Quando soube, através de um homem negro, também professor, desta frase proferida durante um debate sobre questões raciais na cidade de Jundiaí, por um professor branco, descendente de italiano, o qual conheço, a minha reação foi de espanto. Não tanto pela frase, mas pela coragem dele em dizê-la diante de diversas pessoas negras. Como alguém pode achar que, para ser branco, (e estamos falando de fenótipo construído socialmente como o padrão moral e político legítimo que, por causa disso, goza de privilégios) precisa de ensinamentos, de um manual para seguir? Ele esperava que lhe entregassem, assim que nasceu, uma cartilha de como ser branco? Como não recebeu, porque a estratégia central do privilégio branco é justamente omitir a raça do branco e falar de si no universal, ele finge que não aprendeu (e muito bem) na socialização que recebeu, nas relações sociais, nas instituições que frequentou e ainda frequenta. Brancos se comportam como se nada dependesse do fato de serem brancos, nem os privilégios. Ao contrário do que ele pensa, a lição foi muito bem apreendida, pois, quase todos, agem da mesma forma.
Vamos ao ponto central. No livro O contrato Racial, que ele deveria ler, mas não o fará, pois, perderia o álibi da ignorância, Charles W. Mills diz que o Contrato Social, bem teorizado por Hobbes, Locke, Rousseau, na verdade, é um Contrato Racial, que exclui os não brancos como parte integrante ou ontológica da humanidade que se reúne em torno de um contrato de civilidade para abandonar o estado de natureza. Enquanto estes homens (brancos) teorizavam sobre a passagem do homem selvagem para o homem civil, com a instituição de um poder além dos indivíduos que regula a vida social, outros, tidos por eles “menos humanos” ainda não tinham saído deste estado primário da evolução humana e, ainda hoje, permanecem nele.
Os não brancos sempre (pelo menos nos primeiros encontros) ficaram perplexos ou espantados com a invisibilidade do contrato racial para os brancos, o fato de que os brancos têm falado rotineiramente em termos universalistas, mesmo quando ficou bastante claro que o escopo tem realmente se limitado a eles mesmos. (…) Assim, a hipocrisia da política racial é mais transparente para suas vítimas. (Pg. 159)
Pois bem! O professor, quando nasceu, já fazia parte de um universal. E, somado à sua raça, ainda tem o sexo e o gênero que o fez chegar até a idade adulta, vivo e socialmente bem posicionado, a ponto de acreditar que nunca lhe fora ensinado a ser um homem branco. Provavelmente, numa roda com os amigos, ao ser apontado, dizem: “aquele com a camiseta vermelha”. Se fosse um homem negro, a cor era a marca de identificação: “aquele negro ali”. Ele não teve que lidar com olhares de desprezo e desconfiança no metrô, nas ruas, restaurantes e lojas. Nas abordagens policias, sequer que sofreu alguma, era visto como pessoa, antes de ser um potencial bandido. Sem contar que cresceu com os rostos como o dele, estampados em todos os lugares, nas publicidades, nos filmes, representando protagonistas, heróis, galãs, pessoas moralmente superiores e, o seu oposto, era o vilão, o mau, o bandido, o pobre, o idiota, o menos inteligente, o infantil. Por isso, jamais teve a sua humanidade colocada em dúvida. Economicamente, sempre viu o seu fenótipo ocupar os melhores empregos, os melhores bairros, os melhores restaurantes e reproduzirem entre si a herança e a fortuna.
O professor estudou os clássicos da sua área de atuação e, pela sua postura, jamais se incomodou em não ter estudado intelectuais negros. A sua dissertação de mestrado é cheia de referências brancas e masculinas, mas continuou seguindo a prática de ensino sem a revolta típica de gente preta que jamais viu os seus sabedores nas listas dos “clássicos” ou “universais”. E, na hora de arrumar namorada? Ele não sentiu que aprendeu a ser branco? Foi preterido pela sua cor de pele, seu fenótipo? Foi humilhado em lojas de departamentos, em filas, em hospitais? Já lhe atenderam olhando-o como se ele não soubesse nada e tivesse dificuldade de compreensão? Já lhe negaram atendimento pelo seu fenótipo? Já sofreu alguma injustiça devido ao seu corpo “não racializado”?
Charles Mills diz que as pessoas não brancas estão “biologicamente destinadas a nunca penetrar no teto de direitos normativos estabelecidos para elas abaixo dos brancos.” Este teto, invisível para os sujeitos legítimos, só pode ser visto com honestidade e desejo de uma prática antirracista, que passa pelo reconhecimento de que ele está dentro deste teto. A sutileza com que brancos fazem com que os não brancos acreditem estarem amparados por este teto, pode convencer até mesmo eles da própria mentira.
Um exemplo de honestidade que gosto muito de citar, nos traz Lia Vainer na sua pesquisa de doutorado intitulada Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana”. O professor em questão é de São Paulo e deveria ler este trabalho antes de pronunciar absurdidades. A autora entrevistou diversas pessoas brancas para compreender o que elas entendem por ser branco no Brasil. Um homem em situação de rua, de fenótipo branco, disse que entra no Shopping Center a qualquer hora do dia para usar o banheiro, mas os amigos negros e pardos não podem fazer o mesmo. Será que o professor nunca aprendeu a ser branco somente pelo fato de nunca ter sido parado na porta de um estabelecimento? Ele nunca se deu conta do passaporte que ganhou e que o faz circular como se o mundo fosse o que aparenta ser, somente para ele e não para outros?
Charles Mills diz ainda que “a supremacia branca global nega às subpessoas não apenas paridade moral e cognitiva, mas também estética”. E, quando afirmamos que “Negro é lindo!”, estamos destruindo este olhar degradante que nos impuseram. Brancos não precisam afirmar o mesmo, tampouco que “Vidas brancas importam.” Ah! Os benefícios de ser branco! Tão visíveis para uns, e tão invisíveis para quem os gozam! Como pode um professor, que vive num país onde raça determina classe, onde raça (e gênero) determina salários, onde raça determina espaços de moradias, empregos, oportunidades, onde raça determina tempo de vida, distribuição de afetos, reconhecimento social, violência policial, ascensão social, etc., dizer, na cara de pau, que nunca aprendeu a ser branco?
Fabiane Albuquerque é socióloga e escritora. Autora dos livros Cartas a um homem negro que amei (Editora Malê) e Ensaio sobre a raiva (Editora Patuá).
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