Não é falta de visão de futuro do povo: é racismo ambiental

Deslizamentos de terras escancararam política que põe pessoas negras e pobres em condições de risco

Os alagamentos e deslizamentos de terras em encostas, neste princípio de 2022, escancararam a política urbana que coloca pessoas negras e pobres em condições de subalternidade e risco.

Em janeiro deste ano, houve um aumento da frequência e intensidade das chuvas. Segundo pesquisadores do clima, as tempestades de verão já são esperadas. Por que, então, ocorrem mais enchentes, deslizamentos de terras e transbordamento de rios em áreas periféricas da Grande São Paulo, como nas cidades de Embu das Artes, Francisco Morato e Franco da Rocha, do que em bairros como Perdizes, na capital paulista?

Como o caso de Perdizes ilustra, a ocupação de áreas íngremes não é sinônimo de desastres. Em diversos bairros da capital paulista, os morros foram ocupados pelas elites. Nesses casos, a fragilidade das condições topográficas foi mitigada por investimentos públicos e privados em infraestrutura.

A carência de infraestrutura urbana para a permanência segura de moradias em áreas de morro é um produto do sistema que transforma a necessidade humana básica de morar em mercadoria. Nesse sentido, essas situações de risco resultam não de uma suposta falta de planejamento individual e familiar, mas principalmente da política habitacional destinada à população negra e periférica.

A conexão entre a pauta ambiental e o planejamento urbano está geralmente relacionada a políticas de remoção. Para ilustrar uma situação vivida por milhares de famílias, podemos tomar como exemplo a política de Auxílio Aluguel na cidade de São Paulo. Das famílias que recebiam R$ 400 mensais da Prefeitura de São Paulo para custear despesas com moradia em 2016, 12.609 haviam sido removidas de favelas pelo PAC-Urbanização. Ou seja, a própria política habitacional remove pessoas em vez de garantir infraestrutura para a sua permanência e, em troca, repassa por anos uma quantia cujo valor só paga aluguéis em novas ocupações irregulares, geralmente em áreas de risco, e muitas vezes fora de São Paulo.

Na maior parte dos casos de desabamentos, contudo, as vítimas são culpabilizadas, apontadas como pessoas sem visão de futuro. Mas, afinal, qual a possibilidade de futuro quando o direito à terra continua sendo controlado por um grupelho de proprietários, e a única alternativa da população de baixa renda é se sujeitar aos subprodutos desse mercado? Apesar de a moradia ser um direito, na ausência de políticas públicas que democratizem a terra urbanizada, a terra só pode ser acessada via mercado.

É inquestionável que se trata de falta de visão de futuro. Porém, diferentemente do que disse o presidente da República, a falta de visão é do Estado, dos proprietários de terra e dos empresários do setor imobiliário, cujos investimentos, desiguais e injustos, custam a vida de quem precisa de um lugar para morar. A falta de visão de futuro também se manifesta na ausência de estratégias efetivas para responder a calamidades que recorrem todos os anos.

Há tempos que a população negra e periférica sente na vida cotidiana os resultados das alterações no sistema de regulação do clima. As condições hidrológicas também foram alteradas pelo desmatamento de matas ciliares e de grandes áreas de floresta, pela retificação e assoreamento de rios e pela pavimentação de grandes áreas. Não é mais possível continuar culpando as chuvas, como se fossem algo imprevisível.

Sabemos que as chuvas intensas de verão são esperadas. O que temos presenciado, porém, é uma maior intensidade de eventos extremos. Enquanto o sul da Bahia e o norte de Minas Gerais viviam alagamentos e deslizamentos pelo alto índice de chuvas, a região Sul do país vivia os maiores índices de temperatura da história, com dias de calor de 40°C seguidos de chuvas torrenciais. Pesquisadores já haviam previsto e alertado sobre esse cenário. Por que, então, continua sendo visto como um caso extraordinário?

