A missão da Femafro é “quebrar com a invisibilidade das mulheres negras na sociedade portuguesa”

As dirigentes da Femafro – Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal salientam que as mulheres negras estão na base da pirâmide social, sujeitas a “opressões de classe, raça e género”. Pugnam por novas políticas públicas dirigidas a “necessidades não resolvidas”. E dedicam-se a criar referências para as jovens que duvidam dos seus direitos e capacidades.

Por Gustavo Sampaio, no CEERT

A missão da Femafro é “quebrar com a invisibilidade das mulheres negras na sociedade portuguesa”. (Foto: Reprodução – O Jornal Económico)

 

Nos princípios fundadores da Femafro destaca-se a “recuperação e promoção do papel histórico desempenhado por mulheres negras, africanas e afrodescendentes em Portugal”. Trata-se de resgatar essas mulheres da invisibilidade ou menosprezo a que são sujeitas nos livros de História?

As dirigentes da Femafro – Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal salientam que as mulheres negras estão na base da pirâmide social, sujeitas a “opressões de classe, raça e género”. Pugnam por novas políticas públicas dirigidas a “necessidades não resolvidas”. E dedicam-se a criar referências para as jovens que duvidam dos seus direitos e capacidades.

Nos princípios fundadores da Femafro destaca-se a “recuperação e promoção do papel histórico desempenhado por mulheres negras, africanas e afrodescendentes em Portugal”. Trata-se de resgatar essas mulheres da invisibilidade ou menosprezo a que são sujeitas nos livros de História?

É importante desmistificar esta ideia de que apenas os homens têm ou tiveram um papel importante na construção da História. Como sabemos, o papel da mulher nem sempre foi tido em conta nas sociedades até há alguns anos atrás, sendo que era remetido apenas para a esfera doméstica. O que se pretende é dar a conhecer que a mulher negra é também um agente ativo que tem, teve e vai ter um papel importante na sociedade, apesar dos problemas enfrentados por estas ser maior a todos os níveis, pois por ser mulher e negra estas encontram-se na base da pirâmide social.

O principal objetivo da Femafro é quebrar com a invisibilidade das mulheres negras na sociedade portuguesa, assim como colocar um fim à narrativa única que coloca todas as mulheres negras no mesmo “barco”, como se não existissem diferenças entre nós (“mulheres negras” é um grupo muito heterogéneo). Quantas autoras negras leu ao longo da sua vida? Quantas professoras negras teve ao longo do seu percurso? Quantas mulheres negras vê diariamente na televisão portuguesa e em que tipo de papéis? Não é apenas uma questão dos livros de História. Estes são um reflexo do lugar que as mulheres negras têm desempenhado ao longo dos séculos, em todas as esferas da sociedade, estamos invisibilizadas. E as mulheres negras que conseguem quebrar este ciclo muitas vezes acabam por ser “menosprezadas” e mais remetidas ao esquecimento.

Pretendemos dar visibilidade a todas que vieram antes de nós e de algum modo estão um pouco apagadas e esquecidas. E mostrar às que existem e às que virão depois de nós que estamos aqui, somos muitas, com diferentes histórias de vida e percursos e que o nosso papel não se limitou apenas a papéis subalternos. Tivemos mulheres negras com papéis de destaque na História, em áreas tão variadas como as artes, ciências, política e nos movimentos sociais e iremos continuar a ter mulheres negras com papéis de destaque nos mais diversos campos, assim como podemos ser muitas mais. Podemos citar o exemplo do filme de Hollywood, “Hidden Figures”, que em 2017 relatou o contributo importantíssimo que as mulheres negras tiveram na NASA e na ciência nos Estados Unidos da América. Quantos na verdade estavam cientes deste facto? De que forma esta participação foi menosprezada ao longo dos anos pelos livros e media?

Queremos mostrar que o nosso papel nunca se resumiu, nem tem de ser apenas aquela massa quase invisível desta sociedade que acorda de madrugada para ir trabalhar (os transportes públicos a partir das 5h estão povoados dessas mulheres) e chega muitas vezes a casa por volta das 22h, pois para sustentar a casa é obrigada a ter mais do que um trabalho, sacrificando a sua vida pessoal, familiar, de lazer, participação cívica e política.

