“Negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão”

O espetáculo de dança “Movimento I, Parado é Suspeito” reflete, em cena, traumas e violências aos quais são submetidos o corpo negro

 

Por Diane Lima, da Revista Bravo!

Fotos: Miguel Schott

Dois refletores cegam meus olhos. Mal consigo ver o que escrevo. Lágrimas? A bateria marca as batidas e os abatimentos. Um canto reflete nas sombras os gestos da morte. Um corpo estirado, uma mancha de sangue. Luz vermelha no centro do palco. Mãos ao alto. Um corpo que pula freneticamente. Movimento I, Parado é Suspeito.

Não poderia fazer a minha estreia aqui na Bravo! de um outro jeito que não inscrevendo a potencialidade do fazer artístico como espaço possível para performar o conhecimento, enunciar memórias e visibilizar o que podemos chamar de éticas e estéticas da resistência. Guiada por uma prática curatorial interdisciplinar, preocupada com a mediação de formas de aprendizado coletivo e ancorada em uma perspectiva semiótica que toma as linguagens como dispositivos para ressignificação do imaginário social e produção de novos sentidos, tais intervenções têm molhado os meus olhos assim como, acredito, que estão a deslocar aqueles abertos ao seu arremesso: emparelhando os tempos, atualizam no presente as marcas que o passado vem nos deixando como legado para o futuro.

Fraturando os valores usurados ao longo do tempo e produzindo novas narrativas, tais práticas artísticas trazem consigo uma rica tradução plástica que se dá a ver no mesmo nível de complexidade que propõem os seus discursos. Nessa contra-história que começamos a escrever aqui, veremos as obras que nos fazem sentir com o corpo inteiro, que borram e são passagem para o exercício do desaprender. As que enunciam um Tempo de Cura, tocam os traumas, tratam das violências e nos empurram no abismo que é a descolonização do nosso próprio pensamento.

A convite da Plataforma Plus, do Goethe-Institut, BayernForum der Friedrich-Ebert-Stiftung e Lusofonia, viajei no mês de maio para Munique, na Alemanha, para acompanhar o processo crítico-criativo e participar das discussões de um ato coreográfico que nos leva a refletir sobre aquele que deveria ser o debate central do noticiário brasileiro: o genocídio da população negra e, por assim dizer, a profunda crise de representação da palavra-imagem Negro que, com o passar dos séculos, foi investida no seu mais alto grau de desumanização.

Foto: Lara Carvalho.

Inspirada na frase encontrada na Academia de Polícia Militar na década de 90, “Negro parado é suspeito, negro correndo é ladrão”, Movimento I, Parado é Suspeito, com direção de Mario Lopes, aconteceu no HochX Theater und Live Art para denunciar em cena os números alarmantes que quantificam a face do extermínio e o racismo estrutural presente nas instituições policiais. A tragédia dos dados não é proporcional, contudo, ao destaque dado pelos veículos midiáticos: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil.

A Anistia Internacional calcula que mais dos 30.000 jovens mortos por ano 77% são jovens negros. Eu sou um sobrevivente. Perdi amigos e vivi diversas vezes a arma do estado apontada para o meu corpo. Dar corpo ao genocídio dos negros no Brasil, em palco, era um desdobramento inevitável em algum momento dentro da minha trajetória como coreógrafo. O meu encontro com o mestre Denilson Oliveira, músico e autor de 3 livros sobre ritmos brasileiros, foi o ponto de partida. O “Movimento I, Parado é Suspeito”, permite questionamentos em um trabalho que parte das sonoridades do passado que continuam a gritar no presente (Mario Lopes).

MOV1_1 from Mario Lopes on Vimeo.

