No Congo, casas para denunciar as violências sexuais

Por Elise Vincent
De Goma (Congo)

Barbárie cotidiana Duas mulheres, uma com o filho no colo, ambas vítimas de estupro, esperam por tratamento em hospital de Bukavu, no Congo

Todos os dias, em Goma, mulheres chegam para relatar uma paz como ela não se pretende. Relatos em voz baixa, com mímicas dos golpes, o sutiã ou a saia levantados para mostrar os ventres e os seios feridos. Muitas vezes elas chegam sozinhas, das cidades vizinhas, e os relatos se encadeiam, nos quartos escuros. Aqui, são chamadas de “casas de escuta”. As mais cuidadas têm uma cama e uma cortina. Outras são barracos de madeira com teto de lona, possuem somente um banco, uma mesa baixa com uma toalha branca.

Zawadi tem 23 anos e as palavras daquela que traduz por ela: “Eu não conheço essa paz da qual sempre se fala”. A palavra que ela não diz é “estupro”. O último que ela sofreu foi em março. Ela ia buscar água com seu irmão mais novo, e seis homens de uniforme lhe disseram para “ir cumprimentar o chefe”. Eles a empurraram, e ela caiu: “Dois me pegaram”. Três anos atrás, a vítima foi sua mãe: “Bandidos bateram à porta, não queria abrir mas eles forçaram”. Nasceram gêmeos.

Entretanto, oficialmente faz dez meses que há “paz” em Goma, colmeia acidentada com cerca de 800 mil habitantes, reconstruída sobre uma faixa de lava negra, ao pé de um vulcão, desde que houve uma erupção, sete anos atrás. Uma paz frágil, ainda com conflitos. Mas uma paz assinada em janeiro por todos os rebeldes armados – hutus ruandeses, tutsis congoleses, milícias autóctones – que durante quinze anos devastaram essa zona fronteiriça de Ruanda, cobiçada por seu ouro, seus diamantes, sua cassiterita. Mais de 5 mil capacetes azuis foram mobilizados. Sua missão se chama “Kimia”, que em suaíli quer dizer “calma”.

Mas, nessa ponta isolada da África central, abandonada a um clima de chuvas e de temporais oito meses ao ano, ninguém entende realmente. Desde que essas guerras que estouraram nas verdejantes colinas começaram a arruinar a região, o estupro sempre foi uma “arma de guerra”, maciça e terrível. Entre 2004 e 2008, a “paz” não mudou em nada lá. Mês após mês, os casos se acumulam, presságio de um sinistro recorde para o fim do ano.

Em Heal África, um hospital particular de Goma, financiado por fundos americanos, dormitórios inteiros de jovens garotas esperam, sob cobertas vermelhas e mosquiteiros amarrados sobre as cabeças, uma intervenção cirúrgica para fístulas severas, consequência de violências inacreditáveis. Metade delas são menores de idade, e entre elas, naquele dia, uma menina de 5 anos. “Antes, durante as consultas, eu via duas ou três vítimas. Mas na semana passada eram dez”, comenta a jovem Dra. Cathy Mufungizi. “É horrível, eu não entendo, está ficando grave”.

Ninguém entende, mas uma hipótese está se desenvolvendo, na cidade, onde estão instaladas várias ONGs. Em especial a teoria segundo a qual surgem menos vítimas de estupros “militares” do que de estupros “civis”. Algumas organizações acreditam que ali pode haver paradoxalmente uma ligação positiva com seu trabalho de “conscientização” sobre os perigos dos estupros. As mulheres estariam denunciando os atos de violência com mais facilidade. Mas a maioria das ONGs estimam que também há uma forma de “banalização”.

Esther tem 50 anos, e foi estuprada em setembro por dois homens que ela não conseguiu identificar: “Não se sabe mais distinguir, os vizinhos se transformam, é por causa da guerra, isso não acontecia antes. Nem os chefes dos vilarejos sabem mais!” Xavérine Karomba, responsável na ONG Caritas pelo setor que cuida das violências infligidas às mulheres, explica: “Há muitos desmobilizados que saíram de grupos armados, não usam mais as armas mas continuam com a mesma mentalidade”.

Segundo ela, o problema também vem da pobreza agravada de Kivu Norte. A expectativa de vida no Congo é de 47 anos, e 80% da população sobrevive com menos de US$ 1 por dia. Seria, afinal, a consequência do deslocamento maciço de centenas de milhares de pessoas nos últimos anos: “Longe de suas casas, eles acreditam estar acima da lei!” Entre setembro e outubro, o governo obrigou a maioria a voltar para suas casas. Mas ainda permanece um acampamento em Goma, com os mais vulneráveis: 3.500 pessoas.

Então as mulheres, as jovens e as meninas continuam a chegar nas “casas de escuta”- as vítimas homens permanecem à margem. Nas escolas, cada vez mais professores, cujos salários não são pagos, trocam à força boas notas por consolo. “Aqueles que estupram hoje viram, ouviram. Tende-se a reproduzir uma infração que se conhece”, acredita o major de polícia David Bodeli, encarregado da proteção das mulheres e das crianças.

