Nós e o papa

O papa João Paulo II surpreendeu as mulheres que lutam em prol da igualdade entre os gêneros com o documento intitulado Carta sobre a Colaboração entre Homem e Mulher na Igreja Mundial. O avanço político do conservadorismo católico é um fenômeno a que vimos assistindo e confrontando há mais de uma década, notadamente o ativismo do Vaticano nos fóruns, como as conferências da ONU que tratam sobre a questão da mulher e, sobretudo, de seus direitos reprodutivos.

Por Sueli Carneiro

O tema do aborto tem sido objeto de demonstrações por vezes grotescas ou escatológicas por parte de representantes dos interesses da Santa Sé, em que não falta a exposição de fetos humanos conservados em recipientes, como expediente de sensibilização de sua cruzada antiaborto. Somem-se a isso as agressões verbais a todas e todos que entendem ser o aborto uma questão de saúde pública e de consciência moral ou religiosa de cada um, cabendo ao Estado laico apenas prover às mulheres as condições adequadas ao exercício de seu direito à interrupção de uma gravidez não desejada ou de risco materno, ou de inviabilidade de vida para o feto, de acordo com suas convicções.

Surpreendente o posicionamento oficial do Sumo Pontífice pelo que ele contém de proposições anacrônicas completamente dissociadas da realidade social contemporânea das mulheres. João Paulo II começa lamentando ‘‘a tendência a destacar fortemente a condição de subordinação da mulher, com o objetivo de despertar uma atitude contestatória”. Pior ainda é culpar o feminismo por uma suposta desagregação da instituição familiar secular e pelo homossexualismo.

Mais uma vez Eva é culpada por ejetar Adão do paraíso, o espaço sacrossanto do lar, onde, na realidade, ocorre a maioria das violências domésticas e sexuais contra mulheres e meninas, na maioria absoluta dos casos perpetradas por pais, padrastos, tios etc. Trata-se de um padrão universal sustentado na subordinação cultural e biológica da mulher, em relação à qual a omissão do papa resulta em legitimação do abuso do poder masculino com todas as conseqüências que todos conhecemos.
Muito se tem especulado sobre as reais motivações desse pronunciamento: uns identificam aí uma correia de transmissão do conservadorismo republicano, do qual o presidente dos EUA, em campanha pela reeleição, seria o maior protagonista. Recentemente, o presidente americano, George W. Bush, em visita ao estado do Texas, se reuniu com membros de uma organização de caridade católica afirmando: ‘‘Vocês têm um amigo nesta administração”.

Mais significativo ainda foi o relato do presidente norte-americano sobre o elogio recebido por ele de João Paulo II, quando de sua visita ao Vaticano em junho, por condenar o aborto e defender a família. Por fim, a menção explícita e condenatória ao feminismo norte-americano, na carta em questão, incrementa as especulações sobre os vínculos profundos entre a administração Bush e a Santa Sé nessa matéria.

Outros consideram que o papa, ao eleger o feminismo como inimigo número um da Igreja Católica, oferta, contraditoriamente, um atestado do vigor e força política desse movimento, que vem empreendendo mudanças globais no status tradicional das mulheres em oposição às forças que tentam perpetuar as desigualdades entre os sexos com base em dogmatismos extemporâneos.

Da necessidade de erradicar os radicalismos atribuídos ao feminismo supostamente desagregador da estrutura familiar tradicional e promotor do homossexualismo – e atender, ao mesmo tempo, ao princípio de realidade que decorre da nova condição da mulher conquistada pelo feminismo – emerge o neofeminismo de João Paulo II, cujo ideário reafirma a necessidade da ‘‘presença das mulheres no mundo do trabalho e nas instâncias da sociedade”. E isso sem prejuízo de suas atribuições fundamentais, que é o cuidado do lar, do marido e filhos. Vetada, naturalmente, a presença da mulher na hierarquia da Igreja. E afirma mais o Sumo Pontífice que ‘‘as mulheres tenham acesso a postos de responsabilidade que lhes dêem a possibilidade de inspirarem os políticos e de promoverem soluções novas para os problemas econômicos e sociais”, sem prejuízo dos deveres referidos acima.

Quer o papa que as mulheres não abortem mesmo com risco de morte; não exercitem ou defendam orientações sexuais diferentes da heterossexualidade; mantenham-se submissas a seus maridos; façam sexo apenas para procriação e, conseqüentemente, não usem preservativos, mesmo em dúvida sobre a fidelidade de seus maridos. Se houver contágio, foi Deus quem quis.

Esse neofeminismo católico, ao se apropriar de reivindicação e conquistas legitimamente feministas, misturando-as com posições doutrinárias, visa desarticular, dissociar os avanços experimentados pelas mulheres – em todo o mundo – do ideário e da ação política feminista, buscando resgatar para a Igreja a iniciativa sobre esse processo irreversível. Uma tentativa de reorientar o sentido, os conteúdos e, sobretudo, estabelecer limites à luta das mulheres por igualdade, a fim de domesticar as aspirações emancipatórias e libertárias que as animam e impulsionam.

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