Monumentos públicos de figuras controversas da história deveriam ser retirados? SIM

Na biografia que dedica ao poeta João da Cruz e Sousa, Paulo Leminski analisa a história do país e conclui: “O Brasil, qualquer transeunte sabe, foi descoberto por Cabral e fundado pela violência”.

Qualquer transeunte, contudo, ao passar pela avenida Ibirapuera, em São Paulo, se depara com o monumento a Pedro Álvares Cabral, estátua que imagina o português em pose de herói descobridor, sem qualquer menção à violência genocida que compõe a biografia do homenageado, mais próxima à figura do invasor. Uma placa de granito no seu pedestal de mármore reproduz frase atribuída a Tancredo Neves, reforçando a ideia que o monumento tenta narrar visualmente: “A Portugal devemos tudo”.

Vai-se embora, nessa combinação de imagem e texto, a centralidade das populações indígenas, africanas, seus descendentes e uma grande diversidade de povos na conformação do esgarçado, mas inequivocamente diverso, tecido social brasileiro.

Monumentos nem sempre são salvaguardas da história. Eles dizem mais respeito à mentalidade do contexto de suas criações, às negociações políticas e do direito à memória, que à missão de substitutos do ofício próprio dos historiadores. Sua natureza estática, contrária ao dinamismo dos processos sociais, pode gerar o efeito contrário, congelando no espaço representações de personagens e eventos que o acúmulo de pesquisas históricas, com o tempo, descreditaram como falsas, impróprias.

Essas construções, embora se imponham sobre as paisagens e sirvam não raro a legitimar narrativas excludentes, sofrem de um paradoxo: muitos só se fazem notar quando são questionados. Esses momentos revolvem a biografia —quase sempre decepcionante— dos heróis de pedra e metal, reacendendo o debate sobre as lacunas da história oficial, as histórias não contadas, as memórias apagadas. Essa justificativa, contudo, é suficiente para mantê-los de pé, reforçando imaginários coloniais e simbologias racistas em meio a nossos espaços de vida em comum?

Quando toleramos a perpetuação de imagens de colonizadores, escravistas e bandidos em geral em nossas vias, é sinal que esses espaços não são tão públicos assim; é indício forte de que privilegiamos a memória de alguns personagens em detrimento de outros. E qualquer transeunte sabe que os homenageados têm sido monotonamente escolhidos de um repertório de homens brancos, muitas vezes fardados, com o peso de biografias imorais em suas costas.

Nesses casos, é preciso mandar os malditos embora. Uma comissão composta pelo poder público e especialistas, sobretudo oriundos dos grupos cujas memórias não foram monumentalizadas, poderia ser constituída para analisar caso a caso. Pode-se mandá-los embora realocando-os em museus que os apresente criticamente; levando os exemplos extremos ao chão, num gesto extremo de reparação simbólica (e estética); pode-se confrontá-los a partir de intervenções, contramonumentos, reconfigurações que convidam à sua ressignificação “in loco” —mandando embora a maldição de sua história única. O que não se pode é deixá-los como estão; os riscos que corre essa gente à margem da cena, o horror de um progresso vazio.

Não se apaga a história ao dar a monumentos “controversos” novo destino. Se a recontextualização dessas estátuas não muda o passado, seu deslocamento informa o que já não se pode mais tolerar se almejamos, de fato, um espaço comum mais democrático, capaz de abarcar memórias plurais e de reparar as histórias jogadas para baixo do tapete da história.​27i

Hélio Menezes
Antropólogo, atua como curador, crítico e pesquisador; é curador de arte contemporânea do Centro Cultural São Paulo

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