“Nos EUA, houve um aumento nas taxas de detenção entre negros e latinos, o que me levou à uma nova pesquisa” diz Natalie Byfield

Enviado por / FonteKátia Mello

Artigo produzido por Redação de Geledés

Natalie Byfield, de 59 anos, socióloga e professora associada do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade St. John, em Nova York, deu uma palestra na quarta-feira 28 na FFLCH (USP), São Paulo, sobre um tema que vem há anos pesquisando: a abordagem policial na cidade nova-iorquina e suas consequências para a população negra. A socióloga debruça-se sobre questões como a hegemonia, especificamente a construção e reprodução das desigualdades no mundo ocidental moderno e a resposta da justiça social a elas. Seu trabalho centra a subjugação da negritude em seus exames de opressão e desigualdades sob o capitalismo. Natalie também explora a resistência que contesta essa subjugação.

Como ela mesmo contou à coluna Geledés no debate, seus estudos começaram quando era repórter e realizou a cobertura jornalística do caso Central Park Five, que ficou internacionalmente conhecido por ser marcado pela ausência de evidências sobre a culpabilidade de cinco adolescentes negros condenados em 1989 por supostamente terem estuprado e matado a banqueira branca Trisha Meili, apesar de as provas terem dito o oposto. A história, inclusive, rendeu a série “Aos Olhos da Justiça“, exibida pela Netflix.

Na esteira do caso do Central Park Five, a pesquisadora debate a prática policial Stop-and-frisk, instituída pelo então prefeito de Nova York, Rudy Giuliani, que continua levantando polêmicas pela abordagem racista dos policiais a negros e latinos, em especial os mais jovens. Natalie também destaca o aumento das leis de justiça juvenil, que já havia sido iniciado na década de 90 nos Estados Unidos, com legislações destinadas a julgar mais jovens como adultos.

Entre 2003 e 2013, os negros constituíam cerca de 25% da população da cidade de Nova York e 54,2% das pessoas pararam ou foram detidas sob a prática do Departamento de Polícia de Nova York. Nesse mesmo período, os latinos representavam cerca de 23,7% da população da cidade e 32% das pessoas pararam.

@naliebyfield - Imagem - Tweeter
@naliebyfield – Imagem – Tweeter

Geledés – Como o caso Central Park Five a levou a ter consciência sobre as estruturas de classe, raça e gênero?

O Caso do Central Park me conscientizou sobre as estruturas de raça, classe e gênero nos Estados Unidos, ao trabalhar como repórter na cobertura da investigação policial. Nunca antes na mídia americana houve tantos recursos e atenção sobre um caso de estupro como esse. Apenas naquele ano (1989), houve mais de 200 casos de estupro. No entanto, apenas aquele ganhou magnitude na cobertura de imprensa de forma especial porque a vítima era uma mulher rica, branca, e os suspeitos eram negros e latinos. Muitas vezes, se a vítima for uma mulher negra e os suspeitos negros, o estupro não ganha muita atenção, quando recebe alguma.

Além da atenção midiática, foi possível também notar as estruturas e a hierarquia de raça e classe pela maneira em que a mídia, a polícia e outras instituições de autoridade estiveram dispostas a ignorar os direitos dos supostos suspeitos. Por exemplo, a mídia violou sua própria prática de usar o termo “suposto” para casos não julgados por um tribunal. Ao conduzir meus estudos sobre o caso, analisei os artigos que foram publicados pela imprensa naqueles dias. Minha amostra indicou que apenas 12 dos 251 artigos publicados na imprensa usaram o termo “suposto” culpado. Ou seja, aqui se demonstra como as instituições midiáticas encontravam-se predispostas a desrespeitar as práticas sociais tradicionais quando se trata de apoiar uma vítima branca, ao mesmo tempo em que sistematicamente violava os direitos de negros e latinos.

Geledés – E como a polícia de Nova York interpretou o caso?

A polícia, assim como outras instituições, gerenciou o caso violando os direitos dos jovens suspeitos – e que na época eram crianças.  Mesmo com provas que apontavam para a inocência daqueles meninos, os promotores se dispuseram a ignorar as evidências, porque na imaginação deles já havia o conceito do que significa ser negro e latino, direcionando à culpabilidade criminal. Então, neste sentido, o que os indicadores de meus estudos demostram são as estruturas e hierarquia de raça, classe e gênero na sociedade.

