeminação de vingança.

Há muitos sóis. Dias é que só há um. Para Rosaldo e o visitante, esse foi o dia. O derradeiro.

Do livro: Mia Couto. O fio das missangas. São Paulo, Companhia das Letras, 2004

 

Poema para a irmã do meio

 

Fonte: Vermelho

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