É fundamental desconstruir a ideia da mulher negra como agente passiva, apática, parada, inativa na História. E podemos comprovar isso ao folhear um livro de História e reparar na total ausência da nossa existência. Mas na nossa memória existem muitas histórias das nossas bisavós, avós e mães que participaram junto com os homens nas várias frentes de luta pela independência, por exemplo. Além de histórias pessoais e familiares, existem histórias de figuras femininas que é necessário serem contadas.

Outro ponto importante onde verificamos essa invisibilidade da mulher negra é que neste momento estamos simultaneamente na Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024) e na Década da Mulher Africana (2010-2020). Relativamente à primeira tem-se falado muito, tentado impor agendas, eventos e financiamento. Mas para a Década da Mulher Africana o silêncio tem sido quase absoluto, não vemos agendas, iniciativas, rigorosamente nada. Estamos aliás já quase a aproximar-nos do fim desta década. Penso que este pormenor demonstra, de forma muito explícita, o lugar a que a mulher negra tem e teve na sociedade.

Como é que têm procurado fazer esse resgate? Através de que atividades ou iniciativas?

Temos procurado colmatar estas necessidades através de atividades ou iniciativas em diferentes espaços, nomeadamente nas escolas, bairros, faculdades, redes online e em cooperação com outras organizações e associações que trabalham no mesmo campo. Fizemos ações de sensibilização em escolas, as quais são um dos principais agentes na desconstrução sobre o papel das mulheres na sociedade. As mulheres – e em particular as mulheres negras – têm um papel importante nas nossas sociedades, apesar de esse papel ser muitas vezes invisível. Não se fala disso na nossa sociedade, ou muito menos nos livros de História encontramos algo (quase nada) sobre o papel da mulher e em concreto das mulheres negras.

Entre janeiro e outubro de 2018 procedemos à concretização de um projeto relativo à Década Internacional dos Afrodescendentes que consistiu em ações de sensibilização e atividades socioculturais (com workshops, oficinas e dinâmicas de grupo) na Escola Profissional Gustave Eiffel e na Escola Secundária Gil Vicente. Foram realizadas várias sessões com temas ligados à igualdade de género, discriminação racial, xenofobia e discurso de ódio. Este projeto terminou com a produção pelos alunos de uma campanha audiovisual, mais precisamente a gravação de uma campanha de vídeo, para a divulgação da Década Internacional dos Afrodescendentes que, neste momento, está na edição final e será em breve apresentado e divulgado ao público em geral.

No dia 8 de março de 2018, no âmbito das comemorações do Dia Internacional das Mulheres, teve lugar na Cinemateca Júnior (Lisboa) uma conversa sobre a promoção dos direitos das mulheres no tempo presente – #tempodasmulheres -, promovido pela secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade e pela CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género. Estivemos presentes nesse debate, onde falámos sobre a falta de visibilidade das mulheres negras e afrodescendentes no sistema político, na cultura e na academia portuguesa. Para além de temas tão importantes como a interseccionalidade, meritocracia e o direito das mulheres negras às cidades.

Inserido na programação do 1º Festival Feminista que ocorreu este ano, durante o mês de março, organizámos uma mesa redonda sobre feminismo negro com a presença de várias mulheres negras/africanas que falaram ao público sobre as suas experiências nas áreas da educação, saúde, igualdade de género e artes. Pretendeu-se com este cine-debate levantar questões relativamente à representatividade, ou falta dela, das mulheres africanas e afrodescendentes na sociedade portuguesa.

No âmbito da semana do género no ICS – Universidade de Lisboa estivemos presentes num debate composto por um conjunto de mulheres negras de várias áreas de atuação que discutiram as mais diversas temáticas e os desafios que as mulheres negras enfrentam em Portugal. Em outubro de 2018, a convite da CIG, estivemos presentes na conferência “Gender Equality and YOU. Young Voices. Joint Initiative” em Viena, Áustria, onde diferentes stakeholders e representantes se encontraram para discutir o futuro da igualdade de género na Europa.