O risco é recorrentemente naturalizado, como se não fosse um produto das relações sociais e econômicas, que, por sua vez, interferem nos investimentos públicos e privados. Estamos falando de processos históricos, dos quais o racismo é elemento estrutural, incluindo o racismo ambiental. A política urbana coloca pessoas negras e periféricas em condições de subalternidade e de risco socioambiental na medida em que as regiões mais seguras não foram feitas para elas habitarem e os bairros onde habitam não são alvo de políticas de adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

Qual será a resposta efetiva das autoridades? São Paulo possui uma Política de Prevenção das Chuvas de Verão, que atua, principalmente, com alertas e acolhimento, mas não com ações preventivas de alto custo. Além disso, conforme apontou levantamento da GloboNews, o governo de São Paulo não utilizou verba aprovada para combater enchentes por 11 anos seguidos, entre 2001 e 2011. Ainda é culpa da chuva?

Mais do que alertas, a população preta e periférica precisa de ações concretas que possam salvar suas vidas. Antes de promover ações de remoção, tirar as pessoas de seus locais de origem e raiz e jogá-las em novas situações perigosas, é necessário que o Estado promova ações efetivas, desde as mais simples até as que exigem altos investimentos. São necessárias ações de prevenção, mitigação e adaptação climática para evitar que os mais vulneráveis morram.

É necessário adotar políticas sociais e econômicas que garantam a resiliência e a possibilidade de reconstrução da vida das pessoas pobres que vivem em condições de risco, vítimas de eventos do clima. E, sob um olhar macro, é necessário repensar o modelo de desenvolvimento que nos leva para a beira do penhasco, para baixo da terra, soterrados pelos impactos de grandes obras, do desmatamento e da falta de planejamento socioambiental.

O uso por autoridades de palavras como “extremo” e “natureza” como justificativa para os desabamentos não passa de uma tentativa de explicar sua injustificável naturalização da morte.


Douglas Belchior

Professor de história e fundador da Uneafro Brasil

Gisele Brito

Mestra em planejamento urbano, é pesquisadora do LabCidade da FAU-USP, militante da Uneafro Brasil e assessora de desenvolvimento de projetos do Instituto de Referência Negra Peregum

Izabela Santos

Engenheira ambiental, doutora em ciência ambiental, pesquisadora e ativista por justiça climática. É consultora climática no Instituto de Referência Negra Peregum.

Mariana Belmont

Jornalista, militante da Uneafro Brasil, articuladora da Nuestra América Verde e compõe a equipe do Instituto de Referência Negra Peregum.

Thaís Santos

Química e doutoranda em Bioenergia, é educadora popular, cofundadora da Comunidade Cultural Quilombaque e coordenadora de núcleo da Uneafro Brasil.

+ sobre o tema

Polícia que mata muito demonstra incompetência de governos de SP, RJ e BA

Ninguém em sã consciência espera que um policial lance...

Fome extrema aumenta, e mundo fracassa em erradicar crise até 2030

Com 281,6 milhões de pessoas sobrevivendo em uma situação...

Eu, mulher negra…

EU, MULHER NEGRA…Eu, mulher negra…Tenho orgulho de quem sou...

para lembrar

Racismo ambiental: o que é importante saber sobre o assunto

Em sua nova coluna, a ativista Stephanie Ribeiro fala...

Não há desenvolvimento sustentável sem enfrentar o racismo

Em 18 de setembro, às 9h (horário de Nova...

Ensino, domesticação e desigualdade

“Reforma” do ensino médio de Temer pode basear-se em...

No Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza

Indicadores do IBGE mostram que índice para residências comandadas...
spot_imgspot_img

Desigualdade ambiental em São Paulo: direito ao verde não é para todos

O novo Mapa da Desigualdade de São Paulo faz um levantamento da cobertura vegetal na maior metrópole do Brasil e revela os contrastes entre...

Estudo mostra que escolas com mais alunos negros têm piores estruturas

As escolas públicas de educação básica com alunos majoritariamente negros têm piores infraestruturas de ensino comparadas a unidades educacionais com maioria de estudantes brancos....

Quase metade das crianças até 5 anos vivia na pobreza em 2022, diz IBGE

Quase metade das crianças de zero a cinco anos vivia em situação de pobreza no Brasil em 2022, de acordo com dados divulgados nesta terça-feira (9) pelo IBGE (Instituto Brasileiro...
-+=