Os cotistas desagradecidos

Por Tau Golin*, em  Sul 21

A incoerência é típica dos desagradecidos. É o auge da hipocrisia individualista, o que há de mais nojento no ser humano. A cena patética de cuspir no prato e enfumaçar a história.

Depois que o Brasil começou recentemente a política de cotas, a algaravia da intolerância tomou conta do país. A cota, no geral, é um pequeno acelerador para retirar as pessoas da naturalização da miséria, um meio temporário de correção histórica da condição imutável da pobreza. Se a política de cotas é essencial em sociedades estratificadas, pode-se imaginar a sua necessidade neste Brasil amaldiçoado pela escravidão e etnicídio dos povos indígenas.

Nos meios de comunicação observa-se o triunfo de uma enganosa ética do trabalho, o elogio do esforço individual, como se seus porta-vozes levantassem como fênix das cinzas das dificuldades para o voo da prosperidade. Gente empobrecida, ao mesmo tempo, amaldiçoa os cotistas, culpando-os pela sua condição de pouco progresso, apesar de trabalharem a vida toda como jumentos. Invariavelmente realizam o elogio do trabalho, do esforço pessoal, sem questionarem aqueles que acumulam os produtos de seu esgotamento e imutabilidade social.

Nos ambientes sociais, invariavelmente, escuto descendentes de imigrantes condenarem a política de cotas. São ignorantes ou hipócritas. A parte rica do Rio Grande do Sul e outras regiões do Brasil é o presente de cotistas do passado. As políticas de colonização do país foram as aplicações concretas de políticas de cotas. Aos servos, camponeses, mercenários, bandidos, ladrões, prostitutas da Europa foi acenado com a utopia cotista. Ofereceram-lhes em primeiro lugar um lugar para ser seu, um espaço para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia para que pudesse semear o seu sonho.

E lhes alcançaram juntas de bois, arados, implementos agrícolas, sementes, e o direito de usar a natureza – a floresta, os rios e minerais – para se capitalizarem. No processo, milhares não conseguiram pagar a dívida colonial e foram anistiados. E quando ressarciram foi em condições módicas.

Sendo cotistas do Brasil puderam superar a maldição de miseráveis, pobres, servos, e de execrados socialmente. Muitos sequer podiam montar a cavalo, hoje, seus descendentes são até patrões de CTG, mas condenam as cotas, a mão, a ponte, o vento benfazejo, que mudaram a vida de suas famílias.

No início, no século XVIII, sobre os territórios dos charruas, minuanos, kaingangs e guaranis se aplicou a cota de “sesmaria”, um módulo de algo em torno de 13.000 (sim, treze mil) hectares. Se exterminou dois povos nativos para se formar a oligarquia. Em seguida, na metade do mesmo século, aos casais açorianos, destinaram-se “datas”, equivalentes a 272 hectares. No século XIX, aos imigrantes, concederam-se as “colônias”, de mais ou menos 24 hectares. E vieram as colonizadoras particulares e as secretarias do Estado sobre os territórios dos kaingangs e guaranis. E depois a reforma agrária. E mais os programas de expansão da frente agrícola no Brasil central, no Mato Grosso e na Amazônia, com filhos do Rio Grande, na maioria as primeiras gerações dos imigrantes.

Portanto, o Rio Grande é o produto dos cotistas, os quais demandaram sobre outras regiões do país.

E nesta história, a conclusão é óbvia: dificilmente se encontra um indivíduo que não tenha tido familiar cotista. A formação do mercado capitalista de força de trabalho é outra conversa. Faz parte do sistema. Como integra a perversão social o fato histórico de que os proprietários tendem ao individualismo, à baixa solidariedade, ao acúmulo sem compromisso cidadão. Demonstram isto os herdeiros dos cotistas do passado e dos programas de incentivos recentes, com a discriminação, a falta de solidariedade, exacerbado racismo, e o típico deboche dos idiotas.

*Tau Golin é jornalista e historiador.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Leia também :

“Terra Nostra” só para os italianos – Sueli Caneiro

Os avós daqueles que desprezam nordestinos eram os nordestinos da Europa

Racismo à moda da casa

+ sobre o tema

Homem escapa do Boko Haram e morre por racismo na Itália

Ele tentava defender a esposa, alvo de ataques racistas Do...

Justiça do DF condena jovem acusado de racismo na internet

Fonte: G1 - Marcelo Mello escreveu mensagens preconceituosas no...

Hoje na História, 27 de maio de 1963, o líder pró-independência e ex-prisioneiro Jomo Kenyatta é eleito primeiro-ministro do Quênia

Jomo Kenyatta Presidente do Quênia de 1964 a 1978 20-10-1891, Ichaweri 22-8-1978, Mombaça Do...

Quanto custa assassinar a juventude negra? R$ 79 bilhões por ano

Morte prematura de jovens custa R$ 79 bilhões por...

para lembrar

Kabengele Munanga responde a Demétrio Magnoli

Em matéria publicada no jornal O Estado de S....

Advogada envolvida em caso de injúria racial no Cambuí será exonerada

Uma advogada de 43 anos está sendo acusada de...

Assim em Ferguson como aqui

Não sei, mas me parece que por aqui em...

Contra o preconceito

A ONG Terra da Luz promove hoje mesa-redonda sobre...
spot_imgspot_img

Ensino agoniza com calor, descaso e ataques a professores no RS

O Rio Grande do Sul tem registrado nos últimos dias ondas de calor extremas. Algumas cidades chegaram a registrar recordes históricos de temperaturas, como...

Antes do primeiro choro, os lindos negros estão em desvantagens

Negros estão em desvantagem em quase todos os aspectos da vida em sociedade. Digo quase todos porque ganhamos na música, na dança, no futebol,...

Que tipo de racista eu sou?

A pergunta foi feita pela psicanalista Isildinha Baptista Nogueira em um evento da SP Escola de Teatro. Mulher negra em um ambiente eminentemente branco e...
-+=