“Na defesa de direitos, é inevitável enfrentar debates espinhosos”

Secretário propõe uma reação aos retrocessos na agenda de direitos humanos e aposta na mobilização de movimentos sociais contra o impeachment
por Rodrigo Martins, do Carta Capital 
No futuro próximo, é provável que os defensores de direitos humanos tenham sérios problemas de enxaqueca ao recordar o ano de 2015. Os retrocessos patrocinados pelo Congresso mais conservador desde o fim da ditadura repercutem negativamente em toda a comunidade internacional.

Recentemente, relatores das Nações Unidas e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos demonstraram fortes objeções ao projeto de lei que pretende tipificar o crime de terrorismo no Brasil, com brechas para a criminalização de movimentos sociais. Pouco antes, o Sistema ONU manifestou preocupação em relação ao excludente Estatuto da Família. O Unicef e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, por sua vez, há tempos alertam para a inconveniência de reduzir a maioridade penal.

O cenário é bastante adverso, reconhece o secretário especial de Direitos Humanos, Rogério Sottili. “Mas talvez seja necessário enfrentar esse debate para sair do processo mais fortalecido”, pondera. “Boa parte das conquistas de direitos humanos é resultado de intensa mobilização dos movimentos sociais, dos sindicatos, dos setores formadores de opinião. Mas há uma distância muito grande desses direitos em relação à maioria da população, que ainda não entendeu a importância deles.”

Muitos militantes de direitos humanos ressentem-se com a pouca atenção dispensada pelo governo em relação ao tema nos últimos anos. Apesar disso, Sottili acredita na mobilização deles pela defesa do mandato de Dilma Rousseff. “Eles podem ter críticas, mas sabem que não defender a sua permanência é deixar de lado a defesa da democracia nesse exato momento”. Confira, a seguir, a entrevista concedida a CartaCapital.

CartaCapital: 2015 foi um ano perdido para os direitos humanos?
Rogério Sottili: Não encaro dessa forma. O Brasil avançou muito na agenda de direitos humanos, a ponto de se tornar uma referência internacional. Mas vivemos um contexto político conturbado, com importante participação dos meios de comunicação. Colocou-se em dúvida muitas das conquistas obtidas. Vemos todos os dias apresentadores de programas de tevê criminalizando a juventude, questionando os direitos da criança e do adolescente, colocando o jovem como o grande problema nacional. Esse discurso chega à casa das famílias e cria um ambiente extremamente propício a propostas de retrocessos.

CC: Pode ser, mas concretamente vemos prosperar no Congresso uma série de ameaças aos direitos das minorias e da sociedade como um todo.
RS: Sim, fala-se em redução da maioridade penal, revogação do Estatuto do Desarmamento e criação de um excludente Estatuto da Família, entre outros. Se somarmos todos esses reveses na Câmara, conduzida pelo deputado Eduardo Cunha, o cenário é bastante ruim. Mas a maior parte desses projetos foi aprovada por comissões parlamentares. Há uma esperança de que o plenário da Casa vai reverter parte importante desses retrocessos, senão todos. Mas eu gostaria de falar um pouco sobre esse ambiente que está sendo construído, com a participação da mídia, com a participação do Congresso… Há uma ameaça à democracia, na medida em que setores da sociedade começam a questionar uma eleição legítima, criando argumentos inaceitáveis, relacionados à prestação de contas do governo, práticas que acontecem desde sempre, em todos os governos.

O cenário é bastante adverso, mas talvez seja necessário enfrentar esse debate para sair do processo mais fortalecido. Boa parte das conquistas de direitos humanos é resultado de intensa mobilização dos movimentos sociais, dos sindicatos, dos formadores de opinião. Mas há uma distância muito grande desses direitos em relação à maioria da população, que ainda não entendeu a importância deles. Repare a discussão em torno do Estatuto do Desarmamento. Nunca vi tantos argumentos sobre a sua importância para evitar mais mortes como agora. O debate vem à tona. O mesmo vale para o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ninguém conhece a lei a fundo, a menos que trabalhe com o tema. Mas, diante da ameaça da redução da maioridade, vejo muitos saindo em sua defesa.

CC: O tensionamento pode resultar em um processo formativo, é isso?
RS: Sim. Se você conversa com a sociedade em geral, ela não faz a menor ideia do que seja o ECA, mas acredita que as crianças e adolescentes são os principais responsáveis pela violência, que eles estão matando, roubando, que é preciso prender todo mundo mesmo, tirar esses caras de circulação. Isso obriga as redes de direitos humanos a entrar no debate para desmontar certas falácias e demonstrar a importância do ECA. Participei de mais de uma centena de debates sobre o tema nas periferias de São Paulo, sendo que a maioria dos participantes era a favor da redução.

