Não foi por acaso… O racismo nosso de cada dia, na fala de Nelson Piquet em relação a Lewis Hamilton!

A revolta que se instalou com a divulgação de uma entrevista de final do ano 2021, em que, o tricampeão de Fórmula 1, Nélson Piquet, se refere a Lewis Hamilton como “neguinho”, muito nos fala sobre o quanto do racismo brasileiro se dá pela simples negação da condição humana do “outro”, como se aquele fosse naturalmente um inferior e submisso. Ao repetidamente negar-se a chamar o sete vezes campeão mundial pelo seu nome, Piquet encarna o caráter de superioridade que nossas elites carregam embutidas nas suas mais profundas convicções. Nossa herança escravocrata e senhorial que sempre se faz manifestar em meio as ações cotidianas que fazem parte do conjunto de relações sociais aos quais estamos inseridos.

Uma práxis racista de normativa social que se faz mais notar em sua violência e radicalidade, quando envolve situação em que as elites se sintam ameaçadas ou atingidas pela presença incomoda dos, para eles, naturalmente inferiores. E essa atitude se faz inerente no decorrer da entrevista quando Piquet, destila ódio e desprezo a Hamilton, imputando dúvidas até sobre o seu caráter, por envolver-se em uma acirrada disputa por posição com o seu genro Max Verstappen. A série de impropérios que se seguiu, sua postura corporal e o seu olhar, denotam aquela clássica e infeliz padronização de nossas relações raciais de quando uma pessoa negra ousa romper aquilo que pensam ser o seu lugar, o seu espaço de circulação e vivência. Em outras palavras, Piquet não perdoa Hamilton por ele ousar não se colocar no seu lugar, por se portar como qualquer profissional de automobilismo agiria em uma disputa de corrida, ainda mais envolvendo uma decisão de campeonato mundial. Mas, para o brasileiro, brilhante piloto e famoso por não aliviar em disputas de ultrapassagem, tal virtude de competividade e ousadia, de técnica e habilidade levadas para além dos limites, não pode ser de pertença a Lewis Hamilton, simplesmente por sua mediocridade moral em não admitir que um homem negro possa ousar disputar em pé de igualdade com os seus. Nem, que o imerecido possa ser considerado um esportista, um piloto superior não só a seu genro, mas até mesmo em relação a ele. Sendo já citado, repetidas vezes, como um dos melhores, senão o melhor, de todos os tempos.

A excelência e protagonismo das pessoas negras causa nos típicos e hipócritas “cidadãos de bem” uma ojeriza, que faz tornar público o seu racismo, os seus preconceitos. Numa normalidade em que verbalizam seus absurdos sem medo ou receio algum. Como se fossem verdades absolutas e incontestes, e qualquer opinião em contrário fosse desprovida de qualquer sentido ou importância.

Não nos enganemos, se em um programa de entrevista, cuja intenção é tornar manifesta aquilo que ali se fala, ele agiu assim, desprovido de qualquer receio ou temor, em seu particular, em seu círculo pessoal, penso ser inimaginável o que deve ser falado em relação a Hamilton. Protegidos pela informalidade da convivência o indefensável sempre se faz enquanto constante, e aqui não deve ser diferente. Piadas e troças sobre o piloto britânico devem ser ingredientes que não faltam aos encontros das famílias Piquet-Verstappen, e as pautas defendidas por Hamilton referente ao combate em relação ao racismo devem ser ridicularizadas ao infinito. 

Vitimista e racista reverso, oportunista e manipulador, definições de caráter que todo racista imputa a quem não vive de acordo com sua régua moral, a quem não se enquadra em sua mesquinha compreensão de humanidade. Que pessoa negra não ouviu, ouve, tais palavras quando entram e circulação em “zonas sociais de convivência”, em espaços de cultura e poder? Quando o corpo negro incomoda e tensiona pelo simples fato de existir e ali estar? A entrevista de Piquet se dá e se realiza por essa perspectiva, por esse recorte e sentido.

Uma realidade que se torna mais nítida quando levamos em consideração que nem suas brigas com Nigel Mansell ou Ayrton Senna (1960-1994), em que aconteceram séries de declarações desabonadoras de sua parte, houve ações ou falas que negassem a humanidade de seus antagonistas. O mesmo não ocorre em relação a Lewis Hamilton. Essa não foi a praxe adotada. Sendo que uma diferença foi posta desde o início, para – literalmente – tudo ficar as claras, a de que ele estava se referindo a Hamilton enquanto “neguinho”, no sentido deste enquanto um ser inferior. Acreditamos não existir qualquer dúvida em relação a isso. E que aqui não cabe, como se dá nestas situações, nem de querer justificar o uso dessa termologia como forma de demonstração de informalidade ou afeto.

Essa situação nos revelou a faceta daquilo que sabemos existir, mas que por vezes não conseguimos comprovar, que é um ódio de nossas elites, quase irracional, patológico em relação as pessoas negras! Por nossa herança colonial ou pelo sistema estrutural racista e segregador que aqui se constituiu com o passar dos séculos? Não interessa! Pois o fato é que vivemos ordenados e vigiados por padrões de sociabilidades de viés eurocêntrico, que vilaniza e desumaniza todo um contingente populacional, assim como aos conjuntos de saberes e historicidades que lhe são inerentes, em nome de uma estapafúrdia noção de superioridade que lhes são diariamente impostas.

