Na última quinta-feira, 26, a presidenta Dilma Rousseff, ao ser questionada sobre a Medida Provisória 557 que instituiu o Sistema Nacional de Cadastro da Gestante, afirmou: “ Erramos, vamos retirar a MP“.
por Conceição Lemes
Foi durante uma reunião com os movimentos sociais no Fórum Mundial Social, em Porto Alegre. A notícia nos chegou, primeiro, via farmacêutica Clair Castilhos, secretaria-executiva da Rede Feminista de Saúde, de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos que, em e-mail a várias entidades e pessoas, comemorou, mas com cautela: “Vamos aguardar a confirmação”.
Logo depois, Cintia Barenho, do Centro de Estudos Ambientais de Rio/Pelotas, que estava na reunião, confirmou pelo twitter:
Dilma foi aplaudida de pé pelas pessoas presentes, especialmente pelo movimento feminista, quando admitiu o equívoco em relação à MP 557 e informou a decisão de retirá-la da pauta do Executivo, relata a Articulação de Mulheres Brasileiras.
Nessa sexta-feira, a presidenta Dilma fez apenas uma correção na Medida Provisória 557. Retirou do texto o termo nascituro.
A MP 557 , entre outros equívocos apontados por vários movimentos sociais e entidades que a repudiaram, misturou Estado e religião, mais precisamente com algumas visões religiosas. O que num Estado laico, como o brasileiro, é inconcebível.
– Misturou Estado e religião?! Como?! Onde?!… – muitos já devem ter aparteado.
Ao incluir o nascituro como sujeito autônomo.
– Mas o que é nascituro?
Essa é a pergunta que mais me fazem nos últimos dias, pois muita gente ainda não entendeu o que realmente significa o termo.
Até 26 de dezembro de 2011, quando a presidenta Dilma baixou a MP 557, nascituro, para mim, era apenas uma palavra inusual, pouco sonora.
Era, porque isso mudou.
Antes de explicar por que, gostaria de voltar à última eleição presidencial.
14 de setembro de 2010, terça-feira, Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, RJ. A duas semanas do primeiro turno, Monica Serra, acompanhada de Índio da Costa (na época, DEM, hoje PSD), vice do seu marido, José Serra (PSDB), dá a senha para um dos lances mais sórdidos da campanha passada, além de ter protagonizado o mais hipócrita de todos.
A um eleitor evangélico, que citava Jesus Cristo como o “único homem que prestou no mundo” e declarou voto em Dilma, Monica disse que a petista era a favor do aborto. Ao vendedor ambulante Edgar da Silva, de 73 anos, assegurou: “Ela [Dilma] é a favor de matar as criancinhas”.
Em entrevista de 2009, Dilma afirmara ser favorável à descriminalização do aborto, procedimento médico permitido no Brasil em casos de estupro e risco à vida da mãe, desde o Código Penal de 1940.
Em maio de 2010, a ainda pré-candidata do PT à Presidência da República declarou: “Um governo não tem de ser a favor ou contra o aborto. Tem que ser a favor de uma política pública. Aborto não é questão de foro íntimo meu, seu, da Igreja, de quem quer que seja; é uma questão de saúde pública”.
Aí, numa manobra de má-fé dos seus adversários, o aborto virou o foco principal da campanha de 2010, e a religião passou a ser, inescrupulosamente, manipulada.
Para manter os dedos, Dilma teve de dar os anéis. Após se reunir com segmentos religiosos, divulgou, em 15 de outubro de 2010, a chamada Mensagem de Dilma. Tinha seis itens, dois deles, o segundo e o terceiro, referiam-se explicitamente ao aborto:
26 de dezembro de 2011, segunda-feira, Brasília, DF. A presidenta Dilma Rousseff baixa a MP 557. Assinam-na também os ministros da Saúde (Alexandre Padilha), Guido Mantega (Fazenda) e Miriam Belchior (Planejamento).
