Pelo sonho de cursar medicina, Elaine Pereira da Silva superou pobreza, racismo e uma lesão cerebral que causou até infantilidade mental
Pérola Negra – História de um Caminho conta a trajetória de Elaine Pereira da Silva, que, apesar da pobreza, sonhava em ser médica. Para tanto, começou a trabalhar aos 14 anos, enfrentou o preconceito e lutou contra uma lesão cerebral que causou vários danos, depois revertidos. O resultado desse esforço é essa obra impactante, que pode render um documentário. O projeto do longa-metragem foi aprovado pelo Ministério da Cultura para captação de recursos por meio da Lei Rouanet e depende agora do interesse de patrocinadores para ganhar as telonas. Confira alguns trechos do livro:
“Mamãe trabalhava como empregada doméstica e papai era pedreiro. (…) Não tínhamos o que comer. (…) No inverno de 1969, o frio foi muito intenso. Meus parcos agasalhos eram insuficientes. Num dos dias, passei tanto frio na rua que fiquei com o corpinho literalmente roxo.(…) Algo que muito me envergonhava, mas era obrigada a fazer frequentemente, era pedir dinheiro emprestado para as vizinhas, para comprar gás e comida.”
“Eu soube definitivamente: ‘quero ser médica’. Entretanto, eu já sabia que não tinha, então, nenhuma condição de aprovação nesse vestibular concorridíssimo. Não havia como pagar. Ao final daquele ano, 81, pensei em outro curso. (…) Optei por biologia. (…) Iniciei o curso de ciências no início de 82. Mas meu sonho era fazer medicina…”
“Finalmente, em junho de 1981, eu comecei a trabalhar no Hospital Municipal, das 10 h às 16 h. É claro que, dentre os 200 escriturários que foram aprovados na seleção, poucos eram negros. Eram pré-requisitos o primeiro grau e datilografia. Olharam bem pra minha carinha e me escalaram… para a lavanderia. (…) Ao iniciar meu trabalho na lavanderia, era muito fechada pela timidez excessiva.”
“Chegava ao refeitório do hospital com minha extrema timidez, complexada por me sentir feia, negra e pobre. Como se isso fosse um crime. Sentava-me num canto, comia envergonhada. Como se pedisse desculpas por só ter pão com maionese para comer. Comia cabisbaixa.”
“Mamãe estava muito feliz por eu ter entrado na Faculdade de Medicina da Unicamp, em 1989. Paralelamente a isto, havia uma grande preocupação: como custear minha vida em outra cidade?”
“Eu estava com bradicardia, ou seja, coração muito lento. Havia o risco de morte iminente. Foi feita uma tomografia computadorizada da minha cabeça. Ela mostrou uma hipertensão intracraniana monstruosa. (… ) Avisaram à minha família que eu estava sendo submetida a uma neurocirurgia.”
“Saí da UTI tão lesada que ignorava a morte de mamãe, três anos antes. Eu involuí. Tinha 30 anos, mas pensava e agia como uma criança de 3. (…) Era neurocisticercose (doença do verme da carne de porco, na cabeça). A lesão cerebral que tive causou-me três sequelas. Além da infantilidade mental, fiquei com mais sono do que já tinha e perdi, por anos, a memória recente. (…) Após a lesão, comecei a reaprender o mundo.”
“No início de junho, eu consigo um trabalho. Finalmente. Foi na Prefeitura de Campinas, mas ainda como contratada. Ainda não haviam chamado os concursados. Trabalhei quase o mês todo, após passar pelo exame médico. Não escondi nada. Tudo que o médico perguntou eu respondi verdadeiramente. Minha doença estava lá e o médico me aprovou. Aleluia! Enfim, iria comer com o suor do meu rosto.”
“Começaram a chamar os formandos para, um a um, buscar seu diploma na mesa central. (…) Até a letra D, eu fiquei tranquila. Quando começou a letra E, parei de rir. Fiquei muito tensa. O coração disparou. Quando ouvi meu nome, levantei-me séria. Ajudaram-me a descer o degrau – era alto. Quando comecei a caminhar até a mesa, rompi em prantos. Soluçava um choro tantas vezes contido. Tudo o que eu trazia de dor, de mágoa, do suor desta vitória eu fui derramando pelo rosto. (…) Meu diploma vinha pingando sangue, suor e lágrimas.”
“O que eu fiz depois não foi para provocar mais aplausos. Eles foram consequência. De posse da pasta contendo meu diploma, parei em frente à plateia e ergui a pasta ao máximo. Era para minha mãezinha ver melhor, do céu, que sua filhinha conquistara o sonho de criança. Era médica na Terra. Depois, fui para o meu lugar. (…) A cerimônia terminou por volta das 14 horas. Fui a última formanda a deixar o local. Havia muita gente pra me abraçar. Compareceram amigos, colegas, vizinhos, docentes, alunos. Todos querendo ver o que pareceu impossível muitos anos atrás.”