“Todas estas condicionantes criam particularidades muito acentuadas quando falamos em representatividade nos media e comunicação social, o padrão de beleza que lhes é imposto, a posição que ocupam no mercado de trabalho, o modo como estão expostas a violência sexual e doméstica, o tratamento que têm ao nível da saúde, entre muitas outras”.

Outro princípio fundador é o “alerta aos responsáveis e agentes de decisão técnica e política para as necessidades não resolvidas das mulheres negras, africanas e afrodescendentes”. Que “necessidades não resolvidas” são essas, concretamente?

O racismo aliado ao sexismo produz efeitos negativos concretos na vida das mulheres negras, tornando a sua presença em lugares socialmente mais destacados quase inexistente. Na medida em que existem poucas medidas de apoio e incentivo para a promoção do papel da mulher negra, ou mesmo medidas que podiam promover e dar mais visibilidade a este facto. A questão racial é determinante para a exclusão social e a qualificação para a inserção das negras no mercado de trabalho faz a diferença na obtenção de resultados. As necessidades das mulheres negras são muito características, pois representam necessidades de uma minoria dentro de uma minoria. O género não é suficiente para unir todas as mulheres, não podemos englobar todas as mulheres no mesmo grupo e não ter em conta as especificidades e necessidades de cada grupo.

A luta da mulher negra é uma batalha contínua que tem em conta vários fatores como classe, género, raça ou orientação sexual, entre muitas outras. E todas estas condicionantes criam particularidades muito acentuadas quando falamos em representatividade nos media e comunicação social, o padrão de beleza que lhes é imposto, a posição que ocupam no mercado de trabalho, o modo como estão expostas a violência sexual e doméstica, o tratamento que têm ao nível da saúde, entre muitas outras.

A mulher negra, devido a toda a sua História, usualmente (atenção que não é algo universal) pertence às classes sociais mais baixas, estando aqui em Portugal muito ligada ao setor das limpezas e serviço doméstico. Devido ao racismo e a todo um estereótipo que se criou à sua volta vemos, constantemente, relatos de situações desumanas e preocupantes, mulheres que se queixam que por serem negras lhes é incumbido as tarefas mais pesadas, pois supostamente aguentam mais e têm mais força física. Algumas, por serem migrantes, sujeitam-se a más condições de trabalho, pois necessitam do contrato de trabalho para se legalizarem, muitas vezes ficam até meses e anos com a promessa de que terão um contrato para regularizar a sua situação que nunca chega.

As funcionárias que exigem os seus direitos usualmente são despedidas e os processos relativamente a assédio moral são muito difíceis de concretizar. Como tal, ou submetem-se ou acabam sem trabalho. Na maioria das vezes, os sindicatos também ainda não estão preparados para lidar com estas questões a fundo e menosprezam o fator racismo nas queixas apresentadas. Depois, estas mulheres, muitas vezes os seus trabalhos começam às 5h da manhã e terminam às 22h da noite e as creches e os colégios públicos não estão preparados para estas jornadas de trabalho, vendo-se então obrigadas, muitas vezes, a deixar os filhos mais novos e até bebés com os filhos mais velhos (que usualmente também ainda são menores de idade).

O padrão de beleza imposto às mulheres negras também é preocupante ao nível do mercado de trabalho e em outras situações. Temos o exemplo das mulheres que são despedidas por usarem os seus cabelos naturais e não alisarem, até já vimos relatos de mulheres a quem lhes foi negada a realização da fotografia do Cartão do Cidadão por simplesmente terem o cabelo natural, solto, encaracolado.

Na questão da violência sexual e doméstica, algumas por serem migrantes são mais vulneráveis ao assédio e não denunciam para não perderem os empregos e ficarem sem meio de estarem legais no país. E também porque lhes é feita a ameaça de forma clara. Mesmo em contexto doméstico, mais dificilmente irão fazer a denúncia pelas mesmas razões, colocando-as como uma camada mais vulnerável. E quando não são migrantes, mas de classes sociais mais baixas, são mais aptas também à não denúncia, pois necessitam do trabalho. Por questões culturais ou até por muitos relatos em que vemos de mulheres que tentam denunciar mas são dissuadidas por várias partes de fazer a denúncia, pois é considerado como parte da “cultura africana”. Então são mandadas para casa, não são levadas a sério. E é dado o conselho de que tudo se irá resolver.

