Se hoje é comum vermos personalidades como Maju Coutinho, Flávia Oliveira, Iza e Rebeca Andrade fazendo sucesso na televisão e nas redes sociais, nas décadas de 1980 e 1990 as coisas eram bem diferentes. Nascida em 1981, em Salvador, a artista Íldima Lima cresceu em um ambiente onde o padrão de beleza estava intimamente entrelaçado à branquitude e à es- tética ocidental europeia. “Eu via que as figuras de destaque que emanavam poder e influência não tinham o meu tom de pele ou o meu cabelo”, recorda. “Um grande exemplo disso era a Xuxa: eu queria ser paquita, mas não tinha a menor condição. Eu não era loira nem branca, não tinha olhos claros e muito menos cabelo liso.”
A falta de valorização da estética negra tomava conta não só da mídia, mas também de esferas menores, como a familiar. Convivendo com mulheres negras cujos fios eram alisados, o sonho de Íldima durante a infância e adolescência era usar ferro quente ou se submeter a um procedimento químico para se livrar dos cachos. “Eu precisava me arrumar para ir à escola, e o cabelo crespo era atrelado a algo sujo e bagunçado — até para mim, porque ele não me permitia me sentir bonita. Eu já era preta, então precisava, pelo menos, dar um jeito no cabelo”, lembra.
Mas a visão de Íldima mudou e hoje, aos 39 anos, ela passa pela transição capilar. Já há quatro anos nesse processo, ela está confiante e não se incomoda com o que as outras vão pensar sobre seus fios naturais. “Não estou fazendo isso para entrar em um padrão construído socialmente, e sim porque me sinto bem ao reconhecer os meus traços ancestrais, ver beleza neles e conseguir valorizar o que é biologicamente pertinente a mulheres negras como eu”, diz a artista, que é fundadora da marca autoral illi – arte afetiva, que produz pinturas, cerâmicas e estampas.
Essa mudança de atitude se reflete no mais recente projeto de Lima, a exposição Negras Cabeças, disponível no site negrascabecas.art. A baiana apresenta pinturas feitas com aquarela e tinta acrílica em homenagem a culturas de diferentes etnias da África, buscando exaltar a ancestralidade e a riqueza dos penteados e adornos utilizados pelas mulheres pretas. O objetivo é abandonar a imagem estereotipada e negativa muito presente nas artes ao longo da história: a mulher negra sempre aparece desumanizada, desprovida de essência e sem nome, sendo identificada como “a negra” ou “a filha da negra” (e isso quando sua figura não é comple- tamente apagada). “É como se fosse somente uma massa e não houvesse uma cultura por trás daquele tom de pele. A história das pessoas negras é reduzida à escravidão, sendo que, na verdade, a grande densidade cultural do povo preto está justamente no período anterior a esse processo de violência”, observa Íldima. Por isso, as telas da artista rejeitam a perspectiva objetificada, propondo um protagonismo de mulheres que constroem as próprias narrativas.
Além de carregar o papel social de ressignificar a imagem das mulheres pretas nas artes, Negras Cabeças tem um grande valor pessoal: trata-se da primeira exposição individual de Íldima, que iniciou a carreira artística em 2017, após 12 anos atuando no mercado de Relações Públicas. O principal impulso para que ela desenvolvesse a exibição foram estudos sobre representação e representatividade da mulher negra na arte, resgate da ancestralidade e riqueza cultural. “Uma fotografia de uma mulher da etnia Betsimisaraka me chamou a atenção pela forma como ela organizava o cabelo. Não era puramente estética, tinha uma mensagem a ser transmitida de acordo com a maneira como o penteado estava estruturado”, conta. E assim nasceu a primeira pintura da mostra.
Abrindo a exposição, Mulher Betsimisaraka faz referência a uma cultura de Madagascar na qual os penteados permitem a identificação de hierarquia, idade e estado civil. Já a obra Mwila, que representa um povo da Angola, mostra um penteado que lembra dreadlocks. A quantidade de tranças (chamadas de nontombis) transmite mensagens específicas — três nontombis na cabeça de uma mulher ou de uma menina significam que houve alguma morte na família.
Negras Cabeças também apresenta as etnias Mangbetu (Congo), Suri e Mursi (Etiópia), Mbalantu (Angola), Himba (Namíbia/ Angola) e Fulani (Senegal), explorando penteados que expressam de reverência ao luto a posições sociais.