Fugindo de uma dramaturgia linear e apropriando-se de uma pluralidade de linguagens, Movimento I valeu-se do gesto, da imagem, de luz e som para experimentar uma resposta que nos leva à seguinte reflexão: como reage no cotidiano este corpo racializado, preenchido e significado como símbolo da criminalidade? E como o evento estético pode recuperar o ato fundador do ser Negro deslocando o olhar de quem o olha? Para Achille Mbembe no livro Crítica da Razão Negra, “se a consciência ocidental do Negro é um julgamento de identidade, este texto segundo será, pelo contrário, uma declaração de identidade. Através dele, o Negro diz de si mesmo que é aquilo que não foi apreendido; aquele que não está onde se diz estar, e muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar onde não é pensando”. (2014, p.59)

Foto: Lara Carvalho

Assinando com Mario a concepção da obra, o mestre Denilson Oliveira se junta a ele no palco, rege a bateria e a interpreta ao vivo com a cantora moçambicana Lena Bahule e o músico Paulo Monarca, que se uniu ao grupo nesta apresentação em Munique. Entre som e ação, o encontro ativa na dança, a imagem desse “improvável” de que fala Mbembe, dando vazão ao que os seus criadores chamam de “um estudo sobre atribuir sonoridade ao corpo e dar corpo ao instrumento”. Nessa paisagem sonora, faz-se presente a percussão, incorporada como uma qualidade de movimento, como uma memória corporal que no estridente da guitarra encontra no além-mar as vozes do lamento.

Tivemos uma sorte muito grande de ter encontrado no segundo momento do processo a cantora e pesquisadora sonora Lenna Bahule e o músico e produtor musical Otávio Carvalho. Aprofundar essa investigação e compartilhar a pesquisa corporal nos possibilitou construir o desenho sonoro da peça em conjunto. Um corpo sonoro não refém (para) ao movimento e nem de fora, mas um corpo sonoro que junto aos outros corpos cênicos ativam o espaço. Logo depois convidamos o Victor Pardinho, artista audiovisual e de novas tecnologias e o fotógrafo Danilo Carneiro, que se abriram a proposta e chegaram em um resultado preciso. Para o processo da peça contamos com cinco mulheres fundamentais: Regina Garcia, que nos apresentou textos e pensamentos valiosos e nos deu base para a construção de um registro escrito; Isabel Hölzl, pelas provocações e o acompanhamento nos ensaios; a coreógrafa japonesa, Toshiko Oiwa, que fez a orientação final da obra coreográfica como um todo, desenho espacial e de luz. Para o resultado final dessa iluminação, contamos com a parceira Maria Druck e o figurino desenhado por minha mãe, Du Carmo. (Mario Lopes).

Uma sombra no chão. Um corpo que nunca para. Um corpo que salta. Que cansa mas que não desiste. Que insiste no cansaço que é tentar dar um pulo para se manter vivo. Braços abertos e o som marca as batidas do peito. Vou resistir?

A máxima Parado é Suspeito é expandida no movimento em sua exaustão. Sendo platéia, não é difícil sentir angústia, desespero, dor e perplexidade ao ver o diretor-intérprete não desistir dos saltos, da mesma forma como o corpo negro se contorna ao destino que o mira. No processo de criação, duas técnicas foram utilizadas, a da ‘Salivação’ e a dos ‘Nós’, métodos que propiciaram ativar memórias e experienciar possíveis sensações referentes a traumas e violências simbólicas aos quais são submetidos esses corpos todos os dias. Mas como eles são afetados? Quais as consequências psicofísicas que sofrem? Como identificar tudo isso no próprio corpo, abrir e iniciar uma tentativa de construir um novo estado corporal?

Esses questionamentos são a base da ideia dos ‘Nós’ e da ‘Salivação’. Para acessar esses lugares reconhecemos e mapeamos pontos ativos: dores, encurtamentos, “corpos estranhos”, marcas, espaços vazios…. Depois, iniciamos uma etapa que chamamos de salivar os pontos ativos até a exaustão, o que nos leva a sonoridades e a uma qualidade de movimento. Também em Munique, tive a oportunidade de trabalhar em uma coprodução coreográfica com bailarinos do Brasil, México e Europa e experienciar junto a outros corpos e vivências a movimentação desencadeada pelos nós e a dissolução deles. Nesta oportunidade dei continuidade a investigação do “Movimento I” e estreamos Album Kodex_feedback, obra que coreografei junto com o parceiro mexicano Martin Lanz.

A partir das provocações feitas por Mário para a criação de Album Kodex_feedback, o artista e bailarino Guinho Nascimento se aprofundou na sua pesquisa corporal na busca de seus nós: marcações que rasgam o peito e irradiam.

 

Da mesma forma que não circulam os casos de homicídio nas notícias, não circula também a obra que a performa.

