Negros são menos de 1% entre advogados de grandes escritórios, diz pesquisa

Escritórios renomados criam núcleos para aumentar representatividade

por Angela PinhoMarina Estarque no Folha de São Paulo

Renata Shaw, advogada especialista em propriedade intelectual Renata Shaw, advogada especialista em propriedade intelectual – Ricardo Borges:Folhapress

“Olá, tudo bem? Gostaria de falar com a doutora Renata Shaw.” A pergunta já foi ouvida mais de uma vez em sua sala pela própria Renata Shaw, advogada especialista em propriedade intelectual. Ela é negra.

“Muitas pessoas não esperam encontrar uma pessoa como eu na minha posição”, explica —pensam que ela é secretária ou tem outra função administrativa. Pelo mesmo motivo, conta, também não é incomum desconhecidos pedirem-lhe água e café.

Cenas como essa revelam o abismo existente entre brancos e negros no país e, particularmente, na advocacia, confirmado por pesquisa recente.

O diagnóstico, junto à pressão de clientes, tem levado escritórios a implantar iniciativas para amenizar a desigualdade. Elas incluem a busca por estagiários em coletivos negros de faculdades, cursos para preparar os candidatos para processos seletivos e a criação de canais de denúncia, entre outras.

A dimensão do problema foi mapeada pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, formada por escritórios com apoio do próprio Ceert e da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

O estudo ouviu uma amostra de 3.624 pessoas em nove das maiores bancas de São Paulo (BMA, Demarest, Lefosse, Machado Meyer, Mattos Filho, Pinheiro Neto, TozziniFreire, Trench Rossi Watanabe e Veirano).

O resultado mostrou que, do total de brancos, 10,1% são estagiários e 48,3% são sócios e advogados juniores, plenos ou seniores.

Já entre os negros, 9,4% são estagiários, mas nos cargos de sócio e de advogados é estatisticamente irrelevante.

Há casos de negros nessas posições, mas não chegam a 1% na pesquisa, explica o coordenador de projetos do Ceert, Daniel Teixeira.

Entre os fatores que contribuem para isso está a menor presença de negros em faculdades de ponta, apesar das ações afirmativas, e o fato de eles, muitas vezes, terem menos oportunidades de estudo de inglês ao longo da vida.

A inclusão, portanto, passa por rever algumas exigências ou criar mecanismos para combater os obstáculos, diz o professor Thiago Amparo, da FGV. “É preciso ter uma atitude ativa para que a diversidade aconteça. O automático é excludente.”

Para Silvio Luiz de Almeida, professor do Mackenzie e da FGV, a pesquisa mostra que os escritórios de advocacia não fogem ao que acontece no país. “Eles estão em uma sociedade que ainda se move por parâmetros racistas, em que a desigualdade se naturalizou de tal forma que as pessoas se acostumaram a entrar em certos ambientes e não encontrar uma pessoa negra.”

“Em reuniões externas, percebo que muitas vezes causa espanto quando chego e veem que sou eu o advogado”, diz Robson de Oliveira, do Demarest.

“A clientela do sistema de justiça criminal são os negros, ao passo que o sistema de justiça é formado na maior parte por defensores, promotores e juízes brancos”, diz Marina Dias, do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). Segundo ela, não há números, mas o próprio instituto padece de uma sub-representatividade de negros.

Uma das medidas que o IDDD adotou para minimizar isso foi o fim da exigência de indicação de um advogado do grupo para quem quer se associar. Há outras em estudo.

Nas bancas de advocacia, o tema entrou em foco por volta de 2016, um pouco depois das questões de gênero e LGBT.

Presidente do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados) e sócio do escritório Machado Meyer, Carlos José Santos da Silva diz que começou a pensar nisso quando, naquele ano, um colega do Trench Rossi Watanabe perguntou a ele: “quantos negros existem no seu escritório?”. A resposta não era satisfatória para nenhum deles.

“Hoje, quando vou a um restaurante ou a uma palestra, é a primeira coisa que eu penso: tem negros aqui?”, diz Santos da Silva.

De lá para cá, a discussão avançou, e quase todos os escritórios mais renomados, que participaram do estudo do Ceert, têm núcleos sobre o tema.

Eles também patrocinam o Incluir Direito, projeto destinado a preparar estudantes negros para seus processos seletivos de estágio. Um piloto foi feito no Mackenzie, com aulas de reforço de inglês e português, além de ajuda para fazer currículos, comprar vestimentas formais e outros pontos. A expansão do projeto para outros cursos, como o da USP, está em discussão.

Iniciativas como essa estão ligadas à crescente importância da diversidade, especialmente para uma nova geração de advogados, diz Thiago Amparo. Mas há também motivos econômicos, como a pressão de seus clientes.

