“Na sociedade brasileira há uma masculinidade bastante tóxica”

Amara Moira, 32, chega para a entrevista com um vestido tomara-que-caia, sandália baixa, pulseiras, colar e cara lavada. A fotógrafa pergunta se ela não quer passar um batom antes de posar para a câmara, mas Amara retruca que está bem assim. Quer, cada vez mais, distanciar-se de caricaturas para tornar-se a mulher que deseja ser. “Existem milhares de formas de ser trans, assim como existem milhares de formas de ser cis”. Há apenas três anos, Amara, nascida com um genital masculino, iniciou seu processo de transição.  Já era doutoranda em crítica literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde pesquisa a obra de James Joyce, quando assumiu a identidade de travesti. Conta que a mudança foi bem acolhida na universidade, mas em busca de se sentir desejável e de arrumar um dinheiro que apressasse sua transição, resolveu virar puta. Ainda não sabe bem quanto disso foi uma escolha. “Ali era um dos poucos espaços onde eu podia ser eu mesma sem pedir favores, sem dizer obrigada a cada momento”. As histórias que viveu como prostituta estão no livro E se eu fosse puta, lançado no ano passado. Este mês, Amara esteve em Salvador participando da Mostra CUS 10 Anos, que comemorou a primeira década do grupo de pesquisa em cultura e sexualidade da Ufba.

por Tatiana Mendonça no A Tarde

Os homicídios de pessoas trans e travestis geralmente apresenta sinais de crueldade – vários tiros, múltiplas facadas, espancamentos com pedras, pauladas. Para você, quais são os principais motivadores desse ódio?

Na sociedade brasileira há uma masculinidade bastante tóxica, pesada, imposta a seres humanos desde que eles nascem. É uma vigilância perpétua, uma exigência para que provem a cada segundo essa masculinidade. E aí quando aparecem essas figuras que renegam de forma ostensiva essa criação, é como se a gente estivesse sinalizando que existem outras maneiras de existir. E para quem por muito tempo teve que aguentar viver daquela maneira, acho que olhar para nós é assustador. É como se sua vida inteira estivesse em erro, a vida inteira você tivesse que se esforçar para ser homem daquele jeito e de repente você percebe que não precisava ser assim. Acho que um dos motivadores maiores dessa violência é uma tentativa de aniquilar essas provas concretas de que é possível existir de outras formas. Ao mesmo tempo, há a questão do desejo. O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais, mas é também o país que mais consome pornografia envolvendo nossos corpos. Isso significa que sentir desejo por nós desmascara esse homem que deveria ser homem da forma correta. E aí ele não consegue aceitar o fato de que ele sentiu desejo por nós. Isso faz com que eles entrem naquele lugar absurdamente pesado e dolorido, e aí acabar com a gente é uma das formas de lidar com essa dor, com esse peso, essa ansiedade que foi criada pela nossa cultura machista, sexista, transfóbica, LGBTfóbica. Pessoas não podem ser livres na nossa cultura. E acho que travestis representam em algum grau essa possibilidade de ser livre.

As questões que envolvem as pessoas trans estão mais presentes na sociedade. Viraram até tema de novela. O que isso muda na prática a vida dessas pessoas? O que muda na sua vida?

Isso sinaliza uma abertura maior da sociedade para nos escutar. E, nessa abertura para deixar de nos ver somente a distância, a sociedade inteira vai se transformando. Porque o que a gente tem a dizer não é qualquer coisa. A gente está redimensionando o sentido das palavras mulher e homem. A gente está fazendo com que essas palavras deixem de significar um mero desdobramento do genital com que a pessoa nasce. Quando eu ando na rua e me perguntam: ‘Moça, que horas são?’, as pessoas estão sinalizando que homem e mulher já significam outra coisa. Dez anos atrás, seria impensável eu ir à padaria e ser tratada no feminino. O fato de hoje eu poder ser tratada dessa forma, antes mesmo de eu abrir a boca, significa que as pessoas estão dispostas a reconhecer que eu tenho o direito a ser tratada assim. Aos poucos, as pessoas estão se permitindo acreditar que faz sentido coexistir com a gente. Sinto transformações muito grandes acontecendo. Por exemplo, eu jamais acreditei que poderia voltar para a sala de aula. Antes da minha transição, quando eu estava no começo da minha graduação no curso de letras, dei aula de literatura por um ano. E agora apareceu um cursinho que corajosamente quer que eu seja professora de literatura dele.

As pautas das mulheres estão nas ruas, nas redes sociais, mas ainda estão longe de ganhar igual espaço na estrutura política formal, nos espaços de decisão. Com a população trans, isso é ainda pior. Você fez uma tentativa de melhorar esse quadro se candidatando como vereadora. Como ampliar na prática a defesa da igualdade de direitos?