Podemos também falar do papel que racismo exerce na saúde mental das mulheres negras em Portugal. De momento, não existe nenhum trabalho feito nesse campo e poucos profissionais ou quase nenhuns preparados para lidar com esta questão. Como tratam os profissionais de saúde a mulher negra que devido a uma vida de racismo e agressões quotidianas apresenta um variado número de questões neste campo? Como tratar uma mulher com um quadro depressivo tendo em conta o fator racismo? Sem ter em conta o racismo, não poderão tratar esta mulheres de forma eficaz. Estarão preparados para tal?

As mulheres negras nascidas em Portugal, atualmente, ainda são vistas como migrantes. Temos os migrantes de 2ª geração, 3ª geração e por aí em diante. Existe toda uma narrativa que leva à questão da não existência da população negra portuguesa. Somos todas colocadas na categoria de migrantes. Queremos romper com este paradigma e afirmarmo-nos como portuguesas. Somos cidadãs portuguesas de pleno direito.

Como podemos ver, as mulheres negras são um grupo com necessidades muito específicas que têm de ser tidas em conta nas variadas esferas de vida pública e privada. Uma mulher negra, pobre, LGBTIQA+ e portadora de deficiência irá sofrer discriminação por todas essas caraterísticas que a cada camada irá afetar mais a sua vida e não podemos tratar somente a questão do género, mas temos de tratar o problema como um todo. E dentro desta orientação temos questões diversas ao nível laboral, de saúde, social, uma lei de nacionalidade injusta, ao nível da justiça, habitação, educação e manuais escolares. Entre outras que temos de enumerar e dar a conhecer, de modo a que comecem a surgir políticas públicas que diminuam os seus efeitos.

Imagem: Divulgação

 

Quais foram as principais conquistas da Femafro até ao momento, ou resultados obtidos desde a sua fundação?

A Femafro é uma associação muito recente, foi criada em 2016, como tal ainda não tivemos o tempo desejado para solidificar a nossa atuação. No entanto, uma das nossas conquistas foi a realização do Projeto da Década Internacional dos Afrodescendentes. Entre janeiro e setembro de 2018 procedemos à realização de ações de sensibilização e atividades socioculturais na Escola Profissional Gustave Eiffel e na Escola Secundária Gil Vicente. Foram realizadas várias sessões com temas ligados à igualdade de género, discriminação racial, xenofobia e discurso de ódio. Este projeto terminou com a produção pelos alunos de uma campanha audiovisual, mais precisamente a gravação de uma campanha de vídeo, para a divulgação da Década Internacional dos Afrodescendentes.

Para contribuir para a promoção do exercício de uma cidadania mais consciente e mais participativa em torno das questões da educação e constituir-se como parceiro da comunidade educativa na promoção da educação para todos, visando a inclusão social e a plena inserção e participação na vida da comunidade africana e afrodescendente em Portugal, em dezembro de 2017 assinámos um protocolo de parceria institucional com a CNU – Comissão Nacional da Unesco.

A CIG também tem sido uma referência importante, tendo já estado presente em atividades realizadas pela Femafro. A convite da CIG, a Femafro esteve presente na já referida conferência em Viena. Também temos estabelecido parcerias informais com diversas outras organizações e coletivos relevantes para o nosso trabalho. E temos estado presentes em diversas outras atividades que têm ocorrido ao longo destes dois anos.

Fora do contexto de atividades, a nossa principal conquista foi a introdução de uma nova perspetiva das mulheres negras. Estamos a tentar romper com o discurso único que coloca todas as mulheres negras dentro da mesma esfera. Não somos todas migrantes, não somos todas trabalhadoras da limpeza e, mais importante, não somos todas iguais. Existe uma pluralidade de histórias de vida, vivências, experiências, existem mulheres negras portuguesas, mulheres negras LGBTIQA+, mulheres negras no setor das limpezas, mulheres negras advogadas, contabilistas, professoras, nas ciências, académicas, nas artes, em todos os setores de atividade e de diferentes classes sociais.

