Movimentos sociais driblam omissão do governo na pandemia

Não é exagero afirmar: se não fosse a atuação firme e consistente da sociedade civil brasileira durante a pandemia, a situação estaria muito pior. Os trágicos números – 6,8 milhões de infectados e 180 mil mortes até o momento – certamente seriam ainda mais trágicos. A quantidade de pessoas com fome, nas ruas, sem renda, seria exponencialmente maior. E mais, se a sociedade civil tivesse sido mais ouvida pelas autoridades públicas, não teríamos estes números catastróficos.

Quatro falácias fundamentaram as principais decisões tomadas pelo governo federal durante a pandemia. Trataremos delas uma a uma e, em seguida, mostraremos como funcionou, na prática, a mobilização de movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil, chamando atenção para o imenso legado deixado por esses atores.

“Estamos todos no mesmo barco”

Diferente da metáfora amplamente difundida de que estivemos todos no mesmo barco na luta contra a covid-19, é certo que podemos até estar no mesmo oceano, mas nele alguns vão em iates e outros, em boias, lutando para não naufragar.

Várias pesquisas apontam que a pandemia escancarou as desigualdades já existentes, e que há populações que sofrem mais: os pobres, a população negra, as mulheres, os LGBTQIA+, os idosos e crianças, trabalhadores informais, os povos indígenas, moradores de favelas, população de rua, comunidades tradicionais e os que vivem em áreas sem infraestrutura.

Os estudos também mostram como a covid atingiu desigualmente os desiguais. De acordo com dados reunidos pela Oxfam, temos 40 milhões de pessoas trabalhando sem carteira assinada e 12 milhões sem emprego. Além disso, no Brasil por volta de 35 milhões de pessoas não têm acesso adequado à água e 100 milhões não têm acesso a serviço de esgoto.

Ao afetar desigualmente os desiguais, a pandemia aprofundou o fosso entre incluídos e excluídos. O fato de milhares de alunos ficarem sem aulas durante a pandemia e não conseguirem se dedicar aos estudos à distância (Ead) – devido à disparidade de acesso à tecnologia – amplia a distância entre alunos de escolas públicas e privadas, e aprofunda ainda mais as desigualdades educacionais já existentes.

“É preciso escolher entre a economia ou a vida”

Num mundo cuja economia é venerada e a morte é banalizada, vimos a maioria das instituições e dos governos preocupados com a estabilidade do mercado financeiro global, enquanto relegavam à vida humana um papel secundário.

O governo Bolsonaro assumiu na prática e discursivamente essa falácia, tendo como principais representantes o próprio presidente e o seu ministro da Economia Paulo Guedes. Quem não lembra a frase do ministro na fatídica reunião ministerial “… vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas…”. Sua fala expressa o descaso do governo e das elites econômicas com a população. Se o segmento da economia que mais emprega no país é desprezado, imaginemos o que desejam para mais da metade da população economicamente ativa que ficou sem nenhum sustento financeiro.

“O governo faz todo o possível”

Em abril de 2020, quando havia 5 mil mortos pela doença no Brasil, disse Bolsonaro: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre”. Em agosto de 2020, com quase 100 mil mortes, ele afirmou que fez o possível e o impossível para salvar vidas.

A verdade não poderia ser mais distorcida. Ações como a Renda Emergencial só foram possíveis pela pressão da sociedade civil. Depois de muita mobilização, o Congresso Nacional aprovou a proposta de 600 reais mensais.
Na área da saúde, enquanto organizações de vários matizes defendiam o SUS, o governo parecia mais disposto a desmontá-lo. Em fins de outubro, anunciou uma proposta que poderia desencadear na privatização das unidades básicas de saúde, e que foi revogada em menos de 24 horas por pressões de amplos setores da sociedade.

Dar seguimento a esse desmonte seria injustificável. Os efeitos da pandemia só não foram mais devastadores por causa do SUS. Apesar de sofrer com o desinvestimento e sucateamento, o SUS garantiu o direito à saúde da população, que, em sua maioria, não teria acesso se este não fosse um serviço público e gratuito. O SUS atende aproximadamente 80% dos brasileiros.

“O cuidado é responsabilidade da família e não do Estado”

No dia 8 de abril de 2020, Bolsonaro afirmou que é dever da família cuidar dos idosos e não do Estado. Essa declaração veio em um momento em que o avanço da pandemia mostrou a necessidade de proteger os mais vulneráveis, dentre eles os idosos, e reacendeu o debate sobre o papel do Estado na garantia de direitos, como a saúde.