Uma palavra me soou estranha naquele contexto: nascituro. Estava lá bem no final da MP, no artigo 19 J, como quem não quer nada. Embora eu seja repórter especializada em saúde há 30 anos, eu ainda não a tinha visto em documentos do Ministério da Saúde sobre saúde da mulher, saúde materna e mortalidade materna.
Porém, feministas históricas, como Fátima Oliveira, Beatriz Galli, Maria José Rosado e Sônia Correa, mataram a charada, de primeira, e alertaram: o nascituro estava ali de contrabando.
Beatriz Galli, integrante das comissões de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio Janeiro (OAB-RJ), denunciou:
“A garantia de direitos ao nascituro vai flagrantemente contra a Constituição de 1988, é inconstitucional. A MP 557, ao igualar os direitos da mulher gestante aos do nascituro reduz ou dilui os direitos da mãe, como o direito à liberdade, já que ela terá a sua gravidez registrada e supervisionada ou vigiada para cumprir os dispositivos da Medida Provisória”.
“Pela MP 557, a rigor a mulher terá a ‘obrigação’ legalmente imposta de ter todos os filhos gerados já que estaria sendo monitorada pelo Estado para tal finalidade. Viola-se, assim, o direito à igualdade previsto na Constituição Federal, pois somente as mulheres engravidam e podem gerar filhos”.
A Rede Feminista de Saúde – única articulação nacional de grupos e mulheres feministas, específica para a área da saúde e com assento no Conselho Nacional de Saúde – foi taxativa:
“A inserção do nascituro, admitindo direitos de cidadania a uma expectativa de cidadão, é uma anomalia e inconstitucionalidade. E a cidadã real e existente torna-se refém do serviço de saúde e/ou da polícia”.
A CUT (Central Única dos Trabalhadores) foi fundo:
“Ao introduzir a figura do nascituro, que não existe fora do corpo da gestante, como portador de direitos, a MP 557/2011 abre precedente, principalmente, para influência de algumas correntes religiosas e de setores conservadores”.
Desde os primeiros dias após a edição dessa Medida Provisória, a médica e feminista Fátima Oliveira bate nesta tecla: “O objetivo da MP 557 é o nascituro, foi feita para reconhecê-lo”.
Seria mesmo essa a intenção?
Ao assinar a MP, a presidenta Dilma saberia de todas as implicações do termo nascituro?
O ministro da Saúde também?
Padilha teria alertado a presidenta sobre a conexão nascituro-Igreja Católica- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)?
Ou o nascituro seria “obra” de algum assessor esperto na calada da noite e o ministro a desconheceria até a publicação da MP?
Ou seria a versão materno-infantil da mesma falta de assessoria que levou Padilha à infeliz parceria com a rede McDonald’s, depois rejeitada como “filho feio que não tem pai”?
Essas e outras dúvidas ferviam na minha cabeça quando da entrevista que o doutor Fausto Pereira dos Santos, assessor de ministro Padilha, concedeu ao Viomundo, publicada em 10 de janeiro. Tanto que abordei a questão do nascituro em dois momentos.
Um deles foi no meio da entrevista:
O segundo, no final da entrevista:
A partir dessa entrevista, não tive dúvidas: a MP foi gestada no Ministério da Saúde e o nascituro é seu “filho”, ainda que possa ter “padrinhos” e/ou “madrinhas” no Palácio do Planalto.
A assessoria de imprensa do Ministério da Saúde acompanhou toda a entrevista que esta repórter fez com o assessor do ministro Padilha. Depois, monitorou todos os e-mails que trocamos.
A assessoria não desmentiu as informações do doutor Fausto Pereira, publicadas na madrugada do dia 10 de janeiro.
Tampouco o ministro Padilha fez qualquer correção ao que disse o seu assessor especial no e-mail que nos mandou aos 11 minutos do dia 11 de janeiro e publicamos ainda naquela madrugada.
