Não pise nos mortos

1992 foi o último ano em que morei com meus pais. Mandaqui. Zona Norte de São Paulo. Todo santo dia, pegava o ônibus 1759 (Jardim Peri) ou o 1757 (Bancários) no Metrô Santana para voltar pra casa. E no caminho estava a estação de Metrô Carandiru. Aquele prédio medonho. Casa de Detenção. Ou Carandiru mesmo. Transformaram um bairro inteiro em uma penitenciária. Vira e mexe, descia na plataforma pra ficar olhando pras janelas minúsculas, com grades em forma de cruz. Lembro do torcedor fanático do Corinthians, que colocou dois brasões do time lado a lado, entre as grades. Alguns braços saltavam pra fora, dava até pra ver as tatuagens. Em outra janela lembro de uma bandeira da Paraíba, com a palavra NEGO. Sempre soube que foi símbolo de revolta, de rebeldia.

Enviado por Carolina Trevisan para o Portal Geledés, no JORNALISTAS LIVRES

NEGO. NÉGO ou NÊGO. De qualquer forma, uma palavra que dita comportamento.

Metrô lotadaço. Na estação Tietê, debandada geral. Poucas pessoas ficaram no vagão. Eram aproximadamente umas 20h do dia 2 de outubro de 1992. Pensava em descer na plataforma do Metrô Carandiru para tentar entender o que estava acontecendo. Fui o único cara a grudar o rosto da porta à direita.

Foto: Marlene Bégamo
Foto: Marlene Bégamo

O vagão passou reto, não parou. Mas passou lentamente, como se fosse preciso marcar que aquele dia, naquele lugar, nada mais seria daquele jeito. Olhei para fora, lembro dos discos voadores das radio-patrulhas rodando, rodando, feito moscas à beira da sopa. Lembro daqueles caminhões verde-escuros, quase pretos, das divisões especiais da PM. E lembro do prédio, todo escuro, nenhuma luz acesa. Como um velório sem velas.

Chegando em casa com o noticiário da TV gritando na sala, a parada bateu. Enquanto estava passando de metrô, logo ali à minha frente, centenas de corpos se amontoavam em completo silêncio. Mais de 100, talvez 200. Trucidados sem a mínima chance de defesa. Pensei em filhos, em mães, em irmãos, sobrinhos, melhores amigos, esposas, avós. Não consegui dormir direito. Por um bom tempo.

Dia seguinte. Parei na estação Carandiru na volta do trabalho. É incrível a capacidade desta cidade de sempre apagar as coisas que não se quer enxergar. Foi assim. Trânsito mediano, pessoas cercadas de seus sonhos medíocres, gente cochilando, conversando sobre amenidades frouxas. Fiquei parado na plataforma. Olhando para o primeiro pavilhão à minha frente. Sei que o Pavilhão 9 é lá atrás, mas senti que algo tinha mudado em toda a Casa. Tudo tinha mudado, enfim. E a bandeira da Paraíba não estava mais lá.

A memória

Hoje, fui convidado para participar do I Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, pela minha amiga Carol Trevisan. Criar uma intervenção em MEMÓRIA DO MASSACRE DO CARANDIRU. Com letras maiúsculas. Coisas para serem lembradas tem que ter letras maiúsculas. Como usamos na internet, quando você quer gritar.

Lembrei de mais uma coisa. Li em algum lugar ou alguém contou de alguém que conhecia de algum lugar. Alguém que entrou no Pavilhão 9, logo após o MASSACRE. Alguém que foi reconhecer os corpos. Alguém que tinha que estar lá. Lembro-me bem do que essa pessoa falou.

Lembro-me bem, como poucas coisas que tenho lembrado ultimamente. Lembro-me que falou que o sangue entrava no sapato baixo que usava. Lembro-me que falou que tinha lugares com tantos corpos empilhados, provavelmente cercados e fuzilados juntos, que não era possível pisar no chão. Para passar para o outro lado, tinha que pisar em corpos, para passar por sobre outros corpos.

A intervenção NÃO PISE NOS MORTOS surgiu dessa lembrança. A marca dos mortos feitas com tinta branca. A marca que a própria polícia usa para marcar um morto. A marca feita para você não pisar no morto. A marca para você não esquecer que ali alguém caiu morto.

Foto: Fernando Sato
Foto: Fernando Sato

Essas marcas no chão causam estranhamento num primeiro momento e, instintivamente, você se desvia. Mas num segundo momento, você se esquece e pisa no morto. Isso não pode acontecer. Nunca! Esquecer os mortos, esquecer do que aconteceu naquele dia no Carandiru, naquela noite em Osasco, em Carapicuiba, na Luz, ou com o Flavio Santana.

Quando você pisa no morto, você apaga as lembranças daquele dia. Quando você pisa no morto, você apaga o sofrimento das famílias. Quando você pisa no morto, você apaga os mandantes daquele MASSACRE. Quando você pisa no morto, você apaga os nomes dos homens assassinados a sangue frio, muitos deles que nem condenados eram. Quando você pisa no morto, você apaga o passado e destrói o futuro. Futuro do Pretérito.

NÃO PISE NOS MORTOS! Por favor.

PS. Vou me lembrar de comprar uma bandeira da Paraíba, nêgo.


Para não silenciar: Memória Massacre Carandiru

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