Nunca se discutiu tanto a importância do ECA, observa Sottili. Foto: Tomaz Silva, da Agência Brasil
Nunca se discutiu tanto a importância do ECA, observa Sottili. Foto: Tomaz Silva, da Agência Brasil
CC: Esse silêncio anterior contribuiu para formar o consenso a favor da redução? Nove em cada dez brasileiros apoiam a proposta.
RS: Exatamente. Mas o Estado também é responsável. Se não oferece um número de creches adequado, se não consegue estruturar os conselhos tutelares, se formula políticas públicas inadequadas, tudo fica fragilizado. Fui secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo. Decidimos intervir nas periferias, onde a juventude negra estava sendo assassinada. Eram locais com ausência completa do Estado, ocupados pelo tráfico de drogas, o que deixava a juventude extremamente vulnerável. O que buscamos fazer? Ocupar essas periferias com políticas públicas. Pontos de cultura, quadras de esporte, praças ocupadas com pistas de skate, editais para promover ações culturais de coletivos urbanos. Esse é um momento difícil, não há como negar. Mas temos de transformar essa preocupação em oportunidade de fazer aquilo que ainda não fizemos.

CC: De que forma?
RS: Se há uma reação conservadora, podemos reagir também. Como? Promovendo um debate público sério. Precisamos discutir, por exemplo, a herança da ditadura na violência a que assistimos hoje. Por meses, um grupo acampou em frente ao Congresso pedindo intervenção militar. Vamos discutir leis da ditadura que ainda hoje vigoram, como os autos de resistência, que acobertam a violência policial, responsável por tantas mortes nas periferias das capitais. Quero transformar esta secretaria num grande movimento nacional pela valorização dos direitos humanos. Temos muita coisa bacana para mostrar, mas podemos fazer muito mais. Fizemos um festival de direitos humanos em São Paulo, com mais de 90 atividades, cinema, teatro, ocupação de rua. Shows com Criolo, Elza Soares, Ney Matogrosso. Para que isso? Para as pessoas pensarem direitos humanos sob outra ótica, diferente daquela visão preconceituosa de “defesa de bandidos.”

CC: É preciso retomar a disputa pelos corações e mentes.
RS: Exatamente. Eu, particularmente, acho o Brasil um país muito emburrado, talvez por todo o sofrimento de sua trajetória histórica. É um país que se funda em um genocídio indígena, passa por três séculos de escravidão, por duas ditaduras, uma civil e outra civil e militar, e todos os processos de transição nunca foram devidamente esclarecidos ou debatidos. O que foi exatamente a Lei Áurea? Por que a gente ainda homenageia o bandeirante Raposo Tavares? Por que temos um elevado em São Paulo com o nome do ditador Costa e Silva? Esse contexto político adverso é uma oportunidade de fazer uma lição de casa que não fizemos. Recordo de um projeto do então vereador paulistano Orlando Silva para mudar o nome de uma rua de Sergio Fleury, temido torturador, para Frei Tito, frade católico assassinado pela ditadura. De 11 moradores, oito foram contra. “Para que mudar? O táxi não vai conseguir encontrar o endereço, vou ter transtornos.”

A gente aprendeu com aquilo. Criamos o projeto “Ruas de Memória”. Primeiro, identificamos 23 endereços de São Paulo que homenageiam ditadores e torturadores. Depois, promovemos uma discussão com a comunidade sobre quem era aquela pessoa. Ao tomarem conhecimento de que a rua homenageava um agente da repressão, as pessoas naturalmente se dispunham a mudar o nome e iniciavam um debate sobre quem deveria merecer tal distinção. Normalmente, escolhem um defensor dos direitos humanos ou alguém que tinha vínculo com a comunidade, um líder comunitário, um líder religioso com forte atuação social na região. As pessoas costumam sair desse debate com outra cabeça.

CC: O senhor acredita que os movimentos sociais e militantes de direitos humanos sairão em defesa do mandato de Dilma? Pergunto isso porque percebo certo ressentimento deles em relação ao governo, justamente por ter deixado esse debate em segundo plano nos últimos anos...
RS: Não tenho dúvidas. Os movimentos sociais como um todo têm completa ciência da necessidade de defender a democracia, porque é fundamental para a sobrevivência deles e dos direitos humanos. Eles podem ter críticas ao governo Dilma, mas sabem que não defender a sua permanência é deixar de lado a defesa da democracia nesse exato momento. Na verdade, os movimentos já estão se manifestando. Não só eles. Há quanto tempo eu não via o Chico Buarque se manifestando sobre um tema político do Brasil? Até mesmo partidos de oposição, como PSOL e Rede, se manifestaram contra o impeachment. Eles podem ser contra o governo, ter mil críticas, o que está em debate é a democracia.

Não existem linhas retas na política, ninguém está imune a erros. O presidente Lula também cometeu alguns erros na agenda de direitos humanos. Mesmo assim, era amado pelos movimentos sociais. Um momento de dificuldade também ajuda a sinalizar o que está errado e precisa ser mudado. Tenho certeza de que o governo Dilma pode sair dessa crise numa situação muito mais favorável do que entrou. Ela precisa melhorar sua relação com os diversos segmentos da sociedade, mas acredito que já está mudando. Desde o início de seu governo, a presidente nunca participou de tantos encontros com movimentos sociais como de uns meses para cá.

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