Não consigo ver uma transformação radical da realidade machista antes de mulheres estarem ocupando os postos de tomada de decisão, de transformação da sociedade. Esses postos estão na política institucional, mas também nos espaços de chefia de empresas, por exemplo. Na minha cidade, tem uma única mulher entre 33 vereadores. É um número ridículo. E, no entanto, existe lá a cláusula de pelo menos 30% de candidatas mulheres. Só que essa cláusula é ineficiente, é uma mera exigência burocrática. Os partidos colocam lá um monte de candidaturas laranjas, de mulheres que não têm financiamento, não têm orientação. E aí fico pensando também na realidade trans, nos desafios para se fazer uma campanha na rua. O que pode significar eu parar um homem na rua para fazer minha campanha? Eu posso ser agredida ao tentar simplesmente falar sobre política, percebe? As pessoas já fizeram mobilizações conclamando a polícia a se livrar das travestis, como forma de tornar aqueles espaços mais seguros. Mas ninguém nunca se preocupa em como tornar as cidades mais seguras para as travestis. Na minha campanha, tentei dar visibilidade para as pautas de prostitutas, pautas feministas, pautas de pessoas trans. Isso por si só já foi uma vitória, e vai apontando para possibilidades de futuro nas quais travestis possam ser mais do que coadjuvantes. Fui a terceira mais votada no meu partido, com recurso zero. Só tive panfletos que o próprio partido me doou e tive 1.020 votos. Estou aberta à possibilidade de me candidatar novamente, mas tenho outras urgências agora.

Que urgências são essas?

Ah, eu consegui lançar meu livro. E gostaria agora de ajudar minhas amigas a lançarem os livros delas.

Numa palestra, você disse que, quando se tornou mulher, passou a sofrer assédio na rua. O que mais você perdeu e ganhou nesse processo? 

A ativista nigeriana Chimamanda Ngozi diz que feminismo não é sobre como a gente penteia o cabelo, mas sobre como o mundo nos trata. E esse exemplo é muito claro para mostrar como o mundo nos trata. Eu vivi 29 anos como homem e nunca passaram a mão no meu corpo, nunca tentaram de maneira invasiva obter acesso a meu corpo, nunca me disseram coisas obscenas do nada. E agora, de repente, surge uma boca no meu ouvido para dizer coisas, acreditando que vou gostar de ouvir aquilo, que eu deveria agradecer por estar ouvindo aquilo. Quando passei a existir no mundo como Amara, meu corpo se tornou público.

E o que você ganhou com a transição?

A primeira vez que pude existir assim foi uma experiência tão libertadora, tão leve… A partir daquele momento, não tinha mais volta. E quero me sentir cada vez mais livre, cada vez mais eu. No começo da minha transição, precisava muito de maquiagem para me sentir legitimada travesti, mulher trans, Amara. Hoje, ando na rua de camiseta, short, tênis, sem maquiagem alguma. E me sinto segura de quem sou. Isso mostra como as pessoas trans não são uma caricatura, um estereótipo. Existem milhares de formas de ser trans, assim como existem milhares de formas de ser cis.

O que mudou na relação entre seus colegas da Unicamp quando você se assumiu?

Acho que só posso estar hoje onde estou por conta da acolhida que tive na universidade. As pessoas se sentirem no dever de reaprender a olhar para mim, reaprender meu gênero, meu nome. Elas próprias se incumbiram de corrigir alguém que me chamasse pelo meu nome antigo ou pelo gênero errado. Não tive que me desgastar o tempo todo negociando minha identidade. Imagine eu ter que sentar com cada um e dizer: “Olha, a partir de hoje meu nome é Amara, por isso, isso e isso… Tudo bem para você?”. Eu enlouqueceria. Então ali se criou um ambiente onde eu podia ser eu, sem pedir favores, sem me desculpar por existir. Gostaria que isso deixasse de ser uma experiência privilegiada que tive e passasse a ser compartilhada por toda a comunidade trans.

Uma das bandeiras do movimento de transexuais é a inserção no mercado formal de trabalho, justamente para mudar a ideia de que trans e travestis só podem encontrar ocupação no mercado do sexo. E você, que já ocupava um lugar de prestígio social, como doutoranda de uma grande universidade pública, resolve fazer o caminho inverso e se tornar puta. Por quê?

Por mais que eu estivesse num ambiente que me respeitasse, a universidade, parece que ali as pessoas tinham… Eu não era uma pessoa que poderia ser chamada de desejável, de bonita. Havia pessoas ali que estavam dispostas a lutar pelo meu direito de existir, mas existem outras coisas das quais o ser humano sente falta. Eu queria poder me sentir bonita, desejada, à vontade com meu corpo, queria poder ganhar um dinheiro para acelerar meu processo de transição. Ir para a prostituição era uma forma de conseguir isso. Essa é uma experiência que foi necessária para mim. A prostituição é a única profissão que não precisa de decreto, de legislação, para respeitar nosso nome social e nosso gênero. Tem violência? Tem. Mas a gente pode ser quem é, não precisa negociar nossa identidade. O cliente vai perguntar meu nome e eu vou dizer Amara. E ele vai me tratar como Amara. E se a gente para para pensar em homens trans, onde eles têm podido existir? Nos presídios ditos femininos. Ou seja, nos não lugares da sociedade, nas sombras, nos ‘debaixo do tapete’, nesses lugares a gente pode existir sem precisar de decreto para que nos vejam como a gente é. As pessoas acham que escolhi ser prostituta, mas na verdade não sei exatamente que grau de escolha eu tive, se ali era um dos poucos espaços onde eu podia ser eu mesma sem pedir favores, sem dizer obrigada a cada momento, sem dizer: olha como vocês são bondosos…

Achei muito curioso um texto em seu blog em que você diz que era como se estivesse indo ao encontro de um medo antigo, um medo que fez inclusive com que você tivesse adiado sua transição. 