Tecnologia aliada à arte
Tudo isso o espectador pode conhecer a partir de uma plataforma gamificada. Em vez de reproduzir um espaço físico já existente, como uma galeria comum ou um museu, Íldima decidiu criar ambientes que correspondessem à realidade das etnias. Por isso, foram desenhados três locais com os biomas floresta tropical, savana e semiárido desértico.
Para a artista, reproduzir modelos convencionais de outras exposições em formato de jogo seria equivalente a retirar as mulheres retratadas de seus contextos originais. “Me daria a sensação de uma nova forma de violência, assim como foi a colonização europeia”, reflete.
Apaixonada por games desde pequena, Íldima se deparou com o desafio de garantir uma experiência imersiva diante da pandemia de Covid-19. Ela decidiu ultrapassar fronteiras do universo gamificado, que emprega somente a mecânica de movimentação (walking simulation), e optou por trazer elementos específicos da natureza, composições de cenário características de cada etnia e trilhas sonoras exclusivas pensadas para as oito culturas, misturando aspectos tradicionais e contemporâneos.
Mais do que admirar as telas, o público é convidado a compreender, com auxílio das explicações que acompanham as pinturas, os conceitos que sustentam os penteados e os adornos. Dessa forma, a artista espera perpetuar a história e a inteligência dessas culturas, humanizando esses ancestrais. “A oralidade na transmissão das mensagens funcionava para aqueles povos, mas era preciso ter um código visual que transmitisse informações sem nada ser dito. Há uma fonte de conhecimento e produção tecnológica naquele contexto que precisa ser reconhecida”, constata Íldima.
Por trás de Negras Cabeças
O projeto inteiro foi feito em seis meses, período determinado pelo edital da Lei Aldir Blanc, que contemplou a exposição. Esboços, pesquisa das etnias, estudo isolado dos elementos retratados, definição da paleta de cores, elaboração das pinturas… Todas essas tarefas, somadas ao layout digital e à trilha sonora, resultaram em um trabalho bastante intenso.
Embora a lista de atividades fosse extensa e complexa, a etapa mais difícil para Íldima foi a da curadoria. Originalmente, haviam sido selecionadas 23 etnias, mas, em decorrência dos recursos e do tempo disponível, esse número foi reduzido para oito a partir de um critério de diferenciação.
A prioridade era colocar pinturas que o espectador pudesse distinguir de imediato. Isso porque há etnias que são visualmente similares quanto a penteados e adornos. As mulheres himba, por exemplo, pintam a pele com ocre e gordura animal, o que dá um tom avermelhado, e organizam o cabelo com matéria orgânica e barro, como se fossem dreadlocks. As hamer também fazem esse tipo de pintura (embora não fique tão evidente quanto a das himba) e usam o cabelo encaracolado. “Observei que, na internet, tem gente que mistura as coisas e considera a mesma etnia, mas não é. Como pensei que os elementos presentes nas himba despertariam um interesse maior das pessoas em um primeiro momento, privilegiei essa cultura”, comenta Íldima.
Para a baiana, a exposição representa um momento importante como mulher negra. “Antes, eu sentia que reverenciava minha ancestralidade por honrar a minha família e, com o trabalho na illi, percebi o quão fundamental é reconhecer e valorizar, em uma perspectiva mais ampla, todas as mulheres negras que pavimentaram o caminho para que eu possa fazer o meu trabalho hoje”, afirma.
Agora, o desejo de Íldima é contribuir para essa continuidade e, ao exaltar pretas como referências, impactar positivamente a vida de meninas negras. “Quanto mais a gente vê pessoas ocupando espaços de visibilidade em diferentes áreas e mantendo suas características fenotípicas, como nariz mais alargado, boca carnuda e cabelo crespo, mais é transmitida a mensagem de que é possível estar naquele lugar sem sofrer uma intervenção que tire o que lhe pertence”, analisa.
Negras Cabeças permanece online até o dia 30 de dezembro de 2021, e a artista promete que esse é apenas o começo. Dividida em três fases, a iniciativa conta com dois estágios que ainda estão em desenvolvimento e não têm data de lançamento, mas cujo propósito está definido: inspirar. “Vejo a arte e a estética como uma ferramenta de transformação partindo do que nos foi negado, de nos olharmos no espelho e nos sentirmos admiradas, bonitas e capazes”, diz Íldima. “Gostaria de ser uma espécie de centelha. Não tenho o poder de transformar as pessoas, mas tenho o poder de, a partir do que eu faço, provocá-las a se posicionarem em uma luta antirracista e fazer com que elas pesquisem, se conectem com essa herança ancestral e se sintam valorizadas.”