As doações de alimentos estão rareando em Caranguejo Tabaiares, comunidade de 5 mil habitantes na periferia de Recife (PE). E, quando chegam, acabam muito antes suprir toda a demanda, que está cada vez maior, de pessoas sem comida o suficiente em casa.
Ali, algumas mães já vinham se queixando de colocar os filhos para dormir com fome meses atrás, sem saber se teriam com o que alimentá-los no dia seguinte. Desde então, dizem líderes comunitárias, a situação se agravou.
“A fome já era uma constante na nossa periferia. Só piorou com essa pandemia”, conta à BBC News Brasil Daniele Lins da Paixão, que integra a organização comunitária Caranguejo Tabaiares Resiste. “Daí as crianças pedem um biscoito e a mãe não consegue dar. E se sente culpada, incapaz. É um sofrimento muito grande.”
A combinação de desemprego alto, crise econômica, assistência social insuficiente e aumento nos preços dos alimentos, em plena pandemia, tem se refletido em um aumento na pobreza e na fome, que afeta ao menos 19 milhões de brasileiros. E é nas famílias com crianças que os efeitos são mais agudos.
E uma vez que as crianças estão em uma fase crucial de seu desenvolvimento, é nelas que a fome pode deixar mais impactos de longo prazo. Às vezes, para a vida toda.
Há ao menos 9,1 milhões de crianças de 0 a 14 anos em situação domiciliar de extrema pobreza (vivendo com renda per capita mensal de no máximo R$ 275), calcula a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança.
Na prática, isso provavelmente significa que elas estão em situação de insegurança alimentar, porque a família não terá dinheiro o suficiente para garantir todas as refeições.
“É uma situação em que às vezes a família consegue fazer o almoço, mas não o jantar. E não sabe o que vai acontecer naquele mesmo dia”, explica Cíntia da Cunha Otoni, líder da área de saúde da Fundação Abrinq. “Já existia uma situação grande de insegurança alimentar, mas se agravou muito na pandemia devido à queda na renda familiar.”
O cálculo da Abrinq foi feito com base em dados de 2019 do IBGE (da pesquisa Pnad Contínua) e leva em conta inclusive o dinheiro recebido por essas famílias via programas governamentais, como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada.
Como a pobreza aumentou desde então, esse número de crianças na pobreza extrema e com fome muito provavelmente cresceu neste ano — sobretudo porque o custo dos alimentos tem um peso muito grande no orçamento das famílias mais pobres. Hoje, na média, uma família que ganha um salário mínimo já gasta 55% dessa renda comprando os alimentos básicos suficientes para apenas uma pessoa adulta, aponta o Dieese.
Outros dados reforçam essa percepção.
Enquanto 56% da população adulta brasileira viu sua renda cair desde o início da pandemia, essa porcentagem sobe para 64% no subgrupo de adultos que moram com crianças e adolescentes, segundo pesquisa do Unicef (braço da ONU para a infância) realizada em maio de 2021.
“Embora a gente saiba que as crianças não foram mais afetadas pelo vírus (da covid-19) em si, elas são as mais afetadas pelos impactos secundários que toda essa situação trouxe e pela interrupção de serviços”, disse a representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, durante simpósio realizado no dia 6 de outubro pelo Núcleo da Ciência Pela Infância (NCPI).
Comendo menos e comendo pior
Bauer destacou, também, como piorou a qualidade da comida ingerida: 29% das famílias brasileiras estão comendo mais alimentos industrializados, 22% estão consumindo mais bebidas açucaradas, e 18% estão ingerindo mais fast food, segundo a pesquisa do Unicef.
Esses alimentos são mais baratos e fartamente disponíveis. Mas costumam ser péssimos para a saúde, por não serem nutritivos e conterem excesso de sódio, açúcares e gordura.
Ou seja, além de eles não proverem as crianças com os nutrientes presentes nos alimentos in natura, eles favorecem a obesidade, diabetes e outros problemas de saúde de longo prazo.
Nas casas em situação de insegurança alimentar (ou seja, com alimentos em quantidade insuficiente), o consumo de comida saudável caiu 85% na pandemia, aponta uma pesquisa do grupo Food For Justice lançada em abril.
A carne vermelha, cujo preço subiu mais de 30% em 12 meses, segundo o IBGE, é uma das principais fontes de ferro, um nutriente particularmente importante para as crianças — e a deficiência de ferro (ou anemia) pode causar atrasos no desenvolvimento e deixá-las mais expostas a infecções.
A queda no consumo de carne, por sinal, desperta preocupação por potencialmente agravar uma estatística já considerada “trágica”: a de que uma em cada três crianças brasileiras sofre de anemia.
