Nísia Floresta: A feminista brasileira que você não encontrará nos livros de história

Pouco estudada, a escritora nordestina que viveu no século XIX foi uma das precursoras de conceitos feministas no país; ao longo de sua vida, participou de campanhas abolicionistas e republicanas mas militou, principalmente, pelos direitos das mulheres, tendo escrito o livro “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”; conheça 

Por João Telésforo, no Revista Fórum

nisia2

Um dos traços evidentes da herança colonial brasileira é o quanto desconhecemos ou menosprezamos intelectuais do Brasil, da América Latina e do “Sul” global. Como consequência, o vício eurocêntrico de reproduzir acriticamente modelos, projetos e discursos pouco enraizados na história do nosso país.  Sem consciência do sangue negro, indígena e feminino que escorre do “moinho de gastar gentes” que formou o capitalismo e o Estado no Brasil, nos perderemos enfrentando moinhos de vento. Sem conhecimento das lutas e dos pensamentos que se articularam para enfrentar esse “moinho” real, dificilmente teremos capacidade de formular um projeto alternativo, de caráter libertador.

O governo fala em “Pátria Educadora”, mas qual é o conteúdo de sua noção de Pátria e de seu projeto de Educação? Para nos armarmos de referenciais da nossa história para refletir sobre essa questão, convido o/a leitor/a a conhecer, então, uma grande intelectual nordestina do século XIX, que pensou o Brasil a partir das lutas de mulheres, abolicionistas e indígenas, e pôs em prática uma pedagogia feminista libertadora. Causas que permanecem, hoje, no centro de qualquer projeto revolucionário que mereça esse nome.

No litoral do Rio Grande do Norte, uma “fértil e charmosa” terra tropical, que nos acolhe com sua quentura úmida, abriga hoje o município de Nísia Floresta. As aspas são do relato de Dionísia Pinto Lisboa, escritora que nasceu ali em 1809 e se tornaria conhecida pelo nome que adotou para si: Nísia Floresta Brasileira Augusta. A exuberância natural do lugar, na região metropolitana de Natal, contrasta com a sua paisagem social. Para citar somente um dado, perversa ironia para a cidade que leva o nome de uma paladina Brasileira da educação: quase um quarto da população do município com mais de 15 anos de idade não é alfabetizada (Censo 2010 do IBGE). Nísia Floresta compreendia as razões para isso. No Opúsculo Humanitário (1853), explica que sem uma “educação esclarecida”, “mais facilmente os homens se submetem ao absolutismo de seus governantes”.

A Brasileira Augusta lutou, em especial, pela educação para as mulheres. Não se contentou com a tradução livre, aos 22 anos, do livro “Direitos das mulheres e injustiça dos homens“. Insatisfeita com a falta de acesso, a má qualidade e a perspectiva patriarcal do ensino para as meninas, criou em 1838 uma escola para elas. Enquanto outras escolas para mulheres preocupavam-se basicamente com costura e boas maneiras, a de Nísia ensinava línguas, ciências naturais e sociais, matemática e artes, além de desenvolver métodos pedagógicos inovadores. Uma afronta à ideologia dominante de que esses saberes caberiam somente aos homens, restando às mulheres aprenderem os cuidados do “lar” e as virtudes morais de uma boa mãe e esposa…

Leia Também: As mulheres negras e o feminismo no Brasil

Tal insubordinação rendeu a Nísia não somente críticas pedagógicas, mas também ataques à sua vida pessoal. Artigos nos jornais tentaram desqualificá-la como promíscua nas relações com homens e até mesmo com suas alunas. Mas essa Brasileira não era de baixar a cabeça para as estratégias atávicas do patriarcado. Já no nome que adotou para si e deu à escola, um grito de autonomia contra a moral sexual machista: “Colégio Augusto”, homenagem ao seu companheiro Manoel Augusto, com quem corajosamente viveu e teve dois filhos, enquanto era acusada de adúltera pelo ex-marido, com quem fora obrigada a se casar – tendo-se separado dele no primeiro ano de casamento, aos 13 anos de idade.

Nísia participou das campanhas abolicionista e republicana ao longo de praticamente toda a sua vida. Denunciou também a devastadora opressão colonial contra os povos indígenas, em livros como “A lágrima de um caeté”, de 1849, poema épico de 39 páginas que em sua segunda parte tem como pano de fundo a Revolução Praieira (Pernambuco, 1848-50).

Ao migrar para a Europa, onde morou por quase duas décadas, Nísia continuou escrevendo e publicando livros de literatura e de resistência política. Foi amiga, admiradora e correspondente do filósofo positivista Auguste Comte, mas não absorveu seu determinismo racista. Sempre ostentou o orgulho de sua origem – ressaltada no próprio nome que se deu – e nunca abandonou o compromisso de se somar às lutas pela libertação dos setores oprimidos que formam a maioria social do povo brasileiro.

+ sobre o tema

Thereza Ferraz : Simone de Beauvoir – Drop4

Até os doze anos a menina é tão robusta...

Caso Marielle: Dodge denuncia 5 por interferência na investigação e pede abertura de novo inquérito

Em seu último dia como procuradora-geral da República, Raquel...

Respeito à mulher. Entre nesse bloco

Respeito à mulher. Entre nesse bloco

Tem mulher negra no audiovisual, sim! (E se reclamar vai ter mais ainda…)

As mulheres negras, cada vez mais, ocupam os espaços...

para lembrar

Coisa de mulherzinha

Uma sensação crescente de indignação sobre o significado de ser...

Loiras geladas, negras encorpadas e a publicidade de cerveja – Por: Jarid Arraes

O álcool é um forte componente da cultura brasileira...
spot_imgspot_img

Sueli Carneiro analisa as raízes do racismo estrutural em aula aberta na FEA-USP

Na tarde da última quarta-feira (18), a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP) foi palco de uma...

O combate ao racismo e o papel das mulheres negras

No dia 21 de março de 1960, cerca de 20 mil pessoas negras se encontraram no bairro de Sharpeville, em Joanesburgo, África do Sul,...

Ativistas do mundo participam do Lançamento do Comitê Global da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver

As mulheres negras do Brasil estão se organizando e fortalecendo alianças internacionais para a realização da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem...
-+=