A mulher erectus – Por: Eliane Brum

Ela tinha uma espinha que não se dobrava. Era uma herança genética predominante na família. Nem que quisesse, ela nem mesmo vergava. Aquela espinha era como uma haste de adamantium enfiada em seu corpo. Determinada pela espinha, a vida para ela era vista numa perspectiva da honra. Em tempos relativistas, ela mantinha um arcabouço de valores inarredáveis. Se algum pensamento menos elevado por ventura cruzasse seu cérebro, ainda que numa trajetória fugaz, a espinha funcionava como um escudo. A mulher preferia quebrar a dobrar. Não se curvava. Nem aos ventos que varriam a praia onde vivia. Nem a um homem.

Sentia-se segura na tesa altura onde vivia. Ela sempre sabia. Isso é honrado, aquilo não é. Fulano não tem caráter, sicrano tem. O céu é azul, pássaros voam, homens têm pênis. Era moralmente confortável olhar o mundo da extremidade superior de sua coluna vertebral. Mas, ainda que não ousasse confessar, começara a sentir certo desconforto na região das costas.

Era difícil, por exemplo, executar gestos simples como recolher algo caído no chão por distração sem dobrar a espinha. Num dia em que tentara descobrir se sua bunda ainda era firme acabou tendo torcicolo. E quando os ventos açoitaram a praia onde fazia sua caminhada matinal, para não vergar acabou caindo de costas e esmagando uma família de siris.

Mas o que a chateava era não poder dançar. Só mesmo trancada em casa, sozinha, a coreografia bizarra executada pelo seu corpo era remotamente aceitável. Ela era o que era, entretanto. Era, principalmente, o que devia ser. Nesse sentido, não poder dançar era um preço baixo em troca de atravessar uma existência inteira sem ser assaltada uma única vez por uma dúvida, nem mesmo uma das bem pequenas. Sua espinha era feita do material irredutível das certezas.

Um dia passou pelo estrangeiro no seu andar marcial e o ouviu chamá-la de gostosa. Uma frente fria atravessou suas vértebras vinda do sul, como se nevasse em sua medula. Como ele ousava? Ela era distinta, digna, virtuosa, clássica. Gostosa, jamais. Mas a cada dia, quando ela passava, ele repetia. E ela era reta demais para mudar de caminho.

Numa manhã, em vez de frio ela começou a sentir um calor irradiando-se pela espinha. Tropeçou, até. Ele a convidara para ir ao cinema. Nenhum homem, até então, havia tido a coragem. Os princípios dela eram superiores demais para que algum alcançasse a estatura de seus ouvidos. Com o canto do olho, ela o espiou encostado na esquina, despreocupado de tudo, olhando para ela como se ela fosse só uma mulher.

Dentro dela, pela primeira vez, se insinuou uma dúvida que pinçou o nervo e provocou uma hérnia de disco. Ela não era uma mulher como as outras. Por que, então, desejava que ele a olhasse de novo como se fosse? Sua coluna travou. Precisou pedir licença do trabalho, justo ela, que nunca adoecia, nunca faltava, nunca tinha TPM nem cólica nem enxaqueca.

Quando conseguiu ficar em pé, tentou retomar a reta pavimentada que até então havia sido a sua vida. Mas algo na sua espinha havia se estragado. Sentia, mais do que ouvia, o ruído quase imperceptível do desgaste ao andar. E quando a colega de trabalho perguntou se deveria imprimir o texto em folhas A4 ou A3, ela não soube o que responder. Naquele fim de tarde, quando deixou a firma, ele a esperava. Ela não foi capaz de dizer não, atordoada com a dor de uma crise do ciático. Entrou no cinema com ele, manquejando um pouco.

Achou que o mundo acabaria para além das imagens apocalípticas da tela. Em vez disso, começou a sentir uma náusea tomar conta de suas entranhas. Logo se contorcia na poltrona do cinema. Ele desgrudou os olhos do filme quando a Casa Branca era implodida por um exército de aliens para perguntar se ela queria que buscasse água. Num esgar, ela esboçou um não com os lábios descorados.

Então começou. Sentiu-se arrebentada de dentro para fora. Ela nunca teve sexo, quanto mais filhos, mas aquele parecia um parto. A coisa, porém, lhe subia pela boca. E, numa contração arrasadora, assomou entre seus caninos. Não distinguiu a princípio o que era aquela coisa branca, com pedaços gelatinosos entre as porções duras que haviam aberto fístulas em seu esôfago. Começou a puxar e quanto mais puxava a coisa seguia emergindo como uma enguia com carapaça. Finalmente percebeu.

O que puxava de dentro dela era sua espinha. Agora aos pedaços. Na poltrona do cinema, enquanto na tela as explosões abafavam o ruído de seu interior partido, ela era uma mulher tirando a espinha pela boca.

Quando acabou, chutou a sujeira de ossos e medula para baixo do banco. Finalmente, toda mole, derramou-se feliz entre os braços do homem. Que a aninhou e ofereceu a ela um pouco de pipoca.

Fonte: Vidabreve

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