Nesse mar de sofrimento, surge uma nova profissão: orientadora psicossocial. Voluntárias, elas se chamam como suas vítimas, com nomes enviados do céu: Césarine, Prospérine, Immaculée, Générose… As mais antigas muitas vezes tiveram de sofrer violências sexuais. Seus métodos são um pouco empíricos, elas admitem, mas, envoltas em seus bubus (túnicas) coloridos, elas fornecem o essencial: a presença e a escuta. Quando elas começaram a montar suas associações, no início dos anos 2000, estavam sozinhas, mas a maioria recebeu depois o apoio de alguma ONG.

Marie-Donatienne, com sua associação Maode, é uma delas. Ela conta, com o olhar fixo, que foi seu estupro, nove anos atrás, diante de seu marido e seus filhos, que a incitou a se mobilizar. “Eu estava em casa, eles disseram que eu era uma espiã tutsi”. Um compromisso reforçado há um ano, pelo estupro de sua filha, 16, vítima de um soldado desmobilizado. Mãe e filha “conceberam”, como elas dizem.

A organização de Marie-Donatienne recebe auxílio da Médicos do Mundo (MDM). A ONG tem um projeto inovador: a ideia, em um contexto de absoluta falta de psicólogos, é formar cada vez mais mulheres e homens como orientadores na parte de psicologia e saúde mental. Explicar a eles a ministração de remédios para os riscos de infecção por HIV, as gestações indesejadas, a cirurgia para as feridas… A formação dura um ano, sendo que em outras ONGs a duração é de cinco dias a três meses.

A obsessão de Tatiana Kourline, coordenadora da MDM, antropóloga de formação: “Substituir as estruturas locais o mínimo possível”. Com exceção de uma especialista em logística, toda a equipe da MDM é congolesa, um caso único em Goma. As “orientadoras” em formação também recebem noções de administração e informática. A ONG tem esperança de que, quando chegar a hora da retirada militar, as habilidades adquiridas garantirão a perenidade do sistema. Só faltam os financiamentos. O orçamento para 2010 – 60 mil euros – não está fechado.

Mas há trabalho, que impede todas essas mulheres de desaparecerem, nesses tempos de calma oficial. Pois no Congo estuprada é sinônimo de rejeitada: pelos maridos, pelas famílias, pelo vilarejo. Muitas preferem se calar. Mas os vizinhos denunciam. E depois, não há como disfarçar os remédios, as gestações, quando há casos como a recente surdez de Judith, 35, ou como a perda repentina de memória de Marie-Jeanne, 55, estuprada em maio, e que não se lembra mais da idade de seus sete filhos.

Nessas terras erodidas pelos conflitos étnicos, as que decidem ficar no campo muitas vezes se transformam em sombras trêmulas, toda vez que andam até suas plantações de mandioca ou até o rio. Nas ruas de Goma, aquelas que fugiram se tornam frágeis figuras solteiras com rostos de velhas senhoras, condenadas a sobreviver com a venda de alho-poró, sabão ou panelas pelo melhor preço.

E a impunidade aos estupradores continua, mesmo para aqueles que foram denunciados pelas mais corajosas. Em 2006, o governo congolês adotou uma lei para reprimir a calamidade das violências sexuais. Mas, em Goma, assim como em outros lugares, aquelas que têm força para prestar queixa devem fazê-lo nos escritórios sem divisórias do major Bodeli ou nos do militar Joseph Mabiala, cheios de fuzis kalashnikovs recém-apreendidos. Se o caso chegar a julgamento, não se deve esperar que seja feito a portas fechadas – a sala do tribunal é uma cabana de madeira, aberta para a rua. As indenizações financeiras, ainda que determinadas, nunca são pagas. Todos estão falidos.

As estatísticas são tão cruéis quanto os estupros. Na associação das mulheres juristas, uma pequena organização militante, das 66 mulheres acompanhadas em seu processo judiciário, somente 17 obtiveram um julgamento, e 6 conseguiram penas conformes à legislação, ou seja, entre 5 e 20 anos de prisão. Culpa da ausência de médicos legistas para emitir certificados médicos. E azar também pelos desmaios, como no caso de Chekambo, 27, estuprada seis meses atrás por bandidos, que perdeu a consciência quando lhe introduziram um fuzil em sua vagina.

Para transformar um mal em um bem, é quase um movimento feminista que surge em Goma. Muitas ONGs, assim como a MDM, oferecem ateliês de costura e cursos de “pequenos comércios” para tornar as mulheres independentes. Marie-Donatienne começou a estudar Direito e incentiva sua filha: “Para deixar de ser uma cabra controlada por uma corda”. Ao fruto de seu estupro, um menino, ela deu o nome de Innocent [inocente].

Tradução: Lana Lim

Matéria original

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