Sabe aquelas falas estereotipadas de que “todos os negros são iguais”? Sabe aquele hábito aparentemente inocente, de chamar todo homem negro de “Neg(r)ão” ou toda mulher negra de “Neg(r)ona”, assim agindo para a impossibilidade de humanizar aquele sujeito humano por si só, mas por uma série de rótulos pré-conceitos? Dessa maneira, gerando uma percepção de que você não precisa se conhecer de fato uma pessoa negra, bastando reproduzir os rótulos que se fazem perpetrar sobre elas! Todos são negões, todas são negonas, todos são neguinhos, todas são neguinhas! Inferiores e nascidos para servir e obedecer, sem contestar ou reclamar, de preferência com sorriso sempre estampado nos rostos. Essa é a lógica racista que impera no Brasil, mas que a sociedade finge em não ser, finge em não seguir. Mas que alimenta e reproduz a toda hora e momento. 

Uma situação tão abjeta, que quando confrontada, ainda fornece ao racista se esconder sobre o escudo de que “foi tudo uma piada”, de que “tudo hoje em dia é racismo”, de que “não se pode falar mais nada”… Fora, quando não utiliza a canalhice máxima de que “não sou racista”, pois “tenho amigos/parentes negros/pretos”…

O que Piquet fez foi racismo, ponto! Sem discussão ou justificativas em contrário!

Mas que não se perca que tal fato está inserido a um contexto muito maior e mais problemático, enquanto reflexo de toda uma estrutura que a séculos foi erguida para matar as populações negras em nosso país, inclusive, nesse sentido, visando promover o apagamento de qualquer traço de suas existências. Dando margem a constituição de um verdadeiro embranquecimento da nossa história enquanto povo, enquanto nação…

Nélson Piquet poderia estar ali emitindo uma opinião pessoal, mas não estava falando sozinho, pois ele falava e representava o racismo de muitos… E sua postura ante Hamilton não se restringiu a um “homem negro britânico”, portanto sem relação direta a realidade brasileira. Pelo contrário, ela só ocorreu pela sua origem e cotidiano no racismo brasileiro, por isso atingindo em cheio, diretamente, aos milhões de afrodescendentes, de pessoas negras que vivem no Brasil. Sendo assim falaciosa, quando não indigna, se querer relativizar o ocorrido como mais uma ação corriqueira do comportamento ácido do ex-piloto ou inerente a uma questão já menor, já ocorrida, que foi “tirada do contexto” para construir uma situação de racismo que não existe. 

Que ele sofra as consequências de seus atos, que ature a repercussão negativa mundial por sua postura e dizeres, que seja cobrado e até mesmo responda judicialmente por seu ato! Toda e qualquer pessoa que tenha tal postura deve arcar com o ônus que isso acarreta. Mas que não se perca a noção e se opte pelo mais fácil, cômodo e covarde de dirigir a ele todas as culpas pelo episódio, como um fato isolado realizado por um destemperado. Se trate esse caso como realmente ele o é, uma verbalização sem freios ou amarras de como a branquitude se situa e age em relação as pessoas negras em geral, mas especialmente no Brasil. Não foi brincadeira e muito menos um acaso, mas sim o racismo vivo e pulsante deleitando-se naquilo que ele mais ama em nossas terras, o ato de desqualificar e desumanizar a excelência negra em todos os seus níveis e possibilidades, nem que isso signifique, até mesmo, a sua erradicação cultural e física. 

O racismo é isso, cínico, dissimulado e cruel, mas não se dá enquanto pertença individual, mas sim enquanto manifestação coletiva de uma sociedade. A vergonha mundial do Piquet não é alheia, mas sim de toda sociedade brasileira, cada vez mais desmascarada em relação a sua mítica de terra imaculada de racismo, preconceitos e intolerâncias. E toda “indignação” ou “revolta” ante tal fato, que não levar isso em conta, no fundo, no fundo age para ao seu final manter tudo como está, para nada mudar de fato! Se condena a ação racista não pelo fato do racismo em si, mas pela exposição negativa que tal situação traz para o país, ou para a natureza de nossas relações sociais de dominação e opressão. Preocupação ou interesse em contextualizar como tal ato simboliza os cotidianos racistas vividos pelas populações negras no Brasil? Não existiu e nem foi manifestado por nenhum dos grandes órgãos de nossa imprensa, de nossa grande mídia. E isso não se dá ao acaso, pois, afinal, por que vamos demonstrar consideração a quem de fato não nos importamos? 

No país em que “racismo não existe” ou que “racista é sempre o outro”, até ocorreram atos de condenação pública ante o ocorrido, mas é desavença passageira, que logo passa, quando a poeira baixar. Com todos voltando as boas novas, afinal de contas, o que mais essa gente pulha e medíocre gosta de fazer, é se divertir e viver a custas dos neguinhos e neguinhas que constroem e dão sentido a essa imensa nação inconclusa.  Nada de anormal no grid! Só foi dada a largada, para mais um dia do racismo nosso de cada dia, na Casa-grande chamada Brasil!


Christian Ribeiro mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

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