‘Minha tia perdeu uma vida inteira’, diz sobrinho de idosa resgatada após 72 anos de trabalho análogo à escravidão

Atualmente com 87 anos, Dona Maria de Moura chegou à casa da família aos 12 anos e foi resgatada em março de 2022. Caso é o mais longevo já registrado, segundo promotora do MPT. Os ex-patrões alegam que dona Maria era parte da família e a defesa nega as acusações.

FONTEG1, por Fantástico
Atualmente com 87 anos, Dona Maria de Moura chegou à casa da família aos 12 anos e foi resgatada em março de 2022. Caso é o mais longevo já registrado, segundo promotora do MPT - Reprodução/Fantástico

A família de Maria de Moura, de 87 anos, resgatada em condição análoga à escravidão em março de 2022, denunciou ao Fantástico deste domingo (10) que a empregada doméstica era escravizada por seus patrões e que pouco a viam a idosa.

“O que a minha tia curtiu? O que a gente curtiu com a nossa tia? Nada. A minha tia perdeu uma vida inteira”, disse o sobrinho Henrique.

Maria morava na casa de Yonne Mattos Maia e André Luiz Mattos Maia Neumann, mãe e filho, seus patrões. Eles viraram réus na Justiça nesta semana e são acusados de trabalho análogo à escravidão, coação e apropriação de cartão magnético de idoso. A defesa alega que Maria era parte da família(Veja mais abaixo)

Ana Luiza, sobrinha de Maria, também lamenta a situação pela qual a tia passou: “eu sinto dor. Eu olho para ela e eu vejo uma escrava. Eu vejo escravidão”.

A família de Maria diz que ela foi morar com a família de Yonne pela promessa de uma vida melhor, mas que, segundo a Justiça, não se concretizou. Disseram ainda que viam a familiar poucas vezes e por pouco tempo.

“Bem difícil, de vez em quando, uma vez ao ano, duas. Ela aparecia para ficar um dia, dois, no máximo. Quando não voltava (logo), os empregadores ligavam para retornar”, conta Ana Luiza.

“Ficava desesperada para voltar para lá”, complementa Henrique.

Em dezembro de 2021, familiares de Maria confrontaram André Luiz Mattos Maia Neumann na frente de sua casa. (veja no vídeo abaixo)

Situação análoga à escravidão

Nesta semana, uma juíza aceitou a denúncia do Ministério Público Federal contra mãe e filho que eram patrões da dona Maria de Moura. Eles viraram réus na Justiça e são acusados de trabalho análogo à escravidão, coação e apropriação de cartão magnético de idoso. Segundo a Justiça, as visitas dela à própria família eram controladas e o celular ficava com o patrão.

Segundo a promotora Juliane Mombelli, do Ministério Público do Trabalho, o caso representa um recorde negativo no Brasil: “é o mais longevo, em que a pessoa permaneceu mais tempo nessa situação análoga à escravidão, 72 anos. Infelizmente é uma vida toda nessa condição”, disse.

O Ministério Público do Trabalho resgatou Maria de Moura, que atualmente tem 87 anos, a partir de uma denúncia anônima. A defesa alega que Maria era parte da família. (Veja mais abaixo)

“O que chama muito atenção são as fotos, uma ao lado da outra, dos locais onde as duas mulheres da casa dormiam. Não havia um lençol, uma coberta, um travesseiro. Era um sofá, onde ela passava as noites aos pés da empregadora para atender a todas suas necessidades”, disse Juliane Mombelli, promotora do MPT.

Quando foi resgatada, dona Maria estava com a saúde debilitada. Natural de Vassouras, no interior do Rio de Janeiro, ela é de uma família muito pobre e aos 12 anos foi morar com a família dos patrões do pai, na fazenda onde ele trabalhava. O dono da fazenda era o pai de Yonne. Desde então, Maria viveu com eles.

A denúncia do Ministério Público Federal também diz que no dia da inspeção o cartão do INSS de dona Maria estava em posse de André, que admitiu ter a senha dela.

Ainda segundo a denúncia, na frente dos fiscais, André segurou o braço de Maria antes dela ser ouvida: “você não diga que trabalhou para a minha mãe, senão você vai…” e disse um palavrão.

Segundo o procurador Eduardo Benones, as condições em que dona Maria foi encontrada deram base à acusação. Trabalho análogo à escravidão é um crime federal.

“Ficou estabelecido de que havia jornada exaustiva, que os trabalhos eram também feitos de maneira pesada, que sobrecarregavam a dona Maria. Havia, na verdade, uma restrição à liberdade dela”, disse Benondes.

Para as autoridades, essa ideia de “quase da família” é um alerta, porque pode camuflar uma relação de trabalho degradada que fica ali escondida pela falsa ideia de relação de afeto.

“Ser quase da família na verdade significa ser quase humano. Pessoas que partem desse pressuposto, elas no seu íntimo estão entendendo que existe uma desigualdade racial inata. Olha só, ela tem um cantinho pra dormir. Ela come de graça. Olha só, ela usufrui da convivência familiar”, destacou a historiadora Ynaê Lopes do Santos, que estuda os resquícios da escravidão no Brasil.

Isso pode deixar a vítima confusa quanto a seus direitos e à situação na qual está inserida. O Ministério Público Federal levou esse conceito em consideração para elaborar a denúncia.

“Depois de muitos e muitos e muitos anos servindo as mesmas pessoas, a pessoa tem a sua consciência capturada. Ela não consegue se enxergar na condição de vítima, porque ela é tratada como se fosse supostamente uma pessoa da família”, ponderou Benones.

O que diz a defesa

A defesa dos acusados insiste que a dona Maria de Moura seja ouvida no julgamento. Até agora, o pedido não foi atendido porque ela apresenta sinais de demência e está com um processo de interdição em andamento na Justiça.

“Ela conviveu nessa família a vida toda. Ela frequentava samba, desfiles, viajava com a família. Estão tratando a Maria de Moura, Ana, como se ela fosse um objeto. Estão subtraindo dela a humanidade dela. De ouvi-la. Você quer ficar com quem? “, disse Marcos Vecchi, advogado da família.

Veja a reportagem completa na íntegra:

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