Negro, você sabe dançar?

É praticamente carnaval e outro dia um amigo angolano me perguntou: você já sonhou em ser Globeleza? Eu nunca quis ser Globeleza, apesar de adorar sambar desde criança, de ir a ensaios nas quadras e nas ruas, de cantar alto os sambas enredo, do carnaval ser um grande evento para a minha família. É óbvio que na época era bonito ver Valéria Valenssa na TV. Ela, a Pata das “Chiquititas” e a Glória Maria eram tudo que a gente tinha. Mas já naquela época me incomodava, ainda que eu tivesse pouquíssima consciência, organização mental ou mesmo vocabulário sobre isso, que aquela mulher preta, nua e sambando na TV fosse o entretenimento.

Disse ao meu amigo que meu sonho sempre foi sair na bateria, porque a bateria de uma escola de samba, além de ser o seu coração, sempre me pareceu com uma utilidade suprema. Tocar um dos instrumentos que cria o ritmo para que toda a comunidade possa cantar, e cantando desfilar, e desfilando, fazer o que se prepararam um ano inteiro. Pra mim a bateria não é entreter o outro, é festejar junto com os seus.

Mas naquela época, se você passasse o olho bem rápido, parecia mesmo que Globeleza era um entretenimento bom, uma objetificação do bem, algo que soava como valorização da beleza, das pautas, que poderia servir para levantar debates e críticas sobre onde estavam as mulheres pretas na televisão o restante do ano. Hoje isso parece absurdo, certo?

Será que um dia será absurdo que um jovem negro, de origem pobre, ex-estudante de escola pública, bissexual, seja exposto e humilhado na TV aberta? Antes, será que um dia será absurdo que as pautas e muito do que construímos nos últimos anos sejam base para entretenimento?

Assisti em janeiro ao filme “Adú”, um drama espanhol que mistura as histórias de um guarda civil de fronteira, um protetor de elefantes europeu e um menino camaronês. São praticamente duas horas inteiras de uma criança africana que passa por todos os sofrimentos, perdas e violências possíveis: este é o entretenimento. E claro que a história de um menino que atravessa países para tentar uma vida melhor na Europa podia ser contada, mas como escreveu o crítico Robledo Milani: “É de se lamentar, portanto, que mesmo com um material tão rico como esse, os realizadores acabem se contentando em apenas apontar os conflitos, e nunca se debruçar sobre suas causas — e muito menos nas futuras consequências.”

Um dos comentários de uma mulher num site dizia que ela gostou tanto do filme, que achou tão emocionante, que queria adotar o menino. Mas por que Moustapha Oumarou, um ator mirim do Benin, com uma atuação formidável e trabalhando em um filme internacional, deveria ser adotado? Um outro comentário dizia que era certamente uma história muito real. Se você coloca uma imagem seguida de outra, ela ganha sentido e vira verdade, mesmo em um filme ficcional ou em um programa de TV.

Há um nojento fetiche sobre o corpo da Valéria, do Lucas, da Conká, do Adú, do meu. Um fetiche que quer nos salvar de algo que não pedimos pra ser salvos, que gosta de nos ver sofrer violentados física ou psicologicamente e rebolar na TV. Os três fetiches se misturam muitas vezes nas mesmas pessoas.

É como aquela história do reverendo Gates, que estava indo visitar a irmã doente mas, quando foi ao banheiro, foi abandonado pelo trem na estação de uma cidade desconhecida. Gates foi cercado por homens brancos armados e quando ele contou sua história, eles responderam: “É, preto? Mas você sabe dançar?”

Segundo a história contada no filme “A voz suprema do blues”, foi só assim que o reverendo permaneceu vivo. Mas isso foi há muito tempo… Até quando vamos continuar dançando para não morrer, até os brancos cansarem de assistir?

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