Outro ponto fundamental das discussões que tivemos pós-apresentação da performance em Munique se deu quando passamos a refletir o porquê de uma obra criada com tanto rigor artístico e complexidade técnica encontrar entraves na sua circulação. Como boa parte dos projetos que carregam este grau de criticidade, a equipe que trabalha na sua concepção desde 2011 e se apresentou apenas seis vezes no Brasil, passou a sentir na pele os efeitos de um racismo institucional que, na dimensão estética, opera na mesma lógica daquela que transforma, na calada da noite, inocentes em vítimas, fazendo da palavra-imagem Negro um símbolo-marginal.

Entre as bases jurídicas, o saber científico e esse valor estético, as estratégias de manipulação são as mais diversas: aprisionar, criar dependência e diferenciação frente a todo resto que se considera universal; reduzir, criminalizar e ocultar para que não se torne verdade, para que continuemos alheios a uma urgência e para que se cumpra ao fim, o projeto de embranquecimento da sociedade brasileira, objetivo das teorias que fundamentam por exemplo, o mito da miscigenação racial.

A questão é que precisamos de mais espaços, mais curadores negros e conscientes nas instituições, além de um novo planejamento para as políticas públicas culturais no Brasil. A minha experiência é a de ser rotulado – apesar de na descrição da minha peça não aparecer nenhum termo como arte negra ou como dança negra. Se, por um lado, o termo“Dança Negra Contemporânea” é utilizado de forma afirmativa, por outro, pode ser empregado como um ato de marginalização curatorial, pois então a peça só é agendada no mês de novembro. Nas discussões de dança contemporânea as perguntas clássicas são: como foi o seu processo físico, qual a relação da música e da dança, como você usa o espaço, como você se aproximou da temática? Essas perguntas não aparecem nos meus debates. Parece que a urgência de uma discussão sobre a realidade social, política e racial ainda é enorme e o bate-papo que é essencial no pós-peça oferece esse espaço. Contudo, acho importante que sejam também discutidas questões estéticas e do trabalho enquanto peça de dança e em relação as ferramentas utilizadas para que o nosso trabalho e de tantos outros artistas negros sejam percebidos como parte, sobretudo, da produção de arte contemporânea no Brasil.

Em cena Mario Lopes, o mestre Denilson Oliveira, a cantora moçambicana Lenna Bahule e o músico Paulo Monarca.

Escrever aqui, inscrever nos palcos. Já que o corpo também é o que a linguagem faz dele, até quando o nosso gesto será um salto? Seja sendo passagem para o debate, espaço de denúncia e escuta ou referência no processo de criação, Movimento I nos conduz a um segundo movimento: nos traz um sinal que nos arremessaremos para onde necessário for na busca por devolver ao nosso corpo a sua humanidade.

Referências: MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.

+ sobre o tema

Chael Sonnen lutou dopado contra Anderson Silva

Foto UFC O americano versado...

Hamilton é advertido por incidente com Bruno Senna nos boxes

Mais rápido do primeiro dia de treinos para...

Seminário aborda discriminação

A UEFA junta-se às federações holandesa e inglesa...

Provei que não sou marginal, desabafa Felipe após título carioca

Mesmo sem defender pênalti, goleiro do Flamengo se sentiu...

para lembrar

Encontro do Hip Hop com a SEPPIR em São Paulo

No ultimo final de semana os representantes,militantes e ativistas...

Renato vai passar por cirurgia, mas voltará a jogar futebol

Procedimento de introdução de um catéter no coração será...

Emílio Santiago critica MPB atual: “É tudo muito cool”

Lançando o DVD "Só danço samba", cantor fala sobre...
spot_imgspot_img

Casa onde viveu Lélia Gonzalez recebe placa em sua homenagem

Neste sábado (30), a prefeitura do Rio de Janeiro e o Projeto Negro Muro lançam projeto relacionado à cultura da população negra. Imóveis de...

No Maranhão, o Bumba meu boi é brincadeira afro-indígena

O Bumba Meu Boi é uma das expressões culturais populares brasileiras mais conhecidas no território nacional. No Maranhão, esta manifestação cultural ganha grandes proporções...

“O batuque da caixa estremeceu”: Congado e a relação patrimonial

“Tum, tum-tum”, ouçam, na medida em que leem, o som percussivo que acompanha a seguinte canção congadeira: “Ô embala rei, rainha, eu também quero...
-+=