“É algo que foi muito puxado pelas empresas de tecnologia, e as outras vieram junto”, diz Eduardo Paoliello, um dos sócios do Pinheiro Neto que cuida desse tema.

Entre as ações do escritório, estão a parceria com projetos como o Incluir Direito, estágios de férias para alunos das universidades federais da Bahia e de Pernambuco e um novo olhar para a seleção de estudantes.

Outra iniciativa a ser implantada são cursos de reforço de inglês, assim como no Demarest. Atualmente, cerca de 5% dos advogados do Pinheiro Neto são negros.

Sócio do Trench Rossi Watanabe e parte do comitê de diversidade e inclusão, Alberto Mori diz que a porcentagem atual, de 2%, é insatisfatória. “Estamos lutando para aumentar isso. Procuramos dar uma especial atenção a esse ponto, ele é prioritário para nós na seleção”, diz. O escritório também patrocina o projeto Incluir Direito.

Procurado, o Machado Meyer não respondeu sobre a quantidade de advogados negros em seus quadros.

À frente de iniciativas de diversidade em seu escritório, o Daniel Advogados, Renata Shaw procurou o coletivo da PUC-Rio para selecionar uma estagiária negra.

Para os professores Amparo e Silvio de Almeida, iniciativas como essas são um grande avanço, mas serão insuficientes se não forem direcionadas a aumentar a diversidade também no topo da carreira. “A mudança vai levar muito tempo se esperarmos os estagiários”, diz Amparo.

Renata concorda. “Existem profissionais brilhantes que não estão sendo contratados por falta de diversidade”, diz ela. “Eu até gosto de ser boazinha, mas evitar que isso aconteça é uma questão de negócio também.”

Negros estão menos presentes em cursos mais bem avaliados

Fundamental para uma maior diversidade no mercado de trabalho, a presença de alunos negros vem aumentando no ensino superior no Brasil, mas ainda é menor em cursos de maior prestígio.

Dados do Censo da Educação Superior do Inep (instituto ligado ao Ministério da Educação) tabulados pela Folha mostram que a proporção de autodeclarados pretos e pardos em cursos de direito passou de 10,6% em 2011 para 28,2% em 2016.

Considerando-se só os cursos mais bem avaliados, segundo o RUF (Ranking Universitário Folha), essa presença também cresce, mas em patamar menor —passou de 9,7% para 18,2%.

Em 2008, quando Luana Araujo, 38, foi a oradora da formatura de sua turma da Faculdade de Direito da USP, ela tinha apenas outros dois colegas negros em sua sala.

Naquele ano, era também a única negra no seu setor no escritório. A ausência de pares, diz, se reflete em situações sociais relacionadas ao trabalho, como almoços e eventos. “Falar que senti ato de racismo ostensivo em qualquer escritório seria mentira. Mas a minha impressão é que existe dificuldade de lidar com o negro fora das circunstâncias em que se está habituado a vê-lo”, diz.

Se hoje ela estivesse na USP, teria mais colegas negros. A presença tem aumentado com as cotas, que começaram a ser implantadas de forma gradativa no ano passado.

Para a desembargadora aposentada Luislinda Valois, que é negra e foi ministra dos Direitos Humanos no governo de Michel Temer, as cotas não são suficientes.

Ela defende que é preciso dar bolsas, de pelo menos meio salário mínimo, para garantir a permanência de negros na faculdade, principalmente em áreas mais elitistas, como direito, medicina ou engenharia.

“Com as cotas, não resta dúvida de que pretos, pobres e da periferia, que eu chamo de ppps, chegaram às universidades. Mas o que aconteceu? Uma grande quantidade desses estudantes não pôde levar adiante os estudos, porque tem a roupa, o sapato, o transporte, o livro, alimentação, fotocópia”, diz ela.

Luislinda se lembra de um episódio de discriminação durante uma audiência na Bahia, quando era juíza. “O advogado chegou e me perguntou: ‘ei, cadê o juiz?’. Eu falei: ‘olha, o juiz não está aqui, mas ele chega já’. Saí da sala, voltei, me sentei e disse: ‘pronto, tá aqui a juíza'”.

Na última quinta, representantes de grandes escritórios de advocacia foram à USP para discutir um projeto de inclusão com dois coletivos de alunos negros.

Integrante de um deles, Cicero Italo Rodrigues Araújo, 20, gostou de algumas das propostas, como a das aulas de inglês e a do auxílio para comprar vestimentas, e não de outras, como a das aulas de português —em sua opinião, desnecessárias para quem passou em um vestibular tão seletivo como o da USP.

Uma coisa ele não pôde deixar de notar: os advogados que foram apresentar a iniciativa eram todos brancos.

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