“Não quer ser estuprada? Não ande de Rolex na favela”

Um dos muitos artigos reaças escritos sobre a pesquisa do Ipea foi o de um blogueiro da Veja.

por Lola Aronovich

É, eu sei: o que se esperar de uma revista que já publicou um artigo dizendo que casamento tem que ser entre homem e mulher, não entre homem e cabra?

O artigo da vez dizia que o estupro não é culpa da mulher seminua, mas (o mas costuma ser um problemão pros reaças) quem manda ir de Rolex à favela?

Depois não adianta reclamar de ter sido assaltado! Pois é, não basta ser misógino — tem que incluir uma pitada de elitismo classista no comentário.

No meio de uma discussão acalorada no FB, Caroles, uma leitora frequente aqui do blog, viu este post em inglês e decidiu traduzi-lo e mandá-lo pra cá. Sinceramente, comparar o corpo das mulheres a coisas materiais (relógios, carros, casas) é algo que só gente bem estúpida costuma fazer.

“Eu dizer para uma mulher que não é seguro ela ficar bêbada porque ela pode ser estuprada é o mesmo que eu dizer a alguém que ele não deve caminhar por certo bairro à noite, pois há perigo de assalto”.
Eu escuto esse argumento o. tempo. todo.

E superficialmente é, sim, até faz algum sentido. Mas vamos pensar em assaltos e estupros e em como eles são compreendidos pelas pessoas e em como lidamos com eles na nossa sociedade. Acho que você perceberá algumas diferenças bem grandes:
1) Mulheres sóbrias são estupradas o tempo todo. Por isso, a recomendação previamente mencionada não é muito útil. Pessoas normalmente não são assaltadas quando andam somente por “bairros seguros” e em plena luz do dia. Por isso, a recomendação previamente mencionada é muito útil.

2) É muito mais comum do que se pensa que mulheres sejam estupradas por homens que elas conhecem: ficantes, maridos, parentes, conhecidos. Pessoas normalmente não são assaltadas por seus maridos, namorados, amigos próximos, parentes, colegas de trabalho, ou outros conhecidos.
3) Quando pessoas são assaltadas, o que eles estavam vestindo, ou eles estarem bêbados (ou até o lugar onde eles estavam) nunca é usado para invalidar o crime. Um assalto é um assalto, independente de quão idiota a vítima estava sendo. Mulheres estupradas? Não é bem assim.
4) O que uma vítima de assalto disse enquanto estava sendo assaltada é geralmente irrelevante. Ninguém espera que uma vítima de assalto grite “Não!” para que o que ela sofreu seja considerado um assalto. De fato, se um assaltante está sendo fisicamente agressivo, ameaçador, ou quem sabe até apresentando armas, o que é geralmente recomendado é que se fique quieto e entregue todas as suas coisas para não ser mais machucado.

Se uma vítima de assalto está muito assustada ou confusa para gritar e lutar para salvar sua carteira, ninguém questiona se a vítima queria que o assalto acontecesse. Obviamente a vítima não queria ser assaltada. Um assaltante nunca pode usar “Bom, ela não disse não, então como é que eu podia saber que ela não queria?” como defesa. Essa lógica frequentemente não é usada em casos de estupro.
E agora nós chegamos à diferença essencial entre estupros e assaltos: o que está sendo roubado. Nós, social e politicamente, damos mais valor ao que uma mulher tem dentro da sua bolsa ($) do que ao corpo dela. Então quando as coisas de uma mulher são roubadas, quando o dinheiro dela é levado, é bem óbvio para todo mundo que ela não queria que isso acontecesse. Independente do que ela disse, independente do que ela fez, independente do que ela estava vestindo, independente do que ela estava bebendo, todo mundo reconhece que uma mulher assaltada foi vítima de um crime.

Sim, talvez ela não devesse estar andando por um “bairro perigoso” sozinha à noite. Sim, talvez essa tenha sido uma decisão ruim. Mas todo mundo compreende que, independente das circunstâncias, ninguém tem o direito de pegar o dinheiro de outra pessoa sem permissão. Isso é roubo.

Nós, como sociedade política e social, entendemos esse conceito. Além disso, porque nós reconhecemos universalmente o valor e a importância do dinheiro, entendemos a dor de tê-lo roubado. Consequentemente, temos um sistema legal projetado para lidar com assaltos.

Não se pode dizer o mesmo sobre estupros. Nós não compreendemos, como um todo, que ninguém tem o direito de fazer sexo com alguém sem permissão, não interessa qual a circunstância. Nós não entendemos, como sociedade, que isso é estupro (mesmo que estupro seja exatamente isso). Nós não reconhecemos, universalmente, o valor e a importância do corpo das mulheres, e por isso nós, como sociedade, não entendemos a dor de tê-lo violado.
Nós não temos um sistema legal projetado para lidar com estupros. Nós, coletivamente, não entendemos o que é um estupro de forma evoluída o bastante para aconselharmos “não fique bêbada demais” sem que isso se torne culpabilização das vítimas. O que uma mulher diz, faz, veste, ou bebe é usado para invalidar estupros o tempo todo. O mesmo não pode ser dito sobre assaltos. Nós compreendemos que assaltos são crimes.
A analogia assalto/estupro é errada. Por favor, pare de usá-la.

 

 

Fonte: Lola Escreva Lola

 

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