– Mas o que tem a ver a campanha presidencial de 2010 com MP 557? – alguns devem estar cobrando. – E com o nascituro?
Calma. Antes, gostaria de compartilhar com vocês outras dúvidas que me ocorreram imediatamente após a entrevista com o doutor Fausto e a reação do ministro à pergunta que fiz sobre a sua religião, a pedido de vários leitores do Viomundo em comentários nas matérias sobre a MP 557.
Se a intenção era dizer uma coisa e a MP acabou dizendo outra, por que o Ministério da Saúde não poderia corrigir o erro e editar uma nova Medida Provisória, retirando o nascituro?
Repito. Na entrevista como assessor do ministro Padilha publicada em 10 de janeiro pelo Viomundo, eu perguntei se em função da polêmica gerada pela inclusão do nascituro, o Ministério da Saúde ia manter ou cogitava tirá-lo da MP 557. Ele respondeu: “A medida provisória já está tramitando no Congresso Nacional, local onde pode haver essa discussão”.
Por que o assessor do Ministério da Saúde disse ao Viomundo que a ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas Especiais para Mulheres, tinha visto a minuta da MP, quando, na verdade, ela nos assegurou que não participou de nada?
Por que até hoje o Ministério da Saúde não desmentiu a ministra Iriny Lopes?
Por que nenhuma entidade dos movimentos de mulheres foi convidada para discutir a elaboração da MP, embora tenha circulado nas redes sociais a informação enganosa de que a Rede Feminista de Saúde teria participado das negociações e dado o seu aval?
Seria por que as entidades feministas e a ministra Iriny Lopes descobririam no ato o contrabando embutido e chiariam?
Por que o ministro Padilha não levou a MP para ser debatida na reunião do Conselho Nacional de Saúde (CNS), de 14 e 15 de dezembro, já que ele é seu presidente, lá estão representados todos os segmentos da sociedade e o assunto é tão importante?
Curiosidade: o item 2 da pauta do dia 14 do CNS era o “Balanço do mês na saúde: Saúde Integral da Mulher”, apresentado pela doutora Maria Esther de Albuquerque Vilela, coordenadora Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde.
– Mas, afinal, o que tem a ver a campanha presidencial de 2010 com a MP 557? – vários devem ter voltado à carga. — E com o nascituro?
Ontem, 27 de janeiro, fez um mês que a MP 557 foi publicada. Ironicamente, ontem também saiu uma correção da MP, retirando o nascituro.
– Besteira…Questão de semântica — alguns leitores devem ter contestado, enquanto outros menosprezam-no – Apenas um termo mais forte…
Não e não. O uso do termo não foi um cochilo na redação, mas algo intencional, estrategicamente bem pensado. E a intenção da MP 557 era o nascituro.
Até porque a MP 557 “não resolve o problema da mortalidade materna; tudo o que ela cria ou normatiza já existe no Ministério da Saúde”, observa o kit anti-MP 557, elaborado por Gilda Cabral, do Cfemea, e entregue ao ministro, na reunião dessa quarta-feira, 25 de janeiro, do Conselho Nacional de Saúde, em Brasília. “Ela é totalmente desnecessária”.
Exceto por um detalhe: o nascituro.
Diante desse quadro, uma das possibilidades para a inserção do nascituro como sujeito autônomo na MP talvez tenha a ver com acordos políticos com os setores religiosos mais conservadores durante a campanha presidencial de 2010.
Alguém teve a “brilhante” ideia de colocar no papel, agora já com a assinatura da presidenta Dilma, o que a então candidata havia prometido na eleição: não descriminalizar o aborto no Brasil. E já que estava com a mão na massa, aproveitou para ir um pouco mais longe, abrindo caminho para impedir o aborto nos casos de anencefalia, que está para ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF), e talvez, mais no futuro, até a proibição de todo tipo de aborto no Brasil.
