A questão racial no Brasil hoje: o que aprendi com Sueli Carneiro

Introdução

Eu ouvi inúmeras vezes a conversa entre Sueli Carneiro e Mano Brown no podcast Mano a Mano. São muitas camadas de conhecimento sobre a experiência negra no Brasil e na diáspora, generosamente ofertadas ao público. Como alguém que é fruto de ações antirracistas e nelas se engaja, decidi partilhar o que absorvi como sendo um panorama atual da questão racial no país. Vamos lá! 

1 – O racismo anti-negro mudou de padrão: ele agora é frontal, direto e violento.

O supremacismo branco está avançando no país. O governo atual trouxe, reproduz e pretende aprofundar as hierarquias raciais no país. Se nada for feito, é possível que haja uma exacerbação da violência racial de brancos contra negros nos mesmos níveis vigentes nos períodos de segregação racial legalmente estabelecida nos Estados Unidos e na África do Sul. A violência tem sido dirigida a toda a variedade de fenótipos negros, inclusive aqueles de pele clara – o que coloca o debate do colorismo no escanteio.

2 – Essa é uma reação ao rompimento do “pacto” da democracia racial.

Os movimentos negros têm se organizado histórica e coletivamente contra as subordinações materiais e simbólicas impostas pelo racismo e pelo mito da democracia racial. As leis de ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, a regulamentação do trabalho doméstico, a democratização do ensino superior e do mercado de trabalho promovidas pelas leis de cotas, por exemplo, são conquistas recentes herdeiras de lutas levadas à cabo desde o início da República, que expressam a busca por equidade no país.

3 – Há outra novidade: o antirracismo branco. Mas ele precisa se ampliar.

Pessoas brancas cientes da sua posição de poder sabem que são beneficiárias do racismo mesmo que não sejam “signatárias” do pacto de subordinação da população negra, o qual lhes assegura vantagens materiais e simbólicas. Isso tem sido feito por meio do engajamento na democratização de posições nas empresas e da aplicação concreta das cotas no serviço público, por exemplo. Mas essa ainda é uma posição política minoritária, que pode se expandir e se manifestar abertamente, sinalizando a necessidade de garantir a dignidade de todos os brasileiros como objetivo do país.

4 – As políticas públicas não são permanentes.

O enfrentamento às desigualdades como eixo de atuação do Estado brasileiro pareceu permanente no passado recente. Porém, os ataques às agendas de gênero e raça nas políticas públicas mostram que as conquistas merecem vigilância e suporte, sobretudo da mobilização popular de massa. O esforço pela conquista de mandatos negros antirracistas nas eleições de 2022 segue nessa direção. Ocupando as ruas e o poder, os movimentos negros podem se firmar como força política capaz de dialogar em condições de igualdade com qualquer outra.

5 – A esquerda tem sido o espaço de acolhimento das demandas da população negra.

Os movimentos negros têm assegurado suas principais conquistas com parlamentares e governos de esquerda, pautando a necessidade de um projeto emancipador para a população negra – “empurrando a esquerda para a esquerda”. A agenda envolve a concretização de direitos políticos, civis, econômicos, sociais etc. Nesse sentido, Sueli Carneiro demarca o silêncio da direita sobre a questão racial no Brasil. 

 6 – O sucesso individual de pessoas negras não se reverbera sobre a coletividade.

A mobilidade social ascendente e seletiva tem sido historicamente concedida a indivíduos negros, mas não ao seu grupo social de origem, visando afirmar a sua incapacidade, de um lado, e o mérito de pessoas brancas, de outro. Ainda resta por criar situações mais gerais de prosperidade material para a população negra por meio de políticas públicas, isto é, experiências de potencialização da comunidade negra enquanto coletividade – como já foi feito por meio de ações afirmativas e da política nacional de habitação para pessoas brancas.

7 – O empreendedorismo é uma faca de dois gumes.

A experiência de sobrevivência da população negra no país é engenhosa e criativa. No passado, mulheres e irmandades negras organizaram-se economicamente para sobreviver, para conquistar alforrias por meio de poupança etc. Ao mesmo tempo que importa valorizar esse legado, há que se prestar atenção nas armadilhas do empreendedorismo no presente. Ao afirmar-se a autonomia e liberdade individual, também se sinaliza que o emprego seguro, ancorado em direitos trabalhistas – com férias e 13º salário – não é para negros. Nesse sentido, Sueli Carneiro aponta que as lutas e conquistas negras têm sido coletivas. A capacidade de organização das favelas frente à pandemia, aliás, é um paradigma que deve ser considerado para a elaboração de novas intervenções.

Concluindo,

que sorte a nossa ter Sueli Carneiro continuando a apontar as principais questões de nosso tempo. Que sejamos capazes de converter nossa maioria demográfica em uma coletividade, concretizando no Brasil uma verdadeira democracia racial. E obrigada, Mano Brown, por nos ter proporcionado esse momento. 


¹ Fellow das Nações Unidas para a Década Afrodescendente.

² https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr?si=2c430e5df03840e0

³ https://www.geledes.org.br/os-cotistas-desagradecidos/

⁴ SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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