Geledés – Você acompanha a cobertura brasileira sobre o genocídio de sua juventude negra?

Não sei como funciona a mídia brasileira. Portanto, não me sinto à vontade para comentar estatisticamente sobre seu funcionamento. Mas, se olharmos para a América, a grande mídia é uma plataforma que articula a supremacia branca. O que quero dizer com isso é que a grande mídia é muitas vezes uma plataforma que reforça a posição superior de europeus e homens brancos. As mídias tradicionais fazem isso através da linguagem que elas usam, dos assuntos que tratam e na maneira como que se apropriam das pautas. Este é o exemplo que vemos na grande mídia americana.

“É importante que a comunidade negra esteja ciente sobre os verdadeiros motivos por trás das práticas policiais e, especialmente, neste período em que há disponibilidade de tanta tecnologia usada na prática do policiamento. Às vezes, o objetivo da polícia é simplesmente coletar informações sobre as pessoas.”

Geledés – Com o advento da Internet, como é possível refletir sobre esse impacto das mídias paralelas na comunicação para a comunidade negra?

O advento da internet tem sido muito bom para criar a possibilidade de democratização da mídia. Nos Estados Unidos, isso não necessariamente se materializou dessa forma, por causa das estruturas de negócios escondidas por trás da internet, que é amplamente controlada em território americano. Se você tem empresas privadas, por exemplo, que controlam o acesso das pessoas à Internet de alta velocidade, é necessário criar uma hierarquia na acessibilidade. Inicialmente, quando a Internet estava se desenvolvendo em meados dos anos 90, a discussão sobre sua importância se referia à  como ela democratizaria a mídia. Mas isso não necessariamente aconteceu, porque segue sendo controlada pelas grandes empresas.

Geledés -Mesmo que as pessoas criem seu conteúdo independente?

Devemos certamente considerar que ocorreu um desenvolvimento positivo, mas a capacidade de atingir o público em massa ainda é determinada pela forma como o mecanismo de pesquisa opera. Portanto, ainda há um grande controle por parte de grandes empresas e indivíduos abastados. Ou seja, a hierarquia que existia antes continua a existir mesmo que tenha havido pontos positivos na criação de plataformas onde mais pessoas possam participar.

Geledés – O que poderia quebrar esse ciclo?

Se você quiser pensar em termos de mudanças fundamentais nessa área, acho que elas virão com mudanças fundamentais no sistema econômico, porque o desenvolvimento da mídia e do capitalismo operam de mãos dadas. Dessa forma, a organização de nossos meios de comunicação opera de maneira a apoiar o desenvolvimento e o avanço do capitalismo. É pelas verdadeiras mudanças fundamentais na organização do capitalismo que podemos trazer mudanças fundamentais na organização da mídia. Não estou sugerindo que não tenha havido nenhum ponto positivo no sentido da criação de novas plataformas para que mais vozes sejam ouvidas, mas o principal controle da mídia ainda está nas mãos de grandes corporações.

Geledés – Como você analisa os insultos racistas do presidente americano Donald Trump contra o grupo de algumas deputadas americanas de origem não branca?

Não é uma surpresa para mim. Essas atitudes que Trump expressa podem ser encontradas desde antes de ele entrar na política. No caso Central Park Five, Trump comprou anúncios em quatro jornais basicamente pedindo a morte dos jovens suspeitos.

Geledés – Você acredita que novas narrativas sobre questões de raça, classe e gênero estão surgindo?

A opressão de raça, classe e gênero está sendo mais amplamente ouvida e discutida. Há mais narrativas sendo ouvidas em plataformas tradicionais que articulam como a opressão nos Estados Unidos opera nas interseções entre raça, classe e gênero. Não é apenas por causa da eleição do presidente Donald Trump que essas questões estão sendo mais amplamente debatidas. As eleições são apenas uma das razões.

No sistema de justiça criminal, a polícia é violenta contra negros e latinos, especialmente em comunidades pobres. Essa questão, em particular, ampliou o debate a um período anterior às eleições presidenciais, durante as revoltas de Ferguson. Isso ocorreu por causa da ampla discussão em torno da violência policial, por conta dos incidentes que aconteceram nessas comunidades. Há movimentos como Black Lives Matter que mantêm vivos os problemas do discurso público relacionados à opressão racial, de classe e de gênero.

