Hanayrá Negreiros é uma mulher que ilumina com a sua pretitude e nos inspira em vários níveis. A firme delicadeza quando fala, a beleza de “criola contemporânea” e sua dedicação acadêmica são alguns dos meus encantos por ela.
Formada em Negócios da Moda pela Universidade Anhembi Morumbi, ultrapassou o apagamento curricular do ensino da história do povo preto e indígena, mas, como muitas vezes os desafios impostos para uma mulher preta viram sementes, durante seu mestrado viu sua semente florescer quando se dedicou aos estudos das estéticas afro-brasileiras e africanas, que se manifestam através da indumentária, iconografia, memórias e religiosidades negras. Ainda bem! E sorte a nossa!
Acompanhando o trabalho realizado por ela, fica ainda mais forte a consciência de que moda é também registro, é documento. A partir de retratos de mulheres pretas brasileiras da segunda metade do século 19 e um delicado estudo “arqueológico” sobre as suas indumentárias, ela investiga e reconstrói a história dessas mulheres.
Tive uma conversa deliciosa com Hanayrá e meu primeiro interesse foi saber a razão que a fez escolher a moda para recontar nossa história e quem é ela nesse universo:
“Sou uma nova pensadora e pesquisadora de moda. Tenho 28 anos, sou formada há sete, com cinco deles dedicados ao mestrado e três dedicados também ao ensino, como professora. Hoje, vejo que tem um longo caminho ancestral e recentemente compreendi que a moda é uma herança de família. Sou neta de alfaiate, com quem convivo até hoje e neta de costureira, que apesar de ter falecido jovem, me deu a oportunidade de crescer com a máquina de costura como um objeto presente. Acredito que ela me deixou algumas dicas dos caminhos que poderia seguir”, me conta.
Eu, claro, me emocionei com a resposta, talvez por ter trilhado um caminho parecido de referências familiares que, às vezes sem perceber, me mostraram que, olhando para dentro das famílias negras, encontramos a relação direta da moda com ancestralidade e a potência que isso tem para transformar a moda que vemos hoje.
Nessa conversa, Hanayrá trouxe a imagem cristalizada de uma máquina de costura, Vigorelli preta, provavelmente da década de 60, e fiquei curiosa em saber também qual foi a primeira imagem de moda contemporânea e também a primeira imagem histórica que a impactou:
“Me lembro de ver Alek Wek pretíssima com o cabelo curto e crespo na capa da revista Elle Brasil falando sobre otimismo, lá em 2016. Ela me impactou muito com aquela beleza expoente e imponente que, junto com suas palavras, me trouxeram conexões não só com África, mas com várias outras vivências. Recentemente, comprei essa revista em um sebo online para materializar essa memória tão importante para mim. Sobre um registro visual histórico impactante, a primeira certamente foi a imagem “Negra da Bahia” fotografada pelo Marc Ferrez, em 1885. Essa imagem foi o despertar para os meus estudos sobre modas negras, uma vez que me mostrou que, mesmo diante de todas as violências do Brasil escravista, mulheres negras afrontaram esteticamente aquela sociedade.”
É um registro espetacular da moda afro-brasileira com grandes influências africanas: joias de crioulas, posturas e olhares muito importantes para a reconstrução da memória. Infelizmente não sei o nome dela, mas estou empenhada em descobrir! Hanayrá Negreiros.
Referência é tudo, e as duas imagens que Hanayrá trouxe são de mulheres “que se parecem com ela”, como ela disse. E é por isso que sempre reforço a importância da moda na construção de imagem e de imaginário. E, trazendo para o contemporâneo, também não fazem isso as fotos que postamos hoje em nossas redes sociais? Eu digo que sim! Que histórias será que estamos contando quando escolhemos as imagens que reproduzimos em nossas redes, em nossas apresentações profissionais por aí?
Durante nossa conversa, ficou claro que imagem, moda e fotografia registram nossa passagem por aqui. E, considerando o contexto que produzimos cada vez mais materiais como esses, aproveitei para perguntar qual história ela achava que nós, mulheres negras de hoje, estamos documentando para o futuro. Ela deu uma leve risada e disse:
“O tempo vai passar, e o que estamos fazendo no presente é, sim documento, para o futuro, para as próximas gerações, para toda a sociedade. Tem muita importância o que está sendo feito, você é uma referência nisso quando produz conteúdos que geram reflexões a partir da imagem. Vejo a internet como uma das possibilidades de cartografia da moda negra contemporânea. As histórias que lerão no futuro contarão de que forma as mulheres negras deste tempo vivem, criam, recriam e, principalmente, como se movimentam na sociedade. E, sem dúvida, já está escrito na nossa história, através de todos estes registros, o empreendedorismo negro feito por mulheres que sustentam a suas famílias financeiramente e emocionalmente com as suas artes e habilidades, assim como as mulheres com seus tabuleiros no século 19. Está registrado que nós somos a continuidade delas.”
O papo continuou com muitas risadas, reflexões e “coincidências” em nossa trajetória. Hanayrá tem muita coisa para trocar. MUITO o que ensinar. Não sei vocês, mas eu não queria que essa conversa terminasse, por isso marcamos o próximo encontro: ela como professora e eu como aluna!.
Ela ministrará seu próximo curso “Histórias do Vestir”, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), no dia 22 de julho. Uma investigação nas referências de moda de cinco artistas negros do acervo do museu: Heitor dos Prazeres, Maria Auxiliadora, Rosana Paulino, Aline Motta e Dalton Paula. E no seu Instagram, além de lindas imagens, a gente encontra reflexões importantes.
Eu sempre digo que nenhuma árvore cresce e floresce sem raízes. E, depois dessa conversa, fiquei grata por Hanayrá se dedicar à pesquisa para contribuir na (re)construção das raízes da moda e da história negra. Seus trabalhos vão contribuir para que cada uma de nós possa também crescer e florescer na moda, seja como consumidoras, seja como criadoras. Hanayrá já nos ajuda – e muito – a saber que este território também é nosso! Obrigada, Hana!