No cuidar dos jovens, outra lição do Uruguai

Enquanto Brasil cogita reduzir maioridade penal, país vizinho examina, em debate nacional, leque de medidas de reeducação alternativas, para adolescentes infratores

Por Daniel Santini Do Outras Palavras

Na última quinta-feira, 19 de agosto, no Congresso Nacional do Brasil320 deputados federais votaram em favor de aprisionar adolescentes junto com adultos no sistema penitenciário. A medida havia sido rejeitada pela Câmara dos Deputados no dia anterior, mas acabou colocada em votação novamente graças ao presidente da casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em manobra classificada como golpe pela oposição. Aprovada com apoio massivo das bancadas do PMDB e do PSDB, a Proposta de Emenda Constitucional 171/1993 foi encaminhada para o Senado Federal, onde também precisa ser aprovada antes de virar lei. Por conta de sua posição determinada em favor da redução da maioridade penal, Cunha tem sido chamado de o inimigo número 1 da juventude.

No mesmo dia em que a proposta de prender adolescentes avançou no Brasil, no Uruguai acadêmicos, autoridades e especialistas reuniram-se no Congresso Nacional para debater medidas alternativas à privação de liberdade de jovens. O encontro abriu espaço para a discussão para outras possibilidades de se punir e reparar infrações. “O que se quer não é simplesmente castigar quem errou, é reabilitar, reintegrar. A adolescência é um período de vulnerabilidade e de potencialidade, no qual se abre a possibilidade de ajudar os jovens a se transformar. A privação está longe de provocar um impacto positivo”, apontou o italiano Paolo Mefalopulos, representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no país, durante a abertura do evento.

Ele destaca que, enquanto no Uruguai para uma população de 3,5 milhões há 700 adolescentes privados de liberdade em instituições socioeducativas (vinte a cada cem mil pessoas), na Itália para uma população de cerca de 60 milhões são cerca de 300 (1 a cada duzentos mil). “Não significa que os adolescentes italianos são mais bonzinhos ou que a polícia italiana é menos eficiente. Isso indica uma debilidade ao se desenvolver reabilitação e penas alternativas.

É evidente que fortalecer os programas alternativas é muito importante e temos que pensar que tipo de pena é necessária. Se nos damos violência em vez de reabilitação, quando um jovem sai é muito mais provável que ele vai recorrer à violência e reincidir”. No Brasil, a última estimativa, de 2013, apontava 23,1 mil adolescentes submetidos a regimes fechados para uma população de 200,4 milhões (cerca de 11 a cada cem mil).

Álvaro Colistro, do Instituto Nacional de Direitos Humanos, também presente à mesa, destacou que todas as normativas internacionais apontam que a privação de liberdade tem que ser o último recurso, e argumentou que elas foram construídas a partir de dados objetivos e concretos. “Não existe medida educativa quando se trata de privação, isso só agrava o problema. É falsa a ilusão de que a falta de segurança será resolvida com prisões”, destacou .

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Seminário internacional

A audiência pública no parlamento uruguaio marcou o encerramento do Seminário Sistema Penal Juvenil, organizado pela Casa Bertolt Brecht com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo. De 17 a 19 de  agosto foram realizados debates e reuniões com representantes do poder público, organizações sociais que desenvolvem medidas socioeducativas e integrantes de movimentos sociais que trabalham com o tema, com atividades na capital Montevideo e em Salto, no interior do país.

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Dois especialistas internacionais foram convidados a falar durante o seminário: a advogada argentina e ativista por direitos humanos Mary Beloff, mestre pela universidade de Harvard (Estados Unidos) e doutora pela de Buenos Aires (Argentina), com extensa produção acadêmica sobre direitos da infância; e o advogado chileno Álvaro Castro Morales, mestre pela Universidad Diego Portales (Chile) e doutor pela Universidad Ernst- Mortitz- Arndt de Greifswald (Alemanha), autor do livroDireitos Fundamentais dos Privados de Liberdade (disponível em PDF em espanhol). Ambos defenderam que a privação de liberdade deve ser utilizada somente quando esgotadas todas as outras possibilidades.

“O que deve ser alternativo é o encarceramento e não as demais medidas. Se vai privar de liberdade é preciso boas razões. A privação é cara, não recupera e não educa”, defendeu Mary Beloff, durante a audiência no Congresso Nacional. Ela critica as propostas legislativas e discursos inflamados que apontam como solução para a criminalidade juvenil aprisionar crianças e adolescentes. “É preciso analisar a questão com elementos objetivos e científicos. O que precisamos combater é a sensação de impunidade e não simplesmente trancar todos. As chances de resolver a questão diminuem quando existe o encarceramento”.