Buscando se desresponsabilizar pela inércia, o presidente reproduziu uma ideia que ecoa há tempos: que a proteção da vida é responsabilidade das famílias, o que, na prática, tem significado sobrecarregar mulheres. É o famoso cada um cuida de si, que define o cuidado e a solidariedade como ações de âmbito individual-familiar. Em eco com a extrema direita global, neoliberalismo e conservadorismo têm caminhado de mãos dadas, como já alertou a cientista política Wendy Brown, no livro “Nas ruínas do neoliberalismo”.

Aprendendo com movimentos

De que forma movimentos sociais e organizações progressistas da sociedade civil agiram a favor da vida e buscaram desconstruir essas falácias?

Para atenuar e conter os estragos da covid-19, rapidamente se espraiou pelo país uma extensa corrente de solidariedade. Produção e distribuição de máscaras, kits de higiene, alimentos etc., passaram a mobilizar pessoas e recursos. Foram milhares de iniciativas impulsionadas por plataformas digitais e pelo contato de proximidade entre vizinhos, militantes organizados e não organizados, ativistas e defensores de direitos humanos. Essas iniciativas são muito pouco divulgadas na imprensa, que optou por destacar a ajuda humanitária empresarial, cujas corporações se aproveitam da crise sanitária para fortalecer suas marcas.

Por todo o país, diversas campanhas e ações de solidariedade têm sido realizadas por organizações comunitárias e movimentos sociais para amenizar as necessidades das famílias nesses territórios. Por exemplo, a Uneafro, em conjunto com mais 12 organizações parceiras, já distribuiu kits de higiene e mais de 84 toneladas de alimentos (4.237 cestas básicas) em 39 territórios nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Em diversas regiões do país os agricultores assentados do MST organizam ações de distribuição de alimentos em parceria com organizações locais. Desde o começo da pandemia até julho, já haviam sido doadas mais de 2.500 toneladas de alimentos.

Entretanto, há outra dimensão da ação dos movimentos sociais tão importante quanto a primeira: a articulação para incidência política. Organizações e movimentos pressionaram o poder público e apresentaram propostas de saídas políticas para as múltiplas crises que atravessamos em 2020. Movimentos sociais são basicamente desafiantes do sistema, como nos lembra a vasta literatura acadêmica sobre eles.

Pressionado, uma parte do poder público passou a agir. No entanto, em muitas situações simplesmente negou ou ignorou o problema, desconsiderando proposições consistentes de movimentos sociais. Ou, pior ainda, fez com que a situação se agravasse, com a aprovação de leis ou o incentivo para que houvesse a violação de direitos, como no decreto que autorizava a entrada de missionários em terras indígenas em plena pandemia. O governo federal se colocou contra ativistas, ONGs e movimentos sociais. Mas foram eles que impediram uma crise ainda mais grave.

Inúmeras dessas ações da sociedade civil são emblemáticas da construção de contranarrativas às falácias mencionadas acima.

Na área de trabalho e renda, houve a mobilização e pressão sobre o Congresso Nacional para instituir o auxílio emergencial, que fazia ponte com as antigas demandas por Renda Básica. Mais uma vez, o governo Bolsonaro resistiu e ameaçou vetar a lei criada e aprovada no Congresso, apresentando como alternativa duas parcelas de R$ 200,00. Mas a pressão foi grande, e ele, preocupado com a sua popularidade, acabou sancionando a lei, assegurando o benefício mensal de R$ 600,00.

O auxílio beneficiou 67,2 milhões de pessoas. No entanto, seguindo a lógica de que o governo precisa garantir a saúde do rentismo, desde setembro ele foi reduzido para R$ 300,00 e é incerto se em 2021 será mantido. Continua, no entanto, a mobilização de setores democráticos e progressistas contra esse descaso à vida das pessoas e à situação de extrema pobreza, que se agrava com o fim do auxílio emergencial, e tende a piorar em 2021. Cerca de 300 organizações e movimentos sociais apresentaram à sociedade e ao Congresso Nacional a proposta para instituir uma renda básica permanente e para fortalecer o nosso sistema de proteção social – SUS, SUAS, universalização da educação, políticas de apoio à agricultura familiar e segurança alimentar e de enfrentamento à fome, além do próprio Programa Bolsa Família.