Geledés – Sobre o que você discute em sua nova pesquisa?

Minha nova pesquisa deriva do meu primeiro livro sobre o caso Central Park Five, que se chama “Salvage Portrayal”. Quando concluí esse projeto, fiquei me perguntando o porquê de alguns dos jovens, incluindo o soldado que foi pego pela polícia e acabou sendo interrogado, acabaram em má situação. Por exemplo, Raymond Santana, um dos acusados no caso Central Park Five, não estava no parque quando foi pego pela polícia. Eu perguntava a mim mesma que lei permite que a polícia prenda as pessoas de tal maneira? A lei que permite que a polícia prenda é a que está por trás da prática Stop and Frisk. Essa lei é chamada Terry Law e está baseada em uma decisão da Suprema Corte, tomada em 1968, ou seja, 51 anos atrás. Basicamente, diz que a 4ª Emenda da Constituição americana, que protege os cidadãos de “buscas e apreensões irracionais”, não é violada se a polícia detiver uma pessoa por houver uma “razoável suspeita”.

Essa lei deu à polícia um poder discricionário amplo. É a aplicação dela que permitiu que a prática de stop and frisk ocorresse nos departamentos de polícia em todo o país. Quando eu concluí “Salvage Portrayal”, comecei a pensar sobre o legado do caso Central Park. Após o julgamento dos adolescentes no tribunal nova-iorquino, cerca de 44 estados americanos adotaram essa lei de justiça juvenil para incluir mais jovens no sistema penitenciário adulto.

Geledés – Ou seja, houve um aumento da detenção juvenil desde o caso do Central Park?

Sim, exatamente. Não posso dizer precisamente em quanto foi esse crescimento até hoje. Mas na cidade de Nova York é possível se detectar o aumento da taxa de pessoas sendo abordadas e algemadas por policiais. Entre os anos 2003 e 2013, o número de abordagens e detenção de pedestres por policiais chegou a 5 milhões em Nova York, sendo que a grande maioria deles eram negros e latinos, algo como 88% dos casos.

Geledés – É possível constatar aumento de detenções juvenis entre negros e latinos também?

Sim, houve um aumento nas taxas de detenção entre negros e latinos. Isto é o que me levou a esta nova pesquisa sobre stop and frisk. O caso do Central Park foi usado como – e deixe-me dizer isso diretamente – o caso do Central Park, baseado em uma mentira, foi usado como motivo para aumentar ações policiais contra negros e latinos, particularmente do gênero masculino, na cidade de Nova York. Nesse processo, aumentaram as taxas de prisão juvenil e criou-se a oportunidade para a polícia coletar dados de milhares e milhares de negros e latinos.

Geledés – Então a polícia tem capacidade para reuniu uma série de documentos sobre essas pessoas?

Eles têm muitos dados, porque precisavam preencher formulários para eles mesmos. Essencialmente, eles coletaram enormes quantidades de dados sobre pessoas inocentes, porque eles as pararam, as detiveram e depois as libertaram.

Geledés – Se você tivesse que alertar seu público a respeito dos casos racistas ocorridos nos EUA e no Brasil, o que você diria?

O que eu esperava que o público, particularmente o público negro, tirasse dessa pesquisa é aprender a importância de proteger seus dados e exercer soberania sobre eles. Isso é algo que está se tornando cada vez mais importante no mundo. O público perceberá a importância de entender o motivo das práticas policiais. Muitas vezes, nos Estados Unidos, a polícia alega que recolhem informações com base no combate ao crime. Mas, pode haver outros motivos por trás dessas práticas policiais.

É importante que a comunidade negra esteja ciente sobre os verdadeiros motivos por trás das práticas policiais e, especialmente, neste período em que há disponibilidade de tanta tecnologia usada na prática do policiamento. Às vezes, o objetivo da polícia é simplesmente coletar informações sobre as pessoas. Isto é o que estamos vendo nos Estados Unidos.

Geledés – Você irá publicar um novo livro?

Estou trabalhando em um novo livro sobre os tipos de tecnologia usados no policiamento. As pessoas precisam se conscientizar sobre a quantidade de análises usadas no policiamento e sobre o fato de que o tipo de policiamento que está se tornando mais difundido é algo que é chamado de “policiamento preditivo”.

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