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Álvaro Castro Morales, por sua vez, fez nos dias 17 e 18 diferentes apresentações longas e detalhadas sobre os diferentes tipos de medidas possíveis, elencando princípios fundamentais do sistema penal juvenil. Defendeu que o mesmo deve ser leve e flexível, e capaz de julgar os atos infracionais de maneira ágil e clara dentro de um prazo razoável. O sistema deve ainda primar por proteger a privacidade do adolescente e ser capaz de oferecer diferentes soluções para diferentes problemas. “Em linhas gerais, a violência juvenil é episódica e simples e a solução envolve a família e a comunidade”, argumentou.

Para que tal sistema seja efetivo, ele aponta que é necessária a privação somente como recurso excepcional, a separação de adolescentes dos adultos em todas as etapas, a especialização de todos atores, incluindo policiais e juízes, e a capacitação de agentes do Estado e de organizações sociais envolvidas na execução de medidas socioeducativas.

Sobre o processo penal em si, destacou saídas alternativas baseadas em princípios como os da remissão e oportunidade, em que as autoridades podem abrir mão de seguir com o processo ao avaliar que o ato não fere gravemente o interesse público. Citou ainda a justiça restaurativa, com possibilidades de acordos reparatórios, além de penas como prestação de serviços comunitários e liberdade assistida. Destacou também que, mesmo nos casos de condenação, deve haver a possibilidade de suspensão de penas leves quando não há prognóstico claro indicando que o adolescente deve reincidir.

Entrevistas de Álvaro Castro Morales e notícias sobre o seminário

Brecha – Encerrar el encierro

El Pueblo – “Si a los jóvenes los tratamos como delincuentes se comportarán como tales”

El Observador TV – Jóvenes infractores: “privar de libertad debe ser el último recurso”

El País TV – Experto advierte que el encierro “es más caro y tiene costos sociales”

La Diária – Por la positiva e Cara de expediente

Radio CX30 – Entrevista de rádio con Álvaro Castro

O advogado conversou com especialistas e acadêmicos na Univesidade da República do Uruguai em Salto, no interior, e com integrantes da Comissão No a La Baja (Não à Redução, em português), em debate realizado na Casa Bertolt Brecht (CBB). Jovens na sua maioria, os presentes participaram ativamente da campanha vitoriosa que conseguiu evitar a redução da maioridade penal em plebiscito realizado no Uruguai. Em abril, Verónica Silveira, integrante da CBB e da No a La Baja, esteve no Brasil falando sobre como a campanha foi organizada.

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Tortura e encarceramento

No Uruguai, logo após a a derrota no plesbicito sobre a redução da maioridade, a oposição passou  a pressionar pela ampliação do tempo de internação de adolescentes infratores. No Brasil, o senador José Serra (PSDB-SP) apresentou o Projeto de Lei 333/2015, que segue a mesma linha e prevê que o tempo máximo de internação passe de três para dez anos. O projeto ganhou o apoio tanto de conservadores, que apoiam a proposta como uma alternativa para o caso de a PEC 171 não ser aprovada, quanto pelo Governo Federal, que vê na medida uma saída para evitar a redução da maioridade. A presidenta Dilma Rousseff (PT) já se posicionou contra a redução da maioridade, mas a favor de aumentar o tempo de internação.

Durante o seminário no Uruguai, além de ressaltar que a prisão deve ser considerada a última das medidas a ser adotada, os especialistas internacionais ressaltaram que o tempo dos adolescentes é diferente e que, por isso, a privação de liberdade deve ser limitada. Todos são unanimes em apontar que as chances de recuperação diminuem com penas prolongadas.

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O destaque que o debate sobre medidas alternativas promovido pela Casa Bertolt Brecht ganhou na imprensa local, com TVs, rádios e jornais acompanhando as discussões, está relacionado também à crise que atravessa o Sistema de Responsabilidade Penal de Adolescentes (SIRPA).

Acusações de maus tratos e torturas em unidades de internação estão em foco desde o ano passado, quando o Comitê contra a Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU) apontou problemas graves. As críticas foram endossadas pela relatora da Comissão de Direitos Humanos da Criança da ONU, Sara Oviedo, e pela representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos OEA, Rosa María Ortiz.

Em agosto, o vazamento de um vídeo com flagrante de funcionários do Instituto da Criança e do Adolescente (INAU) espancando adolescentes acirrou a discussão sobre o encarceramento de adolescentes e deu força para os que defendem medidas alternativas. No Brasil, violações contra os direitos de crianças e adolescentes ainda são comuns no sistema socioeducativo.

Veja o vídeo:

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