Pretendemos trazer esta variedade de histórias e acabar com o estigma da narrativa única que nos tem caraterizado, de modo a que haja mais representatividade e mais meninas/jovens/mulheres tenham diferentes referências e sintam que têm mais escolhas. Sendo que o mais importante é que fazemos este trabalho não como agentes passivos, não como o objeto de estudo, mas como o agente de ação. Somos mulheres negras a trabalhar com outras mulheres negras em prol das mulheres negras.

“As mulheres negras em todas as sociedades sempre ocuparam a base da pirâmide. Das inúmeras opressões a que estão sujeitas, três exercem uma importância significativa na sua vida: a raça, a classe e o género”.

Nesta legislatura há apenas uma mulher negra no Parlamento. Não há mulheres negras nas direcções dos principais partidos. Francisca Van Dunem é a primeira mulher negra de sempre a assumir um cargo de ministra em Portugal. Como é que se explica esta sub-representação das mulheres negras no poder político?

Para responder a este fenómeno, achamos que seria necessário quase fazer uma resenha dos últimos séculos de História, para conseguir perceber todos os efeitos que a escravatura e colonização têm nas estruturas sociais atuais. Explicar este fenómeno é complexo, mas talvez uma questão simples possa gerar alguma luz sobre esta temática: por que motivo vemos com naturalidade uma mulher negra a trabalhar nas limpezas, mas quando nos deparamos com uma mulher negra num lugar de chefia de uma grande empresa, ou mesmo com o caso da ministra da Justiça, causa-nos sempre um enorme espanto?

Se imaginarmos a estrutura social como uma pirâmide, as mulheres negras em todas as sociedades sempre ocuparam a base da pirâmide. Das inúmeras opressões a que estão sujeitas, três exercem uma importância significativa na sua vida: a raça, a classe e o género. As estruturas sociais em Portugal ainda são muito rígidas, fazendo com que estas mulheres sofram com o sexismo, aliado à discriminação racial e, por norma, as mulheres negras sempre estão na classe social mais baixa. Quando juntamos raça, género e classe social multiplicamos as opressões e dificuldades que estas mulheres têm de ultrapassar para poder ascender em todos os campos e alcançar mais representatividade nos diversos espaços como a política, na cultura, nos media, na economia, entre outros.

Fala-se muito em meritocracia mas, na realidade, quem tem mais privilégios pode frequentar uma boa escola, ter acesso a meios privilegiados e mais facilmente irá conseguir aceder a um cargo superior. Uma mulher negra que provavelmente virá de uma classe social mais baixa, que possivelmente terá de começar a trabalhar mais cedo, até ter mais do que um trabalho para sustentar a família, muito dificilmente irá dispor de meios para quebrar o ciclo e ascender socialmente, ou dispor de tempo para engajar numa participação cívica e pública que lhes permita essa ascensão, o que acaba por traduzir-se na sub-representatividade que observamos em todas as esferas.

Nas muitas sociedades europeias, e em concreto na sociedade portuguesa, as oportunidades não são iguais para negros e brancos. E a política é uma área que gira muito em torno de influências e conhecimentos. Para as mulheres negras, o papel delas na sociedade é praticamente invisível, por isso torna-se difícil ascender a cargos políticos. Mas também nem sempre as mulheres negras estão interessadas ou são incentivadas a participar na política que ainda é quase totalmente dominada pelos homens. Para entrar na política hoje em dia temos que ter visibilidade, ser influente ou ser introduzido por alguém igualmente influente e com poder. Infelizmente, as mulheres negras nos cargos inferiores que ocupam não têm esta influência e conhecimento.

Está prestes a ser aprovada uma alteração à Lei da Paridade, aumentando a quota de representação das mulheres (de 33,3% para 40%) nas listas de candidatos a eleições. Consideram que também deveriam ser implementadas quotas para mulheres negras?