– Como? Qual a mágica?
Enfiando, de contrabando, o nascituro em documento oficial da Presidência da República. Sem mexer diretamente na legislação referente ao aborto, sacramentaria o nascituro, o que serviria de combustível para a sua proibição em casos de anencefalia e, quem sabe mais adiante, ensejar campanha para sua proibição, mesmo nos casos em que a lei brasileira já autoriza desde 1940.
Nascituro a rigor seria o que está prestes a nascer, logo um feto. Todavia os chamados grupos “pro-life”, consideram nascituro embriões e fetos. Nos Estados Unidos, o Dia do Nascituro foi instituído, em 2004, pelo então presidente George W. Bush. Lá e em alguns outros países, como Argentina, Chile, Peru, Costa Rica, Guatemala e Nicarágua, é comemorado em 25 de março, Dia da Anunciação de Maria.
Segundo o Portal da Família, 25 de março
“foi escolhido porque nele é celebrado (sic) a Anunciação: a notícia, levada pelo Arcanjo Gabriel a Maria, de que Deus a havia escolhido para ser mãe do Redentor. O que leva consigo a proteção do nascituro desde o momento da concepção”.
Em 1999, o então deputado federal Severino Cavalcanti (PP/PE) apresentou o projeto de lei nº 947/1999, instituindo o “Dia do Nascituro, a ser festejado no dia 25 de março de cada ano”. O projeto, atualmente tramitando na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), já recebeu um parecer favorável, mas ainda não foi oficializado.
Porém, a 43ª Assembleia Geral da CNBB, realizada em Itaici, de 9 a 17 de agosto de 2005, definiu o dia 8 de outubro como o dia do Nascituro.
Segundo o Portal da Família , o motivo desse dia do nascituro é
“porque muitos nem terão direito a conviver com sua mãe, por pouco que seja, vítimas que serão de experimentos dito “científicos” de clonagem, ou serão “congelados”, alguns até destruídos, enquanto ficam à espera de que sua mãe aceite recebe-los (sic) em sua barriga”.
No artigo “Pena de Morte para o Nascituro”, publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, em 1997 e republicado em vários sites católicos, o jurista Ives Gandra da Silva Martins, conhecido por suas posições ultraconservadoras, afirma:
“Todos os seres humanos são seres humanos desde a concepção. Nesse momento, todos os seus componentes biológicos e psicológicos estão formados, tendo os defensores do aborto, desde a concepção, seu perfil atual delineado”.
“Dessa forma, o denominado aborto legal – que desde 1988 não é mais legal – nada mais é do que uma pena de morte imposta ao ser humano quando ainda vive no ventre materno”.
– Afinal, então o que é o nascituro?
É um feto, mas os chamados “pró-vida” consideram como nascituro desde o instante em que o espermatozóide fecunda o óvulo. Ou seja, quem defende os direitos do nascituro é contra, por exemplo, as pesquisas com células tronco-embrionárias, que representam a esperança para a cura de várias doenças ainda incuráveis, como mal de Parkinson, diabetes, doenças neuromusculares e seção da medula espinhal por acidentes e armas de fogo
– Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) já aprovou as pesquisas com células tronco-embrionárias no Brasil!!!
Aprovou, sim, numa votação histórica em maio de 2008, mas contra a vontade dos setores fundamentalistas da Igreja Católica. Aliás, quem defendeu a posição da igreja no STF foi justamente Ives Gandra Martins, que é da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, que, por sua vez, integra o Human Life Internacional — Pro-Life Missionaires to the World.
É só fazer uma pesquisa no Google, irá descobrir isso.
“O nascituro aparece normalmente em sites e textos relacionados à Igreja Católica”, alertou-me NaMaria, do blog NaMariaNews. “Veja como em 2011 dom Luiz Bergonzini e a CNBB comemoraram o dia do Nascituro!”
Fonte: Viomundo