Na área de saúde, vimos distintas organizações da sociedade civil se organizando para defender a necessidade de recompor o orçamento do SUS e de seguir lutando pela ampliação do acesso público e universal aos serviços de saúde. As ações visavam a luta por leitos nos hospitais, medicamentos e equipamentos, testes e vacinas. Mas também miravam na gestão, recomendando a criação de comitês nacional e estaduais de gestão da crise com a participação da sociedade civil e de observatórios para acompanhar as ações realizadas nos territórios. Isso diz muito sobre a postura ativa da sociedade civil organizada e sua reivindicação histórica de participar da tomada de decisão e do controle social de ações executadas nos territórios. Com o acúmulo de décadas, pediram também a revogação do Teto de Gastos que limita os investimentos nas áreas sociais.

Para organizações e movimentos não faz sentido separar economia e saúde. E não há razões reais que impossibilitem o governo de adotar medidas como a ampliação do auxílio emergencial, com o valor mínimo de R$ 600 reais, ou a instituição da renda básica. A impossibilidade da adoção de tais medidas só acontece porque o governo prefere manter a saúde dos ricos, transferindo substantivos recursos públicos para pagar a dívida pública, e não apresentar para o debate na sociedade uma reforma tributária que siga o princípio da progressividade. Vários movimentos têm defendido que os tributos precisam incidir sobre o patrimônio e a renda dos abastados e não sobre o consumo, como é atualmente, que sangra a minguada renda da maioria da população, que em média não passa de dois salários-mínimos.

A distribuição da renda, daquilo que é socialmente produzido, é vital para o bem-estar humano, principalmente numa sociedade com tamanha desigualdade como a nossa. Essa situação é tão grave e vexaminosa que o patrimônio de 42 bilionários brasileiros, segundo relatório da Oxfam Brasil, entre março e julho, teve um aumento de US$ 34 bilhões (mais de R$ 80 bilhões). Enquanto, na pandemia, o país registra 14 milhões de desempregados (especialistas no assunto estimam que esse valor é superior a 20 milhões), 40 milhões de trabalhadores informais e mais de 600 mil micro, pequenas e médias empresas fecharam as portas.

Não é de hoje que a questão do cuidado permeia reflexões realizadas pela sociedade civil, principalmente, por movimentos de mulheres. Porém, desde que a pandemia chegou ao Brasil essa pauta vem ganhando mais espaço no debate público. A necessidade de isolamento social aumentou a carga de trabalho doméstico e de atenção a crianças, doentes e idosos. Os efeitos disso são ainda mais perversos para as famílias que residem nas periferias e favelas – territórios onde historicamente o Estado sempre se fez ausente.

Para lidar com a pobreza e os imprevistos do cotidiano, essas comunidades mobilizam laços de solidariedade e ajuda mútua. Por exemplo, para enfrentar a alta do preço do gás, famílias compartilham botijões. Porém, a necessidade de distanciamento social fragilizou ainda mais as comunidades, que driblavam a omissão do poder público através da “convivência diária, solidariedade e […] apoio comunitário”.

Apesar da importância dessas iniciativas, elas não são suficientes. Para organizações da sociedade civil, cabe ao poder público desenvolver ações para diminuir a desigualdade social e garantir o bem-estar da população em tempos de crise. Na contramão do ultraliberalismo de Guedes, organizações de todo o país afirmam que o Estado é peça fundamental para o bom funcionamento da democracia e deve cumprir seu papel de protetor de direitos para que eles possam ser usufruídos por toda a população.

* Adriana Pismel é pesquisadora do Núcleo de Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC/UNICAMP).

* Aercio B. de Oliveira é educador da FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e mestre em Filosofia pela UERJ.

* Ana Claudia Teixeira é pesquisadora do Núcleo de Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC/UNICAMP).

* Esse texto é resultado das discussões realizadas no âmbito do ENLACE, uma iniciativa que nasceu do esforço coletivo de mapear e compreender as diversas ações realizadas pela sociedade civil organizada no contexto da pandemia de covid-19. Fazem parte dessa iniciativa: a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), a Associação Brasileira de Organizações não Governamentais (ABONG); a MESA de Articulación de Asociaciones Nacionales y Redes Regionales de ONG de América Latina y el Caribe; o Núcleo de Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC/UNICAMP); o grupo Repensando as Relações entre Sociedade e Estado (RESOCIE, UnB); e o Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina – NETSAL (IESP-UERJ).

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