Minha mãe e o filme “Que horas ela volta?”

O geógrafo e colunista do Favela 247 Iuran Souza, 21, de Guarapiranga, na zona sul de São Paulo, entrevistou sua mãe, Dona Nice, doméstica de 45 anos, sobre o  filme Que horas ela volta?. Questionada sobre domésticas que dormem no emprego, Dona Nice não titubeia: “Sim, são tratadas como escravas. Acordam mais cedo, dormem mais tarde, têm que servir o café no horário certo, têm que bater na porta para acordar o patrão… O filme é totalmente real”. Iuran conclui: “Nunca escondi ser filho de doméstica, impossível se envergonhar de uma mulher que, devido à violência doméstica, se tornou mãe solteira, me sustentou sozinha dos quatro aos 11 anos. E mesmo sem um Real de pensão, nunca deixou faltar o leite ou o Danone na geladeira, e nos meses bons garantia até o Sucrilhos no prato”

Por Iuran Souza Do Brasil247

Na ultima segunda-feira (11) a TV Globo exibiu o já aclamado filmeQue horas ela volta, que traz à tona não só a relação patrão x empregado, mas mostra claramente que o Brasil ainda guarda muitas praticas da época escravista.

Já quero logo agradecer à Globo, porque chamei minha mãe meses atrás pra assistir ao filme no cinema, e mesmo estando muito curiosa acabou por recusar meus inúmeros convites… Eu só fico chateado por conta da vinheta de 34 segundos, veiculada apenas quatro dias antes da exibição do filme, ter sido mais eficaz do que eu tentando convencê-la a ir comigo. Isso porque fiquei quase um mês no pé dela.

Ontem não assisti só ao filme, assisti as expressões da minha mãe, incomodada com toda opressão que a “colega de trabalho” sofria. Talvez ela tenha percebido que ali não era só mais um filme, mas a sua própria rotina (de quase 23 anos) na tela da TV, sem tirar nem por. Ela adivinhava o desfecho da maioria das cenas, disse enquanto a personagem Val entregava o presente à patroa: “Ela nunca vai usar esse conjunto de xícaras, vai é esconder!”. Isso quando não nos olhávamos e ela apenas balançava a cabeça, como quem diz: “É sofrido, e absolutamente normal”, com um ar de conformismo.

Depois de tanto vê-la acenar positivamente durante o filme, resolvi lhe fazer algumas perguntas, e tentar fazê-la expressar o que sentiu durante o filme e tirar a prova da veracidade das cenas apresentadas.

Informações básicas da entrevistada:

Joanita Souza, conhecida por Dona Nice, 45 anos, vinda da cidade de Santo Estevão, na Bahia. Em São Paulo há 23 anos.


Você já ouviu que era parte da família dos patrões, ou foi tratada como se fosse da família?

Não, imagina… Nunca.

O que você acha dos patrões do filme?

Acho que tudo foi real, te tratam com indiferença até precisarem de algo. Tudo eles pedem, não fazem nada.

O que você acha da postura da doméstica do filme, em proibir algumas das atitudes da filha?

Eu acho correta, porque nas casas de família somos apenas o funcionário, o empregado. Tem um limite de onde pode ficar e o que pode comer, quando eles oferecem é só por educação: “não obrigado”, isso quando oferecem…


A senhora já teve alguma afetividade com os filhos dos patrões? No filme a Val é praticamente mãe do jovem.

Não, sempre me preveni. Acho que empregado é empregado, patrão é patrão. Não deve existir vínculo. “Bom dia, boa tarde, quer alguma coisa?” pronto.

Das cenas do filme, qual te chamou mais atenção?

Quando a patroa manda esvaziar a piscina porque vê a filha da empregada nela. Isso foi o cúmulo, porque é um ser humano igual qualquer um, só porque era pobre? Filho da empregada?


Eu me lembro de ir ao trabalho da senhora algumas vezes quando criança, como era isso?

Eles orientavam a te deixar dentro do quartinho, pra que não você não fosse as áreas sociais da casa.
Mas eu era curioso, né?

Sim, mas o certo era ficar no quartinho sem circular pela casa. (Tomei bronca por causa disso.)

Você já sofreu algum tipo de abuso de poder? Já te mandaram fazer coisas que vão além do seu trabalho?

Não, porque eu vou só ao meu limite.


Para a senhora, quando a empregada mora na casa dos patrões, ela vira praticamente uma escrava da família?

Sim, é tratada como uma escrava. Acorda mais cedo, dorme mais tarde, tem que servir o café no horário certo, tem que acordar o patrão, bater na porta pra levantar… O filme é totalmente real.

Patrão tem mão?

Tem mão, mas parecem todas aleijadas, como se não funcionassem.

Empregada que mora com os patrões ainda é comum?

Sim, vários dormem no emprego. Tem que estar de pé às seis da manhã, com o café servido na mesa.

Enquanto assistíamos ao filme, a senhora confirmava com a cabeça tudo o que acontecia, até na parte da comida. Como é na vida real? No caso do filme, até o sorvete era distinto, tinha o do pobre e o do rico.

É, esse ainda tinha o sorvete, mas geralmente, na vida real, não tem sorvete para empregado, imagine… Tem água! A sobremesa é água!

E como faz? Comida leva de casa ou come lá? Como funciona?

Comida até come de lá, mas é a que sobra da mesa que eles deixam lá, que comeram e sobrou. Ai o que sobra…

O que sobra da panela?

Da mesa! Eles fazem questão de por tudo na mesa, aí se sobrou da mesa é aquela comida que você come.

No filme são retratados vários momentos de humilhação da patroa com a empregada. Em que situações você se sente humilhada no trabalho?

Quando os patrões pegam uma coisa que não presta e perguntam: “Você quer?”. Isso acontece com comida velha que esta lá, um doce ou salgado. “Leva pro seu filho!”. Isso é humilhante! Oferecem revistas velhas, objetos de casa com defeito, roupas usadas…
A entrevistada estava impaciente, não fiz nem um café pra acompanhar o bate-papo, e já era hora da novela, que por conta do trabalho não consegue acompanhar.

Nunca escondi ser filho de doméstica, impossível se envergonhar de uma mulher que, devido à violência doméstica, se tornou mãe solteira, me sustentou sozinha dos quatro aos 11 anos. E mesmo sem um Real de pensão, nunca deixou faltar o leite ou o Danone na geladeira, e nos meses bons garantia até o sucrilhos no prato.

Ela não é a primeira e nem a última, são cerca de 8 milhões de domesticas se submetendo a esse tipo de exploração para sustentar a família em casa, e até ajudar os parentes na cidade natal. E mesmo com risos entre uma resposta e outra (por estar sendo entrevistada pelo filho), prova que o respeito está longe de chegar às casas grandes do Brasil.

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