“Não ter uma alimentação adequada nessa fase do desenvolvimento (na infância) pode deixar impactos na saúde para o resto da vida, pelo risco de desenvolverem problemas mais para frente (na vida adulta)”, agregou Bauer.
Ela lembrou, também, que quase a metade das crianças da rede pública de ensino ficaram sem acesso à merenda escolar durante os meses de escolas fechadas. “E sabemos que, para muitas delas, essa era a principal refeição do dia.”
A situação nutricional das crianças brasileiras já era preocupante. Uma ampla pesquisa nacional, feita entre 2019 e 2020 com 13 mil famílias com crianças de até cinco anos, apontou que quase a metade delas vivia em algum grau de insegurança alimentar.
Isso corresponde a 6 milhões de famílias em todo o Brasil, com maior incidência nas regiões Norte e Nordeste, segundo os cálculos do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), coordenado por Gilberto Kac, professor titular do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Como a coleta de dados foi realizada antes da pandemia de covid-19, avaliamos que a prevalência de insegurança alimentar pode ser ainda mais elevada”, afirmou Kac, em comunicado.
Desigualdade aumentando nas próximas gerações
O risco é que o aumento da pobreza, junto às interrupções em serviços básicos de saúde e educação durante a pandemia, coloque em risco avanços conquistados a duras penas na redução das desigualdades brasileiras, diz à BBC News Brasil o economista Naercio Menezes Filho, pesquisador do Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper.
Nesse sentido, vale lembrar que a piora em todos os indicadores sociais apontados nesta reportagem incidiu mais fortemente em crianças negras, pardas e indígenas, e também mais nas regiões Norte e Nordeste, que já vinham de uma situação mais vulnerável.
“A gente sabe que a pobreza tem impactos fortíssimos no desenvolvimento infantil e no futuro dessas crianças. Todos esses impactos (sentidos) hoje elas vão carregar ao longo da vida se nada for feito para atenuá-los. É uma geração inteira que pode ser afetada”, apontou Menezes, também durante o simpósio do NCPI.
“Crianças que têm seu desenvolvimento dificultado vão ter problemas de permanecer na escola no ensino médio, de entrar no ensino superior, de encontrar um emprego legal com carteira assinada, de empreender, e vão ter problemas ao longo do seu ciclo de vida.”
O economista lembrou que, embora todos os grupos sociais tenham registrado perda de emprego durante a pandemia, a maior parte das demissões ocorreu entre as pessoas menos escolarizadas.
E, mesmo agora no início da retomada econômica, esse é o grupo que também está tendo mais dificuldade em voltar ao mercado de trabalho.
Isso reflete na capacidade desses pais de proverem o básico para seus filhos — e também de acreditarem que seus filhos terão condição de sair da pobreza.
Dados de uma pesquisa global da Gallup consolidados pela FGV Social apontam que, entre os 40% mais pobres do Brasil, 11% deixaram de acreditar que as crianças teriam a oportunidade de aprender e crescer na pandemia, índice quase dez vezes maior do que a média internacional nessa faixa de renda. Essa perda de esperança tem um impacto importante, explica à BBC News Brasil o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social.
“Esses dados são subjetivos, mas refletem esse problema de transmissão da desigualdade entre gerações. Ferir essa percepção de que, mesmo quando se é pobre, se pode subir na vida tem o efeito de frustrar a ascensão social”, explica. “Apesar de os indicadores infantis e de educação do Brasil serem (historicamente) muito ruins, eles vinham melhorando nos últimos 30 anos. Agora, o vento que soprava a favor está soprando contra.”
As saídas
Mudar esse cenário depende de um esforço articulado, sugere Naercio Menezes: desde um empenho muito grande em recuperar a aprendizagem perdida pelas crianças mais vulneráveis durante os meses de escolas fechadas até um reforço nos programas de saúde familiar, que identifiquem lacunas deixadas pela pandemia.
Mas um passo crucial e urgente, opina o economista, é corrigir lacunas no Bolsa Família, programa que o governo de Jair Bolsonaro pretende reformular sob o nome de Auxílio Brasil.
“O Bolsa Família já tinha (antes da pandemia) uma fila muito grande, de forma que 35% das famílias pobres com crianças tinham direito a recebê-lo, mas não o recebiam. São problemas graves de pobreza que estão se acentuando”, argumentou perante o NCPI.
“Por isso eu ressalto a importância de termos políticas públicas, agora que a vacinação está atingindo grande parte da população. Para o ano que vem, a gente precisa reconstruir toda essa rede de proteção social dos últimos 30 anos para não termos esse risco de aumento da desigualdade no futuro. Nosso objetivo é gerar uma sociedade com mais igualdade de oportunidades, em que as chances de realizar seus sonhos na vida não dependam única e exclusivamente se você nasceu numa família mais pobre ou mais rica.”
Leia Também: