Analiso aqui dois livros recém-lançados, ambos de escritoras negras: Filha do Fogo, de 2020 e Yõnu, 2019, de Elizandra Souza e Raquel Almeida, respectivamente. Ambos publicados por selos editoriais independentes e periféricos criados pelas próprias autoras. As duas são poetas e vivem a inédita experiência de publicar um livro dedicado exclusivamente à prosa, no caso ao conto. As autoras são da mesma geração; nasceram nos anos 1980 e são de família nordestina. Raquel é de Pirituba, Zona Oeste e Elizandra é do Grajaú, Zona Sul de São Paulo. Ambas se iniciaram no candomblé recentemente e seus livros são carregados da espiritualidade que emana das religiões de matriz africana.
Raquel e Elizandra engajaram-se no movimento cultural periférico antes da consolidação das redes sociais, fenômeno que explodiu na segunda década deste século. São anteriores, portanto, ao feminismo negro contemporâneo que é protagonizado pela geração tombamento e que discute questões como apropriação cultural, afrofuturismo, lugar de fala e o colorismo em calorosos debates na Internet. A vinculação de ambas com o movimento negro de mulheres está mais associada às lutas do final do século passado que desaguaram na Conferência de Durban em 20011. Não me consta, porém, que as autoras sejam militantes orgânicas do feminismo negro. Percebi na leitura dos contos um feminismo que se expressa menos em bandeiras políticas e mais na sororidade que é a solidariedade e o cuidado das mulheres umas com as outras.
A dimensão de gênero, porém, articula a afirmação da negritude e a religiosidade formando a estrutura de sentimento2 que identifiquei na leitura conjunta das obras. Essa observação se dá à luz da tradição do feminismo negro que lá em Durban consagrou a abordagem interseccional do racismo: gênero, classe e raça. Uma concepção já defendida por Angela Davis nos Estados Unidos na década de 1970, assim como no Brasil na mesma época, por Lélia Gonzales, mas que foi nomeada na década seguinte pela advogada e ativista dos direitos civis estadunidense Kimberlé Crenshaw3. Negritude, sororidade e afro-religiosidade são, portanto, as palavras-chave para a leitura dos livros aqui analisados.
Elizandra Souza
Filha do Fogo – 12 contos de amor e cura, foi publicado em 2020 pelo Selo Mjiba criado pela própria autora em 2012 por ocasião da publicação do seu último livro solo, Águas da Cabaça. Com formato 13 x 20 e 93 páginas, o livro tem projeto gráfico de Silvana Martins, a Sil. A capa e as ilustrações são de Vanessa Ferreira. A pesquisadora Mirian Cristina dos Santos assina o prefácio e a atriz Cristiane Sobral o texto da orelha. Na contracapa há um trecho do Itan de Ésú Iná e Sangô, anunciando a conexão com a mitologia dos orixás decorrente da iniciação da autora no Candomblé em 2017.
Nascida em 1983, Elizandra é ativista cultural há 20 anos. Iniciou sua atuação nas letras por meio de um fanzine chamado Mjiba, nome que passou a ser sua assinatura artística e mesmo pessoal, a ponto de ser chamada, muitas vezes, de Elizandra Mjiba. Essa alcunha originária do Zimbabue, quer dizer Jovem Mulher Revolucionária. Seu primeiro livro, Punga é uma obra em dois volumes contrapostos em parceria com o poeta Akins Kinté e foi publicado em 2007 pela Edições Toró. Participou de inúmeras coletâneas e editou uma: Pretextos de Mulheres Negras, segundo volume de seu selo editorial. É jornalista, poeta, editora, educadora e tem dado palestras no Brasil e no exterior, especialmente nos Estados Unidos onde esteve por duas vezes recentemente.
Raquel Almeida
Publicado em 2019, Yõnu é um dos títulos mais recentes da Elo da Corrente Edições, selo ligado ao Sarau de mesmo nome que foi criado por ela e Michel Yakini em 2007. O livro tem formato 21 x 12,5 e 129 páginas e, assim como a obra de Elizandra, contém 12 contos. O projeto gráfico é de Carol Zeferino e a capa é da Carolzinha Itzá. Sarah Soanirina Ohmer, da Universidade de Nova York faz o prefácio que tem versão em inglês, assim como os contos Nochê e Amondi, todos traduzidos pela arquiteta Charô Nunes, ativista do Blogueiras Negras e que também assina o texto de orelha. Esse aspecto se explica pelo fato da autora ter divulgado a obra nos Estados Unidos onde participou de debates. O livro também tem uma identidade visual vinculada à estética do candomblé, no qual se iniciou em 2018.
A carreira artística de Raquel começou em 2005 como cantora de RAP. Dois anos depois, com 20 anos criou o Sarau Elo da Corrente e publicou seu primeiro texto: Minha Cor, no Cadernos Negros – volume 30 (Quilombhoje). No ano seguinte lançou seu primeiro livro Duas Gerações, sobrevivendo no gueto em parceria com Soninha M.A.Z.O, ativista do mesmo movimento cultural da Zona Oeste de São Paulo. No ano de 2014 publicou Sagrado Sopro, seu primeiro livro solo que contém somente poesia. As duas obras saíram pela Elo da Corrente, porém sem que fosse denominada como Selo Editorial como é atualmente. Raquel é arte-educadora, sambista e editora.
Filha do Fogo
Antes de publicar essa obra toda dedicada ao conto, Elizandra fez sua estreia no gênero no volume 30 do Cadernos Negros em 2007 (Quilombhoje ) e continuou publicando nos volumes seguintes até o ano de 2013 (volume 36). Todos os contos publicados nessa coleção foram aproveitados no livro: Afagos (2007); Disritmia (2009); Antes que as águas da cabaça sequem (2011) e Com Tradição (2013). Elizandra também trouxe para seu livro o conto A primeira vez que fui ao céu publicado originalmente na coletânea infantojuvenil Um segredo no céu da boca em 2008 (Edições Toró). Esse texto, inclusive, foi adaptado para o cinema pela lente de Renato Cândido no ano de 2017 em formato curta-metragem (18’) no qual passou a se chamar Dara –a primeira vez que fui ao céu. Ou seja, a autora já tinha quase a metade dos textos prontos, fazendo de Filha do Fogo uma obra que já nasce madura com escritos que tiveram boa aceitação do público, estratégia que denota a sensibilidade aguçada de Elizandra também como editora.
Os doze contos de Elizandra se agrupam em três blocos, como sugere Cristiane Sobral no texto de apresentação. Porém, fiz uma distribuição um pouquinho diferente. Reconheci um conjunto de textos que se articulam no tema da infância (Filha do Fogo; A primeira vez que fui ao céu e Dona da Cumbuca). Um outro bloco, o mais importante, reúne os escritos que tem como tema central a afirmação da negritude (Disritmia; Afago; Antes que as águas da cabaça sequem; As sete calcinhas de Jandira e Quando a lua não está cheia, as estrelas ficam ainda mais brilhantes). Por fim, há um conjunto de contos que tratam das relações amorosas. Com exceção do bloco da infância, a classificação de Sobral difere da minha nos demais.
Cristiane classifica um bloco de textos como feministas. A observação faz sentido na medida em que a afirmação da negritude está associada à dimensão de gênero, mas achei que Elizandra não chega a uma elaboração que nos permita agrupá-los com essa identificação. O outro grupo temático que ela aponta é da espiritualidade. Esse eu não reconheci como centralidade temática. Só há um texto sobre religiosidade (N’anga), fato que me surpreendeu. É verdade, porém, que o conto Dona da Cumbuca, que está no bloco da Infância tem forte apelo religioso, mas o núcleo da história não está focado na crença e sim na dimensão cultural de uma devoção religiosa. Mas a espiritualidade atravessa toda a obra e não só nos textos, cuja narrativa acentua esse componente. Cabe ressaltar também a iconografia que corrobora a dimensão espiritual e é fundamental para fruir e interpretar o livro. O mesmo se pode dizer do feminismo que não aparece como tese ou uma bandeira política, mas está presente na arquitetura dos textos.
Filha do Fogo, conto que dá título e abre o livro está no bloco da Infância. Um belo texto que discorre sobre a lembrança de quando era menina e gostava de ficar junto ao fogão de lenha da avó. As labaredas fascinavam a criança, bem como a culinária e a lida na roça. Quando ela, ainda com sete anos, arriscou-se com sucesso a acender o fogão, sentiu-se batizada: filha do fogo. A primeira vez que fui ao céu também é um texto baseado em memórias da infância. A narrativa vai revelando aos poucos a construção de sua “nave”, um balanço feito com muito esmero por seu avô e que ficava preso ao galho de um frondoso cajueiro. Por fim, Dona da cumbuca fala de Jani, uma menina de sete anos que mora em uma pequena cidade de algum recanto, provavelmente no interior da Bahia. Discorre sobre a excitação das crianças em torno de uma senhora negra que vivia numa casa, em cujo pavimento superior se ouvia uns tambores que tocavam intensamente. No final é revelado o motivo de toda aquela animação das crianças: era dia de Cosme Damião. Doces e muito caruru eram servidos por aquela generosa senhora que é uma Yalorixá.
O grupo de contos que tratam da afirmação da negritude começa com Afagos, um texto publicado há 13 anos. A história começa na infância e vai até a juventude adulta tendo a relação com o cabelo como fio condutor de uma reflexão sobre reconhecimento e afirmação racial. Dois traumas na infância, sendo um deles um bullying racista, fez Dara alisar os cabelos. Ao conhecer Jawari, um jovem e belo rapaz negro com quem passou a namorar, foi estimulada a deixar os cabelos crespos novamente. A paixão pelo rapaz veio junto com a paixão por si mesma. Antes que as águas da cabaça sequemconta a história de Zahra e sua busca por afirmação por meio dos dreads que introduziu em seu cabelo. Segue uma tradição que veio da mãe e passou para a filha Nina. A história tem dois planos narrativos. Um é o de Zahra e o outro é de uma mitologia que fala de uma mulher que recolheu água da Represa Billings e a colocou numa cabaça furada. O líquido era precioso e não poderia se perder. A mulher então tapou o furo da cabaça com um de seus dreads e seguiu sua missão.
Quando a lua não está cheia as estrelas ficam mais brilhantes trata do ressentimento de uma jovem jornalista negra chamada Jamillah, cuja admiração por uma cantora também negra de nome Zael Swahili, foi confundido como oportunismo para pleitear emprego de vendedora na loja que a tal cantora de sucesso mantinha no centro de São Paulo. Quem criou a confusão foi a assessora de imprensa da cantora. A jovem fã, depois de um tempo afastada da loja da qual havia se tornado frequentadora, retorna ao local e esnoba um convite da própria cantora para ser sua assessora, já que a sua funcionária passará um tempo fora do país. Redimida, Jamillah relembra um provérbio africano que é o título do conto.
Disrtmia é umconto muito bem escrito no qual Zaji, uma jovem em meio a um transe, faz uma reflexão sobre sua dificuldade em dançar o que denota uma incapacidade crônica de lidar com um corpo desprovido de prazer: não dançava, não jogava, não andava de bicicleta, não amava. Superou o trauma quando alcançou seus 30 anos. As sete calcinhas de Jandira, narra a história de Jandira, uma menina que tinha fixação por calcinhas e mantinha sua gaveta sempre organizada como se fosse um relicário. A obsessão a acompanhou até a juventude quando ingressou na faculdade para fazer o curso de moda. Aos 24 anos, fez do gosto por calcinhas o tema de seu trabalho de conclusão de curso criando sua própria linha de peças íntimas. Ao anunciar o desfile revelou o motivo que a levou a gostar tanto de lingeries: um trauma de infância.
Finalmente, nos três contos de amor, a autora em diferentes abordagens, discorre de forma crítica, as vezes ressentida, as vezes irônica sobre os homens, seus encantos e contradições. Muita trovoada é sinal de pouca chuva é um divertido conto, cuja narrativa é estruturada com provérbios e ditos populares como os do título, no qual ela relata o envolvimento com um homem negro, bonito e inteligente, porém, prolixo. O sujeito era machista e presunçoso e deixou a garota na mão num segundo encontro em que gozou precocemente e dormiu. A garota abandonou o garanhão na cama do motel.
Com tradição é uma história da vida dupla que um importante militante do movimento negro mantinha com a antropóloga Jasira, sua esposa oficial e a poeta Zuzu, sua amante. Teve filhos com ambas e na mesma época. Escondeu o quanto pode a traição. Padeceu num leito de hospital vitimado por um câncer na garganta. O título do conto faz um trocadilho com a palavra contradição, cujo efeito tem melhor resultado na fala e não na escrita. Ensaio sobre nós três trata de um outro triângulo amoroso, porém, consentido como um delicioso jogo de prazer e sedução mútuo entre um homem negro já perto dos 40 com duas belas mulheres negras de 30 anos. Uma história de homens e mulheres independentes, solteiros, maduros que buscam o prazer e reconhecem que toda forma de amor vale a pena.
Yônu
Todos os contos do livro de Raquel Almeida têm a mulher no centro das histórias justificando, assim, o título da obra. Salvo engano, todos os contos são inéditos. Assim como Elizandra, Raquel estreou na prosa com um conto no Cadernos Negros, aliás, estrearam juntas. Foi no mesmo volume 30, de 2007, quando ela publicou o conto Minha Cor que tem um ponto de vista pessoal, texto que no ano seguinte foi publicado novamente no primeiro livro da autora.
Tendo em vista a questão racial, o livro de Raquel não pode ser analisado sem os paratextos, pois a autora, em nenhum dos contos descreve as mulheres como sendo negras. Mas a negritude está implícita, pois os textos estão embrulhados num invólucro negro e afro. Os títulos dos contos têm nomes originários de grupos linguísticos diversos todos da África Ocidental, especialmente da região que engloba atualmente o Benim, Togo e sul da Nigéria onde se fala a língua Fon da qual a autora retirou o título do livro.
Por outro lado, Raquel foi muito enfática na sua afirmação como mulher preta naquele seu primeiro livro. No conto Minha Cor publicado em 2008, ela narra seu processo de descoberta como mulher negra a partir de uma situação banal que se tornou decisiva na sua vida. Aos quinze anos, quando foi tirar a cédula de identidade ficou incomodada por ter se identificado como parda, uma vez que sua mãe era branca e apenas seu pai era negro. A partir dali, apegou-se à vó paterna, passou a dar mais atenção às queixas do pai sobre racismo e aos 18 anos, quando foi prestar vestibular cravou a cor preta no formulário como um gesto de libertação. Naquele mesmo livro, publicado quando ela tinha apenas 21 anos, praticamente todos os textos, sejam em prosa ou poesia, discorriam sobre seu lugar de mulher negra. Talvez por isso também, ela dispense essa caracterização nas personagens que criou para os contos de Yõnu.
Sendo todos sobre mulher, separei-os em dois blocos. Um de afirmação que engloba religiosidade e relações amorosas e outro que trata de violência contra as mulheres. Os que discorrem sobre o amor são abundantes e conduzem o leitor para um universo de relações afetivas e sexuais poeticamente intensas, revelando o quanto amor é um campo de tensão e de tesão privilegiado para se discorrer sobre o que é explícito e implícito numa relação.
Um dos contos de amor de Raquel é homoafetivo, Chiwa (Morte), no qual uma mulher lamenta com sofrimento visceral o fim de um relacionamento com outra mulher. Outros dois abordam a frustração de mulheres em seus casamentos.Ija (um desejo se cumpriu) retrata uma mulher que, inconformada com a indiferença do companheiro em face de seus apelos sexuais, resolve dar-se a si mesma numa sessão de masturbação com direito a vinho, comidinha afrodisíaca, lingerie nova, velas e incenso.Mafunda (ensinos) é um devaneio de uma mulher de 51 anos na mesa de bar sobre a frustração da vida matrimonial e seu entorno. A solidão mesmo rodeada de gente. O teto branco do quarto é seu único e verdadeiro amigo. Mergulha na perturbação de estar consigo mesma e se vê resignada pela falta de perspectivas.
Dois outros contos discorrem sobre as delícias do amor, ainda que num caso haja sérios conflitos. Ambos têm epígrafes com trechos de letra de conhecidos sambas e essas referências ajudam a entender a história que é contada. O primeiro é Latasha (surpresa), cuja epígrafe é de Nelson Cavaquinho. Em primeira pessoa, a narrativa discorre sobre a relação de um casal jovem que vai morar no topo de um morro num pico periférico. Fala do início da relação quando havia muito amor, cumplicidade, afeto e sexo. Ao mesmo tempo em que a relação esfriava, esquentava a discórdia entre os dois e a precariedade do bairro acentuava a ira da mulher. Um velho carro usado somente pelo companheiro era o pivô das brigas.
A epígrafe do segundo Ebiere (onda) é de Paulinho da Viola: “foi um rio que passou em minha vida/E meu coração se deixou levar” Narrado em primeira pessoa, discorre sobre os preparativos do carnaval em uma escola de samba de São Paulo (Camisa Verde e Branco). A intensidade e ansiedade dos ensaios estavam marcadas pela angústia por não saber se iria sambar na avenida, uma vez que resolveu que naquele ano assistiria ao desfile da Portela. Nesse processo enamorou-se de Leo e com ele viveu essa tempestade de sentimentos. O Carnaval chegou, foi para o Rio e se jogou nas festas de rua. Encontrou-se com Leo e depois da folia foram para o mar onde chegou ao pico de amor em conexão com suas duas paixões: o amado e o mar. No domingo foram ver a Portela desaguando no Rio azul da passarela.
São quatro os contos com histórias de violência contra a mulher. Amondi (nascida ao amanhecer) abre o livro e deixa o leitor em estado de tensão. Uma jovem se embriaga com bebida barata e vai parar no bar da Loira, uma senhora com currículo de prostituta, aliada de bandido e outros requintes, porém, uma mulher de muito bom coração e respeitada na quebrada. A Loira acolheu a garota quando ela desmaiou em seu estabelecimento. No dia seguinte a jovem acordou e o motivo do porre foi esclarecido. O processo que moveu contra seu chefe por conta de um estupro não foi aceito pelo Juiz por falta de prova e testemunhas. Aproveitando-se da situação, o acusado moveu contra ela um processo por injúria e difamação. De volta para casa, a garota se recompôs e quando amanheceu o dia seguinte, ela saiu para procurar um novo emprego.
Chimwala (Pedra) parece uma versão de Amondi com final trágico. O texto começa parodiando Racionais MC’s: “Você viu aquela mina na porta do bar?” Uma garota se embriaga num boteco risca faca, entra num transe, cambaleia entre o meio-fio e o barranco do córrego. O público se regozija como abutres e, impávidos, viram a moça cair desacordada e ser levada aparentemente morta pela ambulância escoltada por uma viatura da Polícia. Minkah (Justiça) narra a tensão de uma menina de 9 anos que sofre abuso sexual de seu tio semanalmente até os 13 anos. Numa noite, ela já adolescente, golpeou o estuprador na jugular com uma faquinha e com um martelo deu 33 pancadas na cara do pedófilo. Justiça, no caso, veio na forma de vingança.
Vingança também está no conto Sela (Salvadora) que narra a história de Dona, a mulher que mandava numa Vila em território periférico. Tomava conta do tráfico, estabelecia a justiça segundo suas próprias regras na comunidade que tinha por ela alta consideração. Até que um dia um cara se atreveu ignorar sua lei. O sujeito, antes de desafiá-la teve um surto de ódio por sua esposa, pois estava desconfiado de que ela o traia. Espancou a mulher até ela desmaiar, mas quando ia golpea-la com uma faca, Dona entra na casa e dá um tiro na perna do agressor. Arrasta-o até a rua e bate muito no valentão. Os capangas de Dona levam o sujeito até o terreno baldio e o executam. Depois desse dia Dona resolve que seus capangas serão mulheres e anseia pela recuperação da vítima da agressão para convidá-la a integrar seu grupo.
A composição da personagem de Dona pode ser associada ao de Maria Padilha, último conto do livro. Maria Padilha é a Pomba Gira dos terreiros de religião de matriz africana. Uma entidade, cuja origem remonta o século XIV, pois seria a amante de Dom Pedro I de Castela na Península Ibérica Medieval. Segundo estudo clássico da historiadora Marlyse Meyer4, com base nos arquivos da Inquisição, ela ressurge em Portugal no século XVII em cultos pagãos, povoando o imaginário dos lusitanos na Europa e no Brasil. Veja como Raquel descreve Maria Padilha: “Não é uma mulher comum, tem o girar nas noites quentes ou frias, tá na rua, é da rua, é rua. Quem se mete com ela? ( …) Não irrite ela! Sua ira destroça os sete mundos num giro que sua saia dá”. E Dona: “Era bonita, mas ninguém se metia com ela, andava com uma arma na calça cintura larga, tinha três guarda-costas. Ela caminhava como se o mundo fosse seu ( …)”.
Essa altives feminina empoderada também está com outra nuance em Zarina (mulher de ouro) no qual uma jovem bonita e descolada, um tanto atabalhoada, entra no ônibus e chama a atenção pela beleza, pela música que vazava de seu fone de ouvido (DMN, Erykah Badu), pelas coisas que caem de sua bolsa, pela sua impaciência. A ode às mulheres se completa com Nochê (Mãe) uma homenagem às mães que têm a missão de guiar espiritualmente. As mães de santo, as mães griôs.
Negritude, sororidade e afro-religiosidade
Na introdução deste artigo, elenquei inúmeras semelhanças entre Elizandra Souza e Raquel Almeida, tanto no que diz respeito às suas trajetórias e inserção no campo literário periférico, quanto nos livros que lançaram quase que simultaneamente. Porém, como é possível observar pelos comentários que fiz a respeito de seus textos, elas diferem muito em termos de estilo de escrita e na posição da narradora. Os contos de Elizandra parecem, boa parte deles, pessoais embora sejam peças de ficção. O fato de o título da obra trazer o enunciado “12 contos de amor e cura” corrobora essa impressão. Já nos contos de Raquel, a narradora está mais distante. Ainda que possa ter inspiração biográfica, o aspecto ficcional prevalece.
Essa posição da narradora favorece a construção dos personagens e contextos que aparecem nos contos de Raquel, especialmente naqueles mais conflituosos e marcados por situação de violência física. Esse traço é muito importante na obra dela distanciando-a de Elizandra. Em Yõnu, há violação sexual de uma criança e um estupro de uma jovem. Outra mulher jovem é morta depois de cambalear entre o bar e o córrego sem que os transeuntes lhe acudissem. Criou uma mulher num papel talvez nunca elaborado na literatura periférica: uma chefona da quebrada que manda, bate e mata homens agressores de mulheres. E no final do livro invoca Maria Padilha e todo seu séquito de mulheres aguerridas.
Nos contos de Elizandra não há sangue, uma metáfora muito presente nos seus primeiros poemas. A violência quando aparece não é física, mas é aquela que agride a alma e a subjetividade decorrente do racismo. Sua obra nos traz paz porque ela quase sempre resolve os conflitos, seja por meio da superação pessoal ou castigando os malfeitores com alguma má sorte, ou mesmo a morte, como no conto Com tradição, no qual o tão respeitado militante do movimento negro morre de câncer diante da revelação de sua vida conjugal dupla. Nesse conto especificamente, ela cria uma narradora onisciente que é aquela que controla a história e estabelece juízos.
Os livros se complementam e formam um par de obras que elevam o patamar da literatura periférica e negra. A propósito, as autoras costuram muito bem essas especificidades estéticas anunciando uma conexão muito potente. Ler as duas ao mesmo tempo me permitiu observar a estrutura de sentimento que se expressa na negritude, sororidade e na afro-religiosidade e que é compartilhada por um conjunto de mulheres negras das periferias. Numa sociedade como a brasileira é impossível que pessoas negras não sofram racismo e, portanto, a afirmação da negritude é marcada pela dor da opressão que fere a construção da subjetividade do povo preto.
A superação dessa dor, assim como a violência doméstica, passa pela solidariedade que as mulheres têm umas com as outras. Uma ex-prostituta dona de boteco na quebrada foi quem acudiu uma jovem embriagada num dos contos mais marcantes do livro de Raquel. Jandira, a que colecionava calcinhas, num conto brilhante de Elizandra, fez desse gosto um objetivo de vida, em função da sensibilidade de uma tia que lhe presenteou com lingeries quando testemunhou o desespero da sobrinha, ainda com quatro anos, ao ver sua calcinha escorrer pelas pernas em plena rua a caminho da banca de pastel.
A iniciação numa religião de matriz africana completa esse ciclo de proteção incidindo na dimensão espiritual ao mesmo tempo que é um símbolo muito forte de identidade que corrobora o movimento pessoal e coletivo de afirmação. Uma religião politeísta como o Candomblé a qual as duas autoras se iniciaram recentemente, é uma expressão muito relevante desse sentimento compartilhado por mulheres negras, pois fortalece a construção da subjetividade conectando-as com a ancestralidade mais profunda vinda da África. Tal conexão é guiada por divindades que são os orixás, vários associados às mulheres. Elizandra é Ekedji de Logun Yede no Terreiro Ilé Asè Ofa Omodeym e tem Ori consagrado a Sangô e Oyá. Raquel foi iniciada no tambor de Mina no Kwê Mina Odan Axé Boço Da-Ho pela Nochê Sandra de Xadantã. Que Yõnu e Iná abram os caminhos. Axé!
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1 Terceira Conferência da ONU contra o racismo, discriminação racial, xenofobismo e formas correlatas de intolerância, realizada em Durban, na África do Sul.
2 O exercício consiste em mapear as recorrências de abordagens que estabelecem aproximações entre as obras. Para se chegar a essa compreensão procuro perceber o pensamento como é sentido e o sentimento como é pensado. Tal percepção é possível de se alcançar observando o movimento da consciência prática que é o impulso, contenção e tom na fala dos personagens e dos narradores. Este procedimento foi criado pelo sociólogo britânico Raymond Williams (1920 – 1989) autor dedicado aos estudos da cultura, do teatro e da literatura, fundador dos Estudos Culturais e expoente do movimento New Left que renovou o marxismo na metade do século passado. Sua obra mais conhecida no Brasil é Cultura e Sociedade, publicada pela Editora Vozes.
3 Essa contextualização está no capítulo Feminismo Negro, coordenado por Cidinanha da Silva e Stephanie Ribeiro, no livro Explosão Feminista, oba de 2018 organizada por Heloisa Buarque de Hollanda publicada pela Cia das Letras.
4 Meyer, Marlyse – Maria Padilha e todo a sua quadrilha – De amante de um rei de Castela a Pomba Gira de Umbanda. Duas Cidades, São Paulo, 1993.
Foto em destaque: Reprodução/ Alma Preta