A questão das quotas é sempre controversa, mas perguntemo-nos: sem quotas, o número de mulheres nas listas seria tão elevado? O mais provável seria que não. As quotas num mundo ideal seria algo desnecessário, mas estas têm como objetivo promover uma igualdade que seria quase impossível acontecer sem as mesmas. Olhemos para o caso do Brasil, com as quotas ao nível do Ensino Superior, o número de estudantes negros que ingressou o Ensino Superior disparou de forma drástica e a maioria conseguiu obter excelentes classificações. Então, a conclusão que podemos tirar é que os motivos que levam os estudantes negros a não conseguir atingir o Ensino Superior não se prende com capacidades intelectuais, mas são de outra natureza.

Ao olharmos para o panorama português, onde quase não se vê mulheres negras na política, não seria igualmente justo implementar as quotas para mulheres negras? No sentido de promover a igualdade para todas as mulheres e possibilitar que as mulheres negras consigam ascender na política, nivelando o campo, então consideramos que seria uma boa medida. É de conhecimento geral que, devido a toda a História, a população negra foi empurrada para a base da pirâmide social, devido a séculos de escravatura e colonialismo. Este fenómeno torna muito mais lento o processo de ascensão da população negra, em especial da mulher negra que se encontra numa posição de maior vulnerabilidade. A aplicação de medidas de ação afirmativa, positivas, apenas iriam auxiliar as mulheres negras que, por vários motivos, não têm acesso a muitos espaços da esfera pública, são-lhes vedados.

Pensamos que o problema passa por desconstruir a ideia de que a política é uma área apenas ou quase sempre para homens, mas era importante criar formas de incentivo para a participação das mulheres, principalmente nos poderes locais que é o sítio onde a visibilidade ajuda a atrair outras mulheres, em concreto as negras. De forma a desmistificar a ideia de que é uma esfera masculina e que a mulher não tem lugar na política. A questão das quotas é muito controversa, porque questiona se as mulheres têm capacidade de entrar por elas mesmas sem a ajuda das quotas. Mas também, se não forem implementadas medidas como quotas, será que haveria abertura ou mesmo espaço para mulheres em geral e mulheres negras?

“Para uma jovem negra que cresce sem se ver na televisão, nas empresas, nas universidades e na administração pública, e cujas referências de mulheres negras que se encontram à sua volta, na sua grande maioria, encontra-se em setores como o das limpezas, claro que irá questionar se o seu lugar é numa universidade, nos quadros de uma grande empresa, na televisão ou na política”.

A sub-representação ou invisibilidade das mulheres negras também é patente nos órgãos de comunicação social, nos tribunais, nos conselhos de administração de bancos e grandes empresas, em cargos dirigentes da administração pública, etc. Quais são as causas dessa sub-representação e que efeitos tem na condição das mulheres negras na sociedade portuguesa? Para as raparigas negras nas escolas, por exemplo, pode ser desmotivador, podem achar que não têm capacidade ou até direito a exercer esses cargos ou profissões?

Tal como já foi mencionado, a invisibilidade da mulher negra está patente em todas as esferas da sociedade portuguesa. Quantas atrizes negras vê na televisão? Quantas apresentadoras negras? Quantas modelos? Quantas CEO? Quantas professoras negras vê nas universidades portuguesas? No entanto, vemos muitas mulheres negras nas empresas de limpezas e em outros cargos subalternos. Para uma jovem negra que cresce sem se ver na televisão, nas empresas, nas universidades e na administração pública, e cujas referências de mulheres negras que se encontram à sua volta, na sua grande maioria, encontra-se em setores como o das limpezas, claro que irá questionar se o seu lugar é numa universidade, nos quadros de uma grande empresa, na televisão ou na política. É claro que irá colocar em causa o seu lugar de pertença e, tirando algumas exceções em que conseguem com um esforço sobre-humano ultrapassar todas essas barreiras invisíveis e questionar o seu lugar nesta sociedade, a grande maioria aceita como dado adquirido que estes espaços são vedados à sua pessoa e não lhe pertencem, pois não se revê neles. É complementamente desmotivador não haver representatividade ou não nos sentirmos representadas nesta sociedade.