Sempre tive medo de assumir e ser obrigada a me prostituir, ser jogada naquele mundo da noite para o dia, perder família, perder meus amigos. Quando comecei minha transição, descobri que as travestis que vieram antes de mim, praticamente todas elas pagaram o preço que eu poderia não pagar hoje. Isso fez com que eu tivesse outra perspectiva da prostituição. E aí de repente eu começo a conhecer a perspectiva de putas feministas, ativistas prostitutas que estão pensando um outro olhar sobre o sexo e o trabalho sexual. Estão querendo pensar o trabalho sexual não mais na margem, não mais na sombra, mas como um dos trabalhos mais fundamentais que existem na sociedade. E eu queria fazer parte desse movimento, queria transformar o jeito com que a gente olha para o sexo. Eu não tinha consciência de nada disso, claro. As coisas foram acontecendo… Comecei a escrever porque precisava lidar com aquilo, precisava entender melhor o que estava passando. Vivia situações muito pesadas e, para me manter sã, eu escrevia. É engraçado que com o tempo, à medida que eu vivia situações violentas com os clientes, eu já imaginava, durante a cena, de que forma eu ia retratar aquilo,  como se isso me protegesse da situação. É como se eu estivesse vivendo aquilo em terceira pessoa.

Você parece ser uma pessoa muito sensível, doce.  Essas situações de violência que viveu como puta não te fizeram repensar essa escolha? 

Faz alguns meses que eu não tô trabalhando. Estou me preparando para voltar. Teve a campanha para vereadora, o lançamento do livro… Começou a vir dinheiro de outras fontes. Acho que foi também o tempo de eu entender melhor o meu corpo, e de como eu posso estabelecer protocolos de segurança, sem me violentar. Tudo isso é essencial para trabalhar de forma mais segura. Estou querendo voltar. A prostituição sempre acompanha a escrita para mim. Quero voltar e escrever sobre os desejos dos homens que nos procuram. Esse desejo que não pode ser assumido para a namorada, para a mãe, para o pai, para os amigos no bar, para o psicólogo. São desejos que só podem ser falados para nós. Quando tem um debate sobre sexualidade, os convidados são só psicólogos, não tem prostitutas. E, no entanto, a gente conhece a sexualidade que existe, e não a que deveria existir. E se a gente quer mudar a sociedade, deveria procurar saber o que existe.

Na prostituição, sua sobrevivência depende do desejo que os clientes tenham por você. Como essa atividade mexeu com sua confiança, autoestima?

Uma situação que é muito comum, e que a gente aprende a lidar com ela muito cedo na prostituição, é aquele cliente que chega e te ama. Quando ele tá chapado de tesão, ele te ama. E aí depois vem o choque de realidade. Ele lembra do lugar que você ocupa na sociedade, lembra que sua figura é abjeta, que ela não pode ser amada, desejada, ele começa a sentir nojo do desejo que teve por você, começa a sentir nojo de si mesmo, e aí não consegue mais olhar para você, falar com você, encostar em você.  Então é uma montanha-russa de sensações, entende? E a gente fica ali vivendo esse turbilhão a cada cliente, duas, três, quatro vezes por dia. E o fato de acreditarem que a gente existe para transar, e que a gente faz por gosto e não por dinheiro, faz com que a barganha e o processo de desmerecimento do nosso valor seja muito marcado. O tempo inteiro estão tentando diminuir o que a gente vale. Você fala R$ 20, que já é uma miséria, e eles falam R$ 15, R$ 10, eu tenho R$ 5…  Existe um processo muito grande de desumanização da travesti. Meu livro foi uma tentativa de dar visibilidade para isso.

Como você aprendeu a se proteger desse turbilhão?

A princípio eu me apaixonei por clientes. Foi ridículo! Quando estão com a gente, eles tiram a máscara que puseram na cara, do homem que deveriam ser. Depois, voltam a colocar essa máscara. Mas a prostituta tem que estar com a máscara dela muito firme no rosto. Vai ser exigido dela performance. Vai ser exigido dela uma fantasia, uma personagem. A gente tem que ter essa máscara muito pegada no rosto, como forma de proteção. É um segredo que demorei a aprender. No começo, eu me entregava achando que ele também estava se entregando. E, de repente, dava conta de que ele estava se entregando só por cinco minutos. Depois, voltava a ser o homem que foi criado para ser. E eu voltava a ser tratada como lixo.

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