Minha dor. Meu grito. Mulheres negras e os espaços de militância.

Essa carta foi escrita na ocasião da organização do primeiro EECUN e da reunião da comitiva nacional em Belo Horizonte – MG.

Enviado por  Amália Coelho de Souza via Guest Post para o Portal Geledés

Em conversa com uma companheira militante do feminismo negro, como eu mesma, manifestei a minha vontade de me retirar da organização do EECUN em função de um relacionamento abusivo protagonizado por mim nos últimos meses. Sim, eu vivi um relacionamento abusivo com um militante do movimento negro, anarquista, vegano, relativamente conhecido. Na ocasião, minha companheira me sugeriu que fizéssemos uma nota de repúdio contra a participação ou inserção de quem eu vou denominar de “sujeitox” no evento. Passei semanas pensando sobre isso e esta carta não tem o intuito de denunciar o caso de abuso sofrido por mim para os organizadores. Se depois dessa carta alguma decisão for tomada nesse sentido, enviarei o nome e o sobrenome do “sujeitox” para a devida comissão do evento. Infelizmente esta carta não é sobre relacionamentos abusivos, eu precisaria de mais algum tempo para contar para vocês o que foi, para mim, essa experiência.

Esta carta é dirigida a todas as companheiras negras, militantes e comprometidas com a causa “libertaria”. “Libertaria” “entre aspas”. Porque é justamente sobre essas aspas que trata essa carta. Alguns sintomas me ajudaram a detectar o abuso no relacionamento: frases como “É tudo culpa sua” ou “Você é uma péssima pessoa” eram intercaladas com pedidos de desculpa e, claro, reconciliação. Chantagens emocionais, crises de ciúmes inexplicáveis, comportamentos agressivos em função de motivos irracionais e desconhecidos por mim, demonstrações de desprezo e aversão a minha pessoa eram coisas “normais”. Depois de um tempo, minhas amigas, as quais eu agradeço imensamente, começaram a notar o comportamento abusivo e me aconselharem a deixá-lo – me enviaram milhões de artigos sobre relacionamentos abusivos, o que me ajudou muito. Quando minhas amigas começaram a ser um problema, adivinha?.

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“Sujeitox” me “pediu” para que eu não comentasse mais nada do nosso relacionamento com as amigas, eu acatei. Eu aprendi em convivência com “sujeitox” o que nós, mulheres negras, somo sempre forçadas a fazer: ficar calada (qualquer reclamação ou questionamento era tido como “exagero” ou “barraco”, quando menos, eram seguidas de términos e pedidos de perdão). Muitas outras coisas que não poderia citar, psicologicamente falando, aconteceram. Mas o mais importante é que mesmo essas não me fizeram perguntar. Eu estou em um relacionamento abusivo?.

Não, eu sou inteligente demais, esperta demais, militante demais para não reconhecer … Acontece, que quando você está em um relacionamento abusivo, você não percebe. Acredite. Não é porque “sujeitox” é militante “anarcovegan-libertario” que não possa ter esse comportamento. Não é porque você é anarco-feminista que não está sujeita a esse tipo de situação. Desconfie quando sentir similaridades em alguma dessas frases, e, principalmente não faça nada escondido das amigas, elas te amam e querem o seu melhor. A cereja do bolo foi a máxima“ A sua felicidade está nas minha mãos”, foi somente aí que eu percebi o quanto aquela pessoa realmente me subestimava, o quanto ela realmente queria estar no centro da minha vida, retirando de mim toda agência da minha própria felicidade.

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Enfim, rompemos. Até porque eu nunca realizaria esse ideal machista de relacionamento. Mas, não é sobre isso este texto. Ou é, “entre aspas”. O meu texto é sobre como queria estampar minha dor, empunhá-la, hasteá-la como uma bandeira. Mas, minha dor não quer isso. Minha dor quer o esconder-se no Domus , quer fingir que foi um “namoro que não deu certo”. Infelizmente, como disse, sou muito militante para isso. Como minha dor não quer ser uma bandeira transformarei minha dor em uma pergunta. O que EU devo fazer ? O que NÓS devemos fazer nesses casos? Nós, mulheres, feministas, militantes estamos preparadas para esse tipo de enfrentamento?. Não pensei em denunciar o que me aconteceu, porque já escutamos essa história, não é mesmo? A minha história não é diferente da de milhares de mulheres, a minha história não tem nada de novo. No mínimo dar nome a essa história se transformaria em mais uma humilhação, e eu sendo, novamente, abusada, obrigada a fornecer provas do que digo e a me justificar publicamente. Publicamente !?. A minha dor é do Domus, já disse. Mas, se não é a micropolítica espaço de militância da mulher negra, qual é?. Afinal, todas nós conhecemos os nossos números e, quando não, os sentimos na pele. Como nós vamos lidar com o fato de homens negros reproduzirem conosco a relação que muitos viram acontecer com suas mães?. Como pensar em um espaço de militância “libertaria” onde mulheres negras tem a sua “humanidade” e sua “sanidade” colocada em cheque ? Sendo obrigadas que se ausentar da militância ou, pior, tendo de encarar seus agressores preocupados em manter o status quo, subsumidas enquanto sujeitos de luta. Entre quatro paredes “nego” é que eu me faço. Entre quatro paredes eu via a face mais cruel do machismo. Entre quatro paredes eu escrevo este texto e o transformo em grito. Eu não tenho respostas, apazíguo minha dor admirando suas facetas.

 

1 Refere-se a separação de duas esferas da vida na concepção da democracia ocidental: o Domus (lar) onde predominava uma estrutura hierárquica e, claro, o lugar das mulheres; e a Polis onde os cidadãos (homens) se relacionavam “entre iguais” no exercício da democracia.

2 Me refiro aos números da violência doméstica, em média 48% maior entre as mulheres negras, e também os números relacionados a temática da solidão da mulher negra, onde foi contatado que as mulheres negras são as mais solitárias Para saber mais ver: PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Tramas e dramas de gênero e de cor: a violência doméstica e familiar contra mulheres negras. Curso de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2013. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13490/1/2013_BrunaCristinaJaquettoPereira.pdf

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