As oportunidades não são iguais para negros e brancos e isso tem uma grande influência na vida e no futuro das mulheres negras. A sociedade tem uma visão de que as mulheres negras apenas estão capacitadas para exercer cargos inferiores. Esta visão foi fruto de anos de colonização e escravatura que, de uma certa forma, ainda hoje leva muitos negros e negras a aceitarem esta ideia de que apenas são capazes de exercer cargos inferiores que lhes são propostos. Muitas vezes também tem a ver com a educação, uma vez que muitos pais não incentivam os filhos, e as filhas negras em particular, por exemplo a dar continuidade aos estudos superiores, para poderem ter um emprego melhor. Contentam-se apenas que os filhos terminam a escola obrigatória e depois vão trabalhar. Mas esta temática prende-se muito com a questão da sobrevivência da família em em muitos casos, não investem num futuro melhor por uma questão meramente económica, ou por acharem que não vão ter hipóteses. E por falta de incentivo e pela própria sociedade que tem esta visão sobre as mulheres negras.

Para explicar seria necessário fazer o resumo dos últimos séculos de História, demonstrar como os séculos de escravatura e colonialismo conduziram a população negra para as classes sociais mais baixas. Seria necessário ilustrar como o género, aliado com a classe e com o racismo teve um efeito devastador no modo como uma mulher negra é percecionada, tornando a sua ascensão social um sem número de vezes mais difícil, isto devido a todas as opressões que tem de combater e barreiras que tem de ultrapassar. É todo um sistema que funciona contra a mulher negra e que, para ser ultrapassado, implica um esforço extraordinário.

As eleições de Donald Trump como presidente dos EUA e de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil tornaram mais premente a existência de uma associação como a Femafro? Estamos a viver uma época histórica em que há um imperativo moral de agir contra a discriminação e a violência, não apenas contra as mulheres negras mas também contra as mulheres em geral, pessoas LGBT, minorias étnicas, etc.?

É sempre premente existirem associações como a Femafro, principalmente no contexto que vivemos actualmente. A eleição de presidentes como Trump ou Bolsonaro mostra que os populistas com ideias racistas, homofóbicas, desprezo pelas minorias e extremistas têm vindo a ganhar cada vez mais eleitores. É preocupante saber que as pessoas se identificam com ideais cada vez mais extremistas. Sabemos o que ocorreu no passado e causou muitos danos, com sequelas até aos dias de hoje. Por isso torna-se importante haver associações como a Femafro que luta pela defesa e promoção dos direitos destes grupos considerados como minorias, os quais nem sempre têm voz na sociedade atual.

No entanto, não devemos esquecer que é sempre imperativo agir contra todo o tipo de discriminações e violência, independentemente da época em que nos encontramos. Não devemos esperar pelo momento em que a situação atinge um ponto crítico para agir e devemos basear a nossa conduta diária pela ação contra todas as formas de discriminação. Aliás, a falta de ações é que leva a sociedade a eleger presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro. A necessidade de existir associações como a Femafro é anterior à eleição dos presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro e continuará muito depois destes.

O maior problema destas eleições não está na figura dos presidentes, mas sim nas ideias que representam e na legitimação de um certo tipo de discurso. Aqueles que apoiam estes presidentes sempre existiram e estiveram entre nós, mas por uma questão de moderação e algum receio mantinham-se mais recatados. Mas quando surge alguém que dá voz ao que pensas de forma aberta, a reação passa por passares a expressar mais abertamente toda a ideologia que reprimias, por pensares que não seria bem visto. E isto ocorre pois finalmente percebes que não estás assim tão sozinho. Este tipo de discurso funciona sempre bem em épocas de crise. Com todas as crises financeiras e sociais dos últimos anos abriu-se sempre a porta a estas figuras que usam a cultura do medo e da ignorância para subir ao poder. Já vimos isto acontecer anteriormente na História e vivemos sempre em ciclos repetitivos.

Contudo, achamos importante salientar que a relevância de existirem associações como esta tem por base questões muito anteriores a estas eleições e não devemos basear a nossa existência em fenómenos passageiros. Surgimos com o objetivo de acabar com a invisibilidade da mulher negra na sociedade portuguesa, combater o racismo estrutural/institucional. E muito após a governação destes dois presidentes, a nossa luta manter-se-á atual, pois as razões pelas quais isto ocorre são profundas e complexas e é necessário um enorme trabalho de desconstrução de paradigmas.

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