Mundo se afasta da meta de eliminar a fome

Enviado por / FontePor Monir Ghaedi, do DW

Pandemia, mudanças climáticas e conflitos agravam escassez alimentar, aponta relatório. Cerca de 50 países enfrentam graves níveis de fome, e 320 milhões de pessoas perderam acesso a alimentação adequada somente em 2020.

A meta global estabelecida em 2015 pela Organização das Nações Unidas era acabar com a fome mundial até 2030. Após anos de progresso, desde 1960, na redução do número dos subnutridos, o alvo parecia praticável para a comunidade internacional. Agora, porém, “a luta contra a fome está perigosamente fora dos trilhos”, indica o mais recente Índice Global da Fome.

Nos últimos dois anos, as sequelas econômicas da pandemia de covid-19, as mudanças climáticas e conflitos armados provocaram um aumento radical dos famintos do planeta, registra o relatório das ONGs Ação Agrária Alemã (Welthungerhilfe, em alemão) e Concern Worldwide. Em todo o mundo, mais de 800 milhões de pessoas passam fome, apontam.

O estudo foi publicado nesta quinta-feira (14/10), apenas poucas semanas após dados divulgados pela ONU mostrarem que em 2020 o número de pessoas sem nutrição adequada cresceu em 320 milhões, chegando a 2,4 bilhões, ou quase um terço da população mundial. O incremento equivale ao dos cinco anos anteriores combinados.

“Vê-se claramente que o progresso está desacelerando ou retrocedendo”, aponta Miriam Wiemers, que está entre os autores do índice. Além de subnutrição e disponibilidade de calorias, este monitora fatores como qualidade da dieta e distúrbios de crescimento e mortalidade infantis.

“Esses fatores refletem os efeitos de longo prazo da fome sobre a saúde da população e o desenvolvimento físico, mental e cognitivo das crianças”, explica a especialista. Em cerca de 50 países, a situação é alarmante ou séria, pois a fome afeta uma parcela significante de sua população.

O relatório analisou dados de 135 países onde a fome é um problema. Ou seja, países ricos ficaram de fora. As nações consideradas foram divididas em cinco categorias, dependendo da gravidade do problema: baixa gravidade, moderada, séria, muito séria e alarmante. O Brasil está na primeira categoria, de baixa gravidade. 

Mudanças climáticas agravam a fome mundial

Um relatório de 2021 da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) relaciona o aumento da insegurança alimentar ao aquecimento global, em especial à maior frequência e intensidade de intempéries como tempestades, enchentes e secas.

“Uma das razões por que a África [subsaariana] tem níveis mais altos de fome é a falta de preparação para os desafios da mudança climática”, afirma Joe Mzinga, porta-voz do Esaff, uma rede de pequenos fazendeiros da África oriental e meridional.

A aposta num único tipo de cultura torna a população especialmente vulnerável às mudanças climáticas: “Um dos maiores desafios que estamos encarando é a perda de biodiversidade e o incentivo a safras muito específicas, que no caso do sul e leste da África é o milho. Como a planta precisa de muita água, uma escassez de chuva rapidamente resulta em crise alimentar.”

Além dessas tendências, há ainda o elemento, não tematizado, da justiça climática. “Temos países com uma parcela menor de emissões carbônicas que arcam com a carga da mudança climática”, frisa Miriam Wiemers, da Welthungerhilfe.

Pandemia prejudicou cadeias alimentares

Colapsos das cadeias de abastecimento e restrições visando conter a propagação da covid-19 geraram simultaneamente a alta dos preços para o consumidor e a queda dos preços do produtor, comprometendo a segurança alimentar dos pobres nas zonas urbanas e rurais, prossegue o relatório da FAO.

Acrescente-se a isso as perdas de gêneros alimentícios causadas involuntariamente pelos toques de recolher em países africanos e asiáticos, pois os motoristas que normalmente transportavam produtos frescos à noite, sob temperaturas mais baixas, não mais puderam fazê-lo.

A FAO calcula que, devido aos impactos duradouros do novo coronavírus sobre a economia mundial, o número dos subnutridos aumentará em 30 milhões até o ano 2030. Outros estudos indicam que entre 2020 e 2022 poderá haver 2,6 milhões de crianças com crescimento atrofiado, para além das expectativas pré-pandemia.

A pandemia igualmente evidenciou como os países de renda mais alta são vulneráveis a altas de preços e escassez. Segundo dados governamentais, os preços de carne, aves, peixe e ovos subiram nos Estados Unidos 5,9% em relação a 2020, e 15,7% comparado a agosto de 2019.

Círculo vicioso de fome e violência

Conflitos violentos têm potencial para paralisar todos os aspectos de um sistema de fornecimento alimentar. Nas regiões afetadas, colheitas são dizimadas, gado é roubado e os habitantes rurais, expulsos de suas terras. Durante uma guerra “não podemos continuar com a produção como de costume, nem acessar os mercados”, explica Mzinga, do Esaff.

Em oito de dez países com níveis alarmantes de fome, conflitos são uma das principais causas, mostra o relatório, acrescentando que os choques estão aumentando em número e severidade. Por sua vez, a maior insegurança alimentar contribui para a violência, num círculo vicioso.

Uma pesquisa do World Food Program, de 2017, mostrou que, à medida que aumenta a competição por recursos escassos, cresce a probabilidade de divisões étnicas e religiosas resultarem em conflito. “Sem segurança alimentar é difícil garantir paz sustentável, e sem paz, é mínima a perspectiva de dar fim à fome global”, concluem os autores do Índice Global.

Combater a fome não é só uma questão de alcançar a meta das Nações Unidas, assegura a pesquisadora Wiemer, mas sim do direito de acessar comida adequada e nutritiva. “É um direito humano básico. Então, no momento, temos milhões por todo o mundo cujos direitos humanos são violados dia após dia.”

+ sobre o tema

O vírus Zika não desapareceu da vida das mulheres. Foi apenas silenciado

É hora de reafirmar o quadro de emergência em...

Racismo no trabalho diminuiu, mas há longo caminho à frente, diz autor

A participação de negros em cargos executivos de empresas...

para lembrar

Suspeito de ebola não teve contato com doentes na Guiné, diz ministro

Raquel Morais Homem que veio da Guiné procurou unidade de...

Câncer do colo do útero acomete mais mulheres negras, revela estudo

Mulheres negras, mulheres com baixa escolaridade e mulheres da...

Não acredite em combustão espontânea

Em uma área em que se encontram 114 favelas...
spot_imgspot_img

Como Geledés combate a discriminação racial na arena internacional

As Nações Unidas estabeleceram o dia 21 de março como o Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial como uma data em memória ao Massacre...

Centro brasileiro de Justiça Climática lança programa de fellowship exclusivo para jornalistas negros e negras 

O Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC), organização nacional de destaque na luta por justiça climática e racial, acaba de lançar o Programa de...

Geledés cobra na CSW69 reformas institucionais concretas de distribuição de recursos

Em discurso irrefutável, durante a 69ª Sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres (CSW69), Carolina Almeida, assessora internacional de Geledés – Instituto da...
-+=