Na quarentena refletindo sobre nossa invisibilidade feminina

Recentemente ouvi de um amigo intelectual, a frase: “escrever na primeira pessoa não é para qualquer um”, isso referente a um texto que escrevi sobre a pandemia que nos afligiu em 2020. Essa fala foi um gatilho. Lembre-me da minha defesa do artigo de especialização em História Agrária da Amazônia Contemporânea, na conceituada Universidade Federal do Pará, no ano de 2018. Na ocasião eu falava sobre o machismo e sexismo que mulheres gestoras de escolas do campo sofriam, inclusive eu.

A minha orientadora foi Anna Maria Linhares, não há laudas suficientes se eu começar a descrever o quanto ela é maravilhosa, uma mulher que enfrenta o patriarcado com muita força e nos influencia a observar, refletir e resistir a essa sociedade misógina que nos exclui, invisibilizada e elimina. Ela estava lá ao meu lado, com seus grandes brincos e imenso bom senso, me encorajando com seu olhar, enquanto, minhas pernas estavam fracas, meu coração acelerado mas com muita vontade de apresentar o artigo.

Os minutos não foram suficientes para explanar toda pesquisa e conclusão do trabalho, quando comecei a falar o tempo voo. Porém, o que me causava mais medo estava por vim. As considerações da banca examinadora. E elas vieram. Primeiro de uma mestre, educadora e moradora de Cametá, PA, que faz pesquisas sobre mulheres ribeirinhas. A qual apontou diversas possibilidades de aprofundar minha pesquisa e formas de melhorá-la. Meu coração agradeceu suas contribuições. 

O outro examinador da banca tratava-se de um Doutor em História. E ele protagonizou outra frase que me sacudiu academicamente, emocionalmente e profissionalmente, fez dá um nó na garganta e até os dias de hoje me causa desconforto. Ele disse gentilmente: “Você teve muita coragem de escrever sobre as dores de mulheres, gestoras do campo, grupo que você faz parte”. Parece algo simples, mas não é, não foi e pode continuar causando sustos.

As duas frases mencionadas por dois acadêmicos fez-me lembrar aquilo que é proibido de esquecer. O quanto nós mulheres não temos espaço. Sim. Como já disse anteriormente que atuei por dois anos como vice gestora em uma escola do campo. E o que presenciei no período levou-me a escrita do artigo. O que vi de tão problemático? Muitas mulheres inteligentes, dedicadas na gestão escolar, graduadas e pós graduadas, precisando dedicar-se quase que exclusivamente ao trabalho, para só assim serem consideradas dignas dele. 

Foi possível também ver homens no mesmo cargo, com menos formações acadêmicas e pouco ou nenhum interesse de voltar a estudar. E eram considerados excelentes gestores. Quando falavam rigidamente, eram vistos como fortes e decididos, pessoa que impõem respeito. Enquanto que quando acontecia o mesmo com uma gestora, ela era vista como a louca, ignorante ou com tensão pré menstrual (a famosa TPM)!  

Somos a maioria da população brasileira, estamos em todos os lugares, porém, não somos bem vistas em muitos destes ambientes. Somos as mais estudadas mas não estamos nos cargos de liderança. Não somos a maioria na política, não elegemos mulheres, não escrevemos sobre nós na academia, poucas são usadas como referências acadêmicas, eu tive uma professora apenas durante um ano de especialização de história da Amazônia. E sobre os temas e textos das aulas do curso, adivinha? Não apareceu protagonismo feminino em nenhum.

A academia nos odeia, a sociedade nos ignora e nós mesmas por vezes não nos achamos merecedoras. Desta forma, escrevo na primeira pessoa mesmo, pesquiso e socializo sobre nossas angústias, conquistas e sonhos. Quem melhor que nós mulheres subalternizadas para descrever nosso sofrimento, força e luta? Por isso, levantemos, estudemos, sejamos resistência. Só assim, conquistaremos lugar ao sol. Fim ao patriarcado opressor! Sejamos todos feministas, disse Chimamanda. Quem sabe teremos